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3. BIOPOLÍTICA E GOVERNAMENTALIDADE EM MICHEL FOUCAULT: a

3.2. A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE BIOPOLÍTICA E DE GOVERNAMENTALIDADE

3.2.1. O nascimento da biopolítica

Foucault (2005) leciona que até o século XVI, a relação entre os soberanos e os indivíduos inseridos em seu território era determinantemente uma relação de poder centrada no poder de morte. O soberano expunha e exercia o seu poder através da demonstração da possibilidade de produzir a morte dos indivíduos que não agissem segundo a sua vontade. Essa coação era exercida pelo soberano através das execuções em praças e locais públicos, as quais eram expostas aos súditos como espetáculos. Foucault alerta que o poder sobre a morte, que nessa época simbolizava o poder do soberano, estava influenciado pelo patria potestas romano ou poder familiar, segundo a qual o pater famílias podia dispor, de acordo com a sua vontade, da vida daqueles que estavam sobre seu domínio.

O direito de dispor da vida, ou o que Foucault (2005) chamava de „direito de matar ou de deixar viver‟, não se exercia sobre a vida da mesma maneira que sobre a morte, uma vez que o soberano só exercia o seu direito sobre a vida ao exercer o seu direito de matar ou contendo-o. Assim, esse poder só se exerce sobre a vida como uma ameaça potencial de sua aniquilação.

Esse direito de matar ou de deixar viver era o fundamento último da soberania dessa época, era o resumo de uma série de mecanismos de poder essencialmente embasados na dedução, subtração e apropriação dos bens, dos serviços, dos impostos, do tempo e fundamentalmente da vida dos súditos. (CAMPILLO, 1998).

Dentro desse sistema de governo, focado na morte, existia o direito do soberano de defender-se e de exigir ser defendido por seus súditos. Essa prerrogativa do soberano que era exercida diante da guerra fez nascer o direito dos súditos de assegurar a sua vida. Esta é uma das transformações mais significativas que o poder experimentou. A partir desse momento o antigo poder soberano, de matar e exigir submissão e lealdade dos súditos, aparece mascarado e unido às estratégias que aspiram à administração da vida. A garantia da vida através da guerra não pode ser compreendida só como garantia de sobrevivência do soberano, mas, inclui necessariamente a vida de todo o corpo social que é por ele governado (FOUCAULT, 2005). Essa percepção foi se difundindo e culminou com a entrada

definitiva da vida no centro das preocupações do soberano.

A transformação do direito de morte para o controle da vida foi um processo longo e paulatino e sua consolidação se embasa no surgimento da teoria política do contrato social (FOUCAULT, 2008b). Para esclarecer essa relação entre o controle da vida e a teoria do contrato social, traçada por Michel Foucault (2008b), é necessário expor, resumidamente, a ideia central da teoria do contrato social.

A ideia principal que norteia o contrato social é a de que quando os indivíduos se reúnem para constituir um soberano, o leviatán, com poder absoluto sobre eles, eles estipulam, por sua vez, um contrato social. O poder dado ao soberano tem como contrapartida a sobrevivência dos indivíduos, a sua segurança, a qual se encontra ameaçada no estado de natureza. (FOUCAULT, 2008b).

Diante do exposto, concorda-se com Foucault (2005) quando ele afirma que sendo a vida o fundamento para esse contrato social não pode o próprio contrato tender a suprimi-la. Os indivíduos não dariam poder absoluto ao soberano sem que houvesse alguma contrapartida. Diante dessa mudança de cenário, ocorre a inserção da vida como objeto das estratégias de governo.

A vida passa a ser o foco e não mais a morte. A vida tanto em sua existência política como em sua existência biológica dominam esse novo cenário. Nesse contexto, o poder do soberano se erguia como o antecedente mais influente do que posteriormente se denominou biopoder (CASTRO, 2004).

As estratégias do poder soberano estarão, a partir desse momento histórico, subsumidas pela absorção da vida como objeto dos cálculos da política. Ressalta-se que aos antecedentes já citados soma-se a explosão demográfica e a industrialização da Europa como fatores importantes para essa mudança de paradigma. (FOUCAULT, 2008b).

A tese de Foucault, assim, é de que a partir do feudalismo, assistiu-se a uma profunda transformação dos mecanismos de poder no Ocidente. Conjuntamente ao antigo direito do soberano de extirpar a vida surge o poder de gerar a vida, através da gestão da vida. Segundo Foucault (2005), o século XVII que marca o processo de entrada da vida na história, isto é, a entrada dos fenômenos próprios à vida humana na ordem do saber e nos cálculos do poder. Afirma ainda que é justamente pelo fato de focar-se mais na vida do que na morte, que o poder conseguiu apropriar-se dos processos biológicos, seus cálculos e desenvolver os

saberes que os possibilitam. Assim sendo, os processos relacionados à vida humana começam a ser levados em conta por mecanismos de poder e de saber que tentam controlá-los e modificá-los.

Essa transformação do poder ocorreu especificamente naqueles países que se desenvolveram a ponto ter como um de seus saberes a estatística. A estatística possibilita que o Estado se informe sobre sua população o que possibilita a definição de políticas que visem justamente agir sobre a população. A complexidade das medições estatísticas conformou um campo completamente novo de intervenção dos poderes estatais sobre a massa dos indivíduos. Nas palavras de Danner (2010, p. 52):

E, para compreender e conhecer melhor esse corpo, é preciso não apenas descrevê-lo e quantificá-lo – por exemplo, em termos de nascimento e de mortes, de fecundidade, de morbidade, de longevidade, de migração, de criminalidade, etc. –, mas também jogar com tais descrições e quantidades, combinando-as, comparando-as e, sempre que possível, prevendo seu futuro por meio do passado. E há aí a produção de múltiplos saberes, como a Estatística, a Demografia e a Medicina Sanitária.

Segundo Danner (2010), Foucault afirma que a transformação decisiva que definiu o nascimento da biopolítica foi a possibilidade de entender a vida como um processo modelável pelo Estado, uma vez que existe em cada território uma massa populacional recoberta por processos que são específicos da vida, como o nascimento, a morte, a enfermidade, entre outros. Daí a importância do conhecimento estatístico sobre a população.

Trata-se de uma biopolítica, porque os novos objetos de saber – que são criados a serviço desse poder que tem a vida como foco – destinam-se ao controle dos indivíduos tomados como um grupo. Basicamente, o conceito de biopolítica proposto por Foucault pode ser resumido “como uma política que, visando assegurar a vida biológica do homem, é exercida pelo Estado, o qual toma para si os cálculos, as ações, as regulações e os controles sobre as populações” (VEIGA-NETO, 2014, p. 34). A população é o novo conceito que se constrói para dar conta de uma dimensão coletiva de indivíduos que até então não havia sido problematizada no campo dos saberes. A biopolítica, nesse contexto, está relacionada às políticas que tem como foco a gestão da vida da população.