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4. ECOPOLÍTICA E ECOGOVERNAMENTALIDADE: fontes para uma releitura

4.5. O MEIO AMBIENTE COMO OBJETO DE CIÊNCIAS E CÁLCULOS GOVERNAMENTAIS: a

dispositivos de ecogovernamentalidade

Dentro desse desenvolvimento histórico ocorreu a absorção do meio ambiente pela ciência, de forma que a natureza, assim como a população e suas inter-relações passaram a ser determinadas, conceitualmente, através de cálculos matemáticos de quantificação e previsibilidade que se materializaram em discursos de verdade e concomitantemente em mecanismos e técnicas de intervenção que se materializaram em normas restritivas do acesso aos recursos naturais, logo, limitativas do direito de propriedade.

Como exposto acima, através das ciências naturais, como a biologia e a ecologia, e dos cientistas especializados em modelos de fluxos ecológicos, o meio ambiente foi trazido cada vez mais para o domínio do cálculo político consciente. Houve, paulatinamente, a industrialização dessa ciência, momento em que surge, segundo Rutherford (2000), a “Big Science”. A ecologia passou a ser vista como uma poderosa técnica de ingerência social, uma vez que se percebeu que conhecer os fluxos, as relações entre os organismos é a premissa para a compreensão dos

fenômenos naturais e sociais (RUTHERFORD, 1999a).

Diante disso, alerta Darier (1999), o qual é seguido por Malette (2011), Veiga-Neto (2014), Carneiro (2012) e Rutherford (1999a, 2000) a ciência da ecologia forneceu a base para o surgimento e a institucionalização subsequente de uma governamentalidade ecológica. No decorrer desses quarenta anos, preleciona Rutherford (2000) esse modelo baseado na ciência da relação entre população e natureza foi cada vez mais incorporado pelos programas de governo dos países industrializados. Rutherford (1999b, 2000) assevera, ainda, que tanto o relatório The limits to Growth (Limites do Crescimento) liderado por Denis Meadows quanto os relatórios Cocoyok e Brundtland têm como fundamento a compreensão de que as populações humanas são condicionadas pelo funcionamento das leis ecológicas e de que se está vivendo um momento de desequilíbrio. Esse desequilíbrio trás consigo a ideia de risco, perigo para a humanidade em seu futuro próximo; o que justifica a necessidade de controle.

Rutherford (1999b, 2000) trás aqui uma novidade, qual seja, a introdução do risco como fator necessário para o governo da vida. Esse perigo, continua Rutherford, alerta a população para prováveis consequências econômicas e políticas significativas, além, de consequências ambientais que podem ser geradas com a degradação ambiental. A ideia de risco ambiental que reflete em risco para a sobrevivência da humanidade é absorvida e promovida pela racionalidade governamental. Para produzir e manter a segurança do planeta tem-se que criar e manter o equilíbrio no ecossistema.

Logo, quanto mais se busca a segurança para a sobrevivência humana com qualidade de vida, mais se tem que intervir na população e na natureza para garantir essa segurança. Renova-se o ciclo, que na biopolítica em seu estágio neoliberal tratava-se da segurança para a manutenção da liberdade e agora na ecopolítica trata-se da segurança para garantir algo, ainda mais significativo, a sobrevivência das futuras gerações e de todos os organismos do planeta. Para reestabelecer e garantir o equilíbrio do meio ambiente (a segurança da população) se faz necessário criar uma ampla gama de saberes, técnicas e mecanismos de governo, ou seja, dispositivos de ecogovernamentalidade, que irão gerir a vida humana de todo planeta. Essa gestão ocorre, muitas vezes, por meio da restrição de acesso da população aos recursos ambientais, logo, por meio de limitação da

utilidade da propriedade privada e do que nela se encontra.

Os discursos ambientais tanto criam a demanda por segurança, quando propagam a ideia de risco de sobrevivência para a humanidade, impulsionando a criação de normas restritivas do acesso aos recursos naturais, como legitimam o emprego dessas normas. Dai, pode-se extrair da leitura dos exemplos de discursos citados no título anterior que até mesmo o discurso de prometeu remete à possibilidade de intervenção no meio ambiente, quanto essa tese sustenta o desenvolvimento de novas tecnologias como alternativas para evitar a escassez de recursos naturais. A maioria deles, todavia, como o do sobrevivencialismo, da racionalidade administrativa, do pragmatismo democrático e do racionalismo econômico, bem como, os discursos do desenvolvimento sustentável, apregoa a necessidade de intervenção.

Os discursos só são criados devido à propagação da teoria do risco ecológico, ou seja, diante de uma cultura do medo, de alto risco de extinção da humanidade, dado que não se cogitaria problematizar sobre o meio ambiente, de forma global, em tempos de crença firme na abundância dos recursos e na regularidade dos acontecimentos naturais. Quanto maior a crença no risco maior a complacência da população com as formas de intervenção. Nas palavras de Munõz (2008, p. 7):

[...] las formas de regulación procuraran un manejo de las poblaciones y sus recursos en relación con sus ambientes naturales, incorporando de manera permanente nociones de conflicto, riesgo y peligro que afectan el equilibrio entre la población y el medio ambiente, y ante las cuales deben accionarse mecanismos de seguridad que procuren regular dentro de ciertos límites dicha relación.14.

Diante da iminência de risco à sobrevivência fácil é convencer à população de que limitar o acesso aos recursos naturais e com eles à propriedade é necessário. Observa Malette (2011) que os países altamente industrializados começam a reforçar suas políticas estatais através da regulação e planificação do meio ambiente e seus recursos através do estabelecimento de uma ampla gama de

14 [...] as formas de regulação procuraram manejar as populações e seus recursos em relação a seus

ambientes naturais, incorporando de maneira permanente noções de conflito, riscos e perigos que afetam o equilíbrio entre a população e meio ambiente, frente aos quais devem ser acionados mecanismos de segurança reguladores dessa dita relação (tradução livre).

legislação ambiental e agências de fiscalização.

A pesquisa ecológica e ambiental, nesse momento histórico, estabeleceu, assim, a base para as políticas públicas que impactaram significativamente na política e na economia (RUTHERFORD, 2000). Com efeito, a característica notável dessa ecogovernamentalidade é a criação de órgãos ambientais internacionais e nacionais, a extensa produção de normas de limitação da propriedade privada e a disseminação internacional de procedimentos de meio ambiente, tais como avaliação de impacto ambiental que importam também em restrição do acesso da população aos recursos naturais.

Ressalta-se ainda, dentro dessa racionalidade governamental, o papel central dos interesses industriais (especialmente de corporações transnacionais) dado que, segundo Rutherford (2000) esses atores sociais têm, em muitos casos, o domínio da construção normativa, uma vez que têm o domínio do conhecimento ecológico, ou seja, da produção, negociação e certificação desse conhecimento. Eles, alerta esse autor, conjuntamente com os Estados são os financiadores do pensamento científico em quase todo mundo ocidental. Imbricam-se aqui duas questões interessantes, a primeira é o forte poder das corporações internacionais e dos Estados sobre a construção dos discursos e logo, da confecção de normas ambientais a segunda que decorre da primeira é restrição do acesso da população aos recursos naturais, através da limitação no direito de propriedade possibilitado pelo discurso do risco.

Diante do exposto, embasado nos escritos de Malette (2011), Darier (1999) e Rutherford (1999a, 1999b, 2000), entre outros autores citados, é factível compreender a atenção dada pelo Estado e pelas empresas e até pela sociedade civil ao meio ambiente e à ecologia como uma ecogovernamentalidade na qual todas as formas de vida tornam-se objetos de uma racionalidade fundamentada no conhecimento científico. Ou seja, objetos de uma série de cálculos estatais baseados em dispositivos de governamentalidade para a gestão do meio ambiente.

A partir da vertente de diversos discursos ambientais, o meio ambiente passa a ser tomado como objeto de estudos científicos e que consubstanciados no risco ecológico esses discursos circulam como verdades que se prestam, entre outras coisas à limitação do direito de propriedade, que, por conseguinte, visa também à manutenção do capitalismo, modelo de desenvolvimento vigente.

5. A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE NA CONCEPÇÃO DA