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AS LIMITAÇÕES SOCIOAMBIENTAIS DA PROPRIEDADE, O PODER DE POLÍCIA DO ESTADO E A

5. A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE NA CONCEPÇÃO DA

5.1. AS LIMITAÇÕES SOCIOAMBIENTAIS DA PROPRIEDADE, O PODER DE POLÍCIA DO ESTADO E A

Ao condicionar a utilidade da propriedade ao conhecimento do governo, as limitações impostas ao proprietário, como informa a literatura de Direito Administrativo (MEIRELLES, 2000), apresentam-se como expressão do Poder de Polícia do Estado sobre o exercício do direito dominial. Poder de polícia que, ao recair sobre a utilidade da propriedade em matéria socioambiental, vai se apresentar como a conclusão do silogismo do raciocínio de que as limitações socioambientais ao direito de propriedade são dispositivos de ecogovernamentalidade. Limitações que encontram suporte nas verdades ambientais, incansavelmente, faladas pelo senso comum, confirmadas pelo científico, em todas as línguas; repetidas sonoramente nos ecos e trombetas delas mesmas.

As limitações recaem sobre o exercício do direito de propriedade, legitimando o poder de polícia do Estado (SILVA, 2010) sobre os bens da natureza. Enquanto espécies de limitações administrativas, como informa Hely Lopes Meirelles (2000), representam modalidade de expressão da supremacia geral que o Estado tem sobre as pessoas e as coisas existentes no seu território, decorrendo, essencialmente, da necessidade de conformação da propriedade privada aos preceitos do bem-esta da comunidade. Enquanto de um lado, o cidadão quer exercer plenamente os seus direitos, de outro, a Administração Pública, pelo poder de polícia, condiciona o seu exercício ao cumprimento da função social.

A função social da propriedade empresta fundamento as suas limitações da mesma forma que estas legitimam o poder de polícia do Estado sobre o exercício dos direitos dominiais, de utilização, fruição e disposição dos bens de produção e de consumo. Tudo para se garantir a ocorrência de ganhos sociais junto aos individuais. Por isso, não autoriza a função social, que pelas limitações ou pelo exercício do poder de polícia, seja esvaziada a propriedade de seu conteúdo

essencial mínimo. Simplesmente, porque a propriedade é assegurada como garantia fundamental.

Nesse ínterim, as limitações socioambientais não podem implicar em pura interferência no exercício do direito de propriedade (FARIAS e ROSENVALD, 2010). As restrições de uso e gozo da coisa alicerçam-se em uma função social própria que justifica a existência do direito de propriedade, de forma que as limitações, da mesma forma, somente se justificam quando expressarem esta função social. Apenas podem ocorrer quando não for possível outro meio de se garantir a realização de ganhos comuns e individuais, sob pena de o exagero da legitimação do poder de polícia encerrar o sacrifício do próprio direito dominial e da finalidade econômica e social que tem a cumprir.

Tecnicamente, as limitações não se confundem com o poder de polícia. Servem à legitimação deste, pois que dependem sempre de previsão legal. Pode ser compreendido como todo ato do Poder Público que retira ou restringe direitos dominiais privados ou sujeita o uso de bens particulares a uma destinação de interesse público (MEIRELLES, 2000). Consiste no ato do Poder Público de limitação do exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público, para Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2013). E, para tal, depende da lei para que ocorram, sob pena ilegalidade.

O poder de polícia, sempre sobre o comando da Administração Pública, ocorre por meio de vários tipos de ações, de natureza preventiva e repressiva, cabendo à lei definir como deve ele se perfazer. Ao dispor sobre o poder de polícia, a lei deve definir os direitos e deveres da Administração e do particular, sujeito passivo desse ato intervencionista do Estado. Ao exercer o poder de polícia, restrito ao poder Executivo (GRANZIERA, 2014), este o faz essencialmente na regulamentação e controle da atividade lícita (caráter preventivo) e na aplicação de sanções da atividade ilícita (caráter repressivo).

Em matéria ambiental, o poder de polícia preventivo, salienta Maria Luiza Machado Granziera (2014, p. 399), consubstancia-se em ações relativas: (i) à “fixação, por meio de regulamentos de leis, de procedimentos administrativos e de normas e padrões ambientais”, para o controle das atividades, com o licenciamento ou não, por exemplo; (ii) ao exercício dos órgãos competentes, para conhecer e licenciar se o caso, os empreendimentos potencialmente poluidores; caracterizando-

se o poder de polícia repressivo, pelas ações relativas: (iii) à fiscalização do cumprimento das normas, regulamentos e limites estabelecidos pela administração no ato autorizativo; (iv) à “aplicação das penalidades cabíveis, no caso de desrespeito à regra instituída, de acordo como o disposto em lei”.

A questão é que na maior parte da disciplina jurídica, o poder de polícia preventivo, não só em matéria ambiental, mas principalmente, acaba por resolver-se em repressivo, já que condiciona a ilicitude não à conduta danosa, mas ao prévio conhecimento da Administração Pública. Isso porque, em matéria ambiental, observa-se que o poder de polícia preventivo resolve-se, essencialmente, muito mais em ato do particular, responsável por informar a Administração Pública sobre sua conduta, do que em fiscalização direta desta sobre as atividades desses particulares.

Questões normativas a parte, o que se deve ater é que, ao definir o complexo de limitações administrativas de natureza ambiental que recaem sobre o direito de propriedade, está-se legitimando o conteúdo e a extensão do Poder de Polícia do Estado como dispositivo de segurança do meio ambiente. Tudo sobre a premissa de que a propriedade deve cumprir uma função socioambiental. “A ideia é não pôr em perigo o interesse geral, o que pode traduzir em evitar o dano” (GRAZIERA, 2014, p. 398); no caso o ambiental.

A tutela de Direito Ambiental busca proteger a população, e como tal deve ser construída sobre regras finalísticas que implique em ganhos ambientais comuns sem a extirpação dos ganhos individuais e coletivos de dimensões econômica e social. Na teoria da ecopolítica, o controle da utilização desses bens ou recursos ambientais é expressão do governo da vida pelo governo do meio.

No direito ambiental brasileiro, os dispositivos de ecogovernamentalidade estão consubstanciados pelo complexo de órgãos e de instrumentos da política nacional do meio ambiente regulado pela Lei n.º 6.938, de 31 de Agosto de 1981 (BRASIL), que lista os órgãos e instrumentos técnicos essenciais da política ambiental brasileira. Instrumentos técnicos essenciais designados de dispositivos de segurança, para Foucault (1979).

A Lei prescreve claramente como o processo de racionalização do governo da vida, pelo governo do meio ambiente, deve se perfazer ao definir os objetivos e diretrizes da Política Nacional do Meio Ambiente. Estas, as diretrizes,

formuladas sobre normas e planos – dispositivos de construção de verdades e saberes ambientais – destinados a orientar a ação dos Governos, para a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida (BRASIL, 1981). Trata-se de norma legitimadora da governamentalidade do meio ambiente, especialmente, porque, lista todos os dispositivos desse processo de racionalização do governo da natureza.

Se tomada em comparação com o que Foucault (1979) lista como sendo dispositivos de governamentalidade, parece que a Lei da Politica Nacional do Meio Ambiente brasileira foi construída sobre suas disposições.

Para Foucault (1979, p. 291-292), entre outras coisas, entende-se por governamentalidade “o conjunto constituído por instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer esta forma tão específica, tão complexa de poder, que tem como meta principal a população; como forma primordial de saber, a economia política; como instrumento técnico essencial, os dispositivos de segurança”. Tudo presente na Lei, como órgãos e instrumentos necessários aos objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente, ao governo do meio ambiente (da população e do seu meio).

Tudo pode ser correlacionado da seguinte forma:

Como instituições, disciplinadas no seu Art. 6º da Lei: os órgãos componentes do SISNAMA (Sistema Nacional do Meio Ambiente); Como procedimentos, prescritos no Art. 9º: III - a avaliação de impactos

ambientais; IV - o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras;

Como análises, reflexões e cálculos, também presentes em seu Art. 9º: I - o estabelecimento de padrões de qualidade ambiental; VII - o sistema nacional de informações sobre o meio ambiente; VIII - o Cadastro Técnico Federal de Atividades e Instrumentos de Defesa Ambiental; X - a instituição do Relatório de Qualidade do Meio Ambiente, a ser divulgado anualmente pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA; XII - o Cadastro Técnico Federal de atividades potencialmente poluidoras e/ou utilizadoras dos recursos ambientais;

Como táticas (Art. 9º): II - o zoneamento ambiental; V - os incentivos à produção e instalação de equipamentos e a criação ou absorção de tecnologia, voltados para a melhoria da qualidade ambiental; VI - a criação de espaços territoriais especialmente protegidos pelo Poder Público federal, estadual e municipal, tais como áreas de proteção ambiental, de relevante interesse ecológico e reservas extrativistas; XI - a garantia da prestação de informações relativas ao Meio Ambiente, obrigando-se o Poder Público a produzi-las, quando inexistentes; XIII - instrumentos econômicos, como concessão florestal, servidão ambiental, seguro ambiental e outros; e

Como dispositivo específico de segurança: IX - as penalidades disciplinares ou compensatórias ao não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção da degradação ambiental.

Esse conjunto de aparatos de governo formou-se a partir do desenvolvimento de uma série de verdades e saberes advinda do processo de ecogovernamentalização do Estado, que para este trabalho são considerados dispositivos de ecogovernamentalidade da propriedade. O próprio Direito Ambiental, surgido a partir da segunda metade do século XX, é resultado dessas verdades e saberes. Todos esses dispositivos estão relacionados ao disposto no Art. 225, da Constituição brasileira de 1988.

Esta compreensão de exercício da tutela ambiental como dispositivo de governo da vida da população pelo governo do meio, conforme proposta deste trabalho, é confirmada pela própria teoria do Direito Administrativo de que as limitações sevem à legitimação do poder de polícia do Estado para controle do exercício do direito de propriedade, segundo a sua função socioambiental. Simplesmente, porque todo esse complexo de limitações, não serve à construção de uma propriedade de menor conteúdo, mas de uma propriedade vinculada à intervenção constante do governo. Intervenções, que sob a égide da ecogovernamentalidade, servem ao controle do uso dos bens da natureza, ou seja, da regulação de tudo que é necessário para a vida (MALETTE, 2011).

Nesse contexto, a utilidade da propriedade parece continuar plena, porém vinculada ao conhecimento ou ato autorizativo do governo. Esta variável demostra

com precisão a tese de que as limitações são dispositivos de ecogovernamentalidade. Dispositivos que limitam o acesso aos bens da natureza, controlado pelo poder de polícia do Estado, para o governo da vida da população. Isso porque a utilidade comum ao direito de propriedade implica em consumo e utilização constante dos recursos ambientais.

O poder de polícia do meio ambiente, enquanto modo como é fiscalizado o exercício do direito dominial em consonância com os ditames do desenvolvimento sustentável, da propriedade função-socioambiental, vai se desenvolver através de um conjunto de aparatos de governo que se encontram, no caso do Direito brasileiro, prescritos na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, Lei n.º 6.938, de 31 de agosto de 1981. Lei que, basicamente, disciplina o conjunto de dispositivos de ecogovernamentalidade que serão utilizados pelo Brasil para dar efetividade ao processo de racionalização do governo da vida da população pelo governo do meio em que se insere. Trata-se da disciplina jurídica do conjunto de instituições, órgãos, procedimentos, cálculos e táticas que vão servir à construção de uma política de ecogovernamentalidade, de governo do meio ambiente; este entendido como a população mais a natureza.

5.2. A ECOGOVERNAMENTALIDADE DA PROPRIEDADE: o processo de