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A fundamentação da decisão judicial segundo Marcelo Guerra

2. A SEMÂNTICA DA DECISÃO JUDICIAL: DISCRICIONARIEDADE E

3.1. Decisão Judicial e Argumentação

3.1.5. A fundamentação da decisão judicial segundo Marcelo Guerra

Uma teoria da decisão judicial deve abranger o problema da fundamentação, inserindo-o no âmbito da argumentação jurídica, sob uma perspectiva pragmática, ou seja, que leve em conta a participação das partes no processo judicial e os argumentos lançados no discurso jurídico que resulta na decisão judicial. A fundamentação, a seu turno, ocupa papel preponderante como critério de legitimação da decisão judicial. A doutrina tradicional brasileira considera que a legitimação do Poder Judiciário, repousa na adequada

242 Sobre esses processos neuropsicofisiológicos cf. KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de

fundamentação das decisões judiciais. Contudo, a doutrina não detalha o que seja uma decisão adequadamente fundamentada. Tampouco a jurisprudência o faz. São poucos os casos de nulidade de decisões judiciais por ausência de fundamentação.

Uma teoria da decisão judicial deve ser capaz e responder as seguintes questões: o que é uma decisão judicial adequadamente fundamentada? Até que ponto e em que sentido se pode afirmar que uma decisão fundamentada é correta? Até que ponto e em que sentido se pode afirmar que uma decisão fundamentada é legítima? Temos assim, três critérios: (a) adequação da fundamentação; (b) correção; (c) legitimidade. Esses critérios serão detalhados no próximo capítulo. Por enquanto basta percebermos que, se adotássemos a perspectiva da decisão judicial como ato de vontade, poderíamos afirmar que toda decisão fundamentada e que se encontre dentro da moldura normativa é correta. Se adotássemos a perspectiva da decisão como ato de conhecimento, talvez fosse aceitável dizer que uma decisão adequadamente fundamentada tem também que ser uma decisão correta243. Uma fundamentação adequada está ligada à validade da decisão judicial. Uma fundamentação correta está ligada à justiça da decisão judicial. A legitimidade envolve a adequação e a justiça em um grau que não é fácil precisar.

Retomaremos esse tema no próximo capítulo. Por ora, nos interessa uma aproximação ao problema da fundamentação da decisão judicial. O que seria uma decisão adequadamente fundamentada? Um dos mais percucientes estudos sobre essa questão e seus desdobramentos foi apresentada por Marcelo Guerra no artigo Notas sobre o dever

constitucional de fundamentar as decisões judiciais (CF, art. 93, IX)244. Nesse estudo o autor pretende demonstrar a fecundidade da perspectiva inaugurada pela indagação “o que comanda

a norma veiculada pelo art. 93, IX, CF?”. A partir daí investiga extensamente o sentido da

expressão “decisão fundamentada”, sobretudo à luz de conceitos da filosofia da linguagem e da lógica. Para o autor, uma decisão seria correta quando estivesse adequadamente fundamentada e seria qualificada como adequadamente fundamentada quando observasse determinados critérios de correção previamente definidos.

Daí se poder dizer que uma decisão D é correta ou fundamentada se ela consistir na imposição de uma solução S qualificada como correta à luz dos critérios de correção Cn+1. Dito de outra forma, a correção da imposição da

243 Sobre a interpretação judicial como ato de vontade ou como ato de conhecimento e a evolução desse debate

cf. o capítulo 2, especificamente o tópico 2.3.

244 In.: FUX, Luiz; NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coordenadores). Processo e

Constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 517-541.

solução, na qual se traduz a decisão judicial, é dada pela correção da determinação cognitiva dessa solução como a correta.245

Valendo-se do caso mais simples de decisão judicial, a saber, a declaração de existência de um Direito subjetivo pelo juiz, o autor relaciona duas condições de existência de determinado Direito subjetivo:

a) a existência de uma norma geral N que contenha a descrição do fato F como condição de sua incidência (e de existência do Direito subjetivo); b) a ocorrência do fato F.246

Nesse caso simples, a decisão judicial seria correta e, portanto, fundamentada se, e somente se, fosse correta a declaração da existência da norma N e da ocorrência do fato F. O problema é que a declaração da existência da norma N depende de pelo menos outras duas condições:

1) a declaração de que a norma N é o sentido veiculado pelo texto legislativo T;

2) a declaração de que o ato legislativo A, que produz o texto legislativo T, é válido.247

Essas declarações, por sua vez, para serem corretas, dependem, como é fácil perceber, da existência de outras condições, em um processo de fundamentação que conduz a um regresso ao infinito. O mesmo ocorre com relação ao fato F: para que seja correto declarar a ocorrência do fato F, é necessário o preenchimento de duas condições:

i) A ocorrência do fato F está representada no MP1 [meio de prova 1]; [...]

ii) O meio de prova MP é confiável.248.

A declaração de existência do fato F, para estar correta, também demanda o preenchimento de condições regressivas ao infinito. O problema, como se vê, é que os dois primeiros critérios de correção ((a) existência da norma N; e (b) ocorrência do fato F) se desdobram em muitos outros, em níveis de fundamentação sucessivos, e tendem a um

245

GUERRA, Marcelo Lima. Notas sobre o dever constitucional de fundamentar as decisões judiciais (CF, art. 93, IX). In.: FUX, Luiz; NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coordenadores). Processo e Constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 517-541. p. 525.

246 Ibid., p. 526. 247

Ibid., p. 528.

regresso ao infinito. O autor, então, apresenta pelo menos duas soluções para o problema do regresso ao infinito. A primeira delas consiste em argumentar que a norma que manda fundamentar as decisões judiciais, na verdade, não obriga os juízes a profeririam decisões

completamente fundamentadas, mas, sim, obriga os juízes a proferirem decisões não equivocadamente fundamentadas. Do contrário, a interpretação da norma conduziria ao

regresso ao infinito e, portanto, a um absurdo.

Com efeito, impõe-se reconhecer que é ao menos plausível considerar que, embora não seja possível – se e na medida em que não for resolvido o regresso ao infinito -, com um número finito de passos, demonstrar que uma decisão é correta, é possível, com um número finito de passos, demonstrar que ela é incorreta. Assim, a norma sob exame comandaria algo perfeitamente realizável: os juízes devem proferir decisões não equivocadamente fundamentadas.249

É então que o autor se socorre da lógica do modo mais veemente e direto:

Os instrumentos desenvolvidos pela lógica (ou melhor: pelas várias lógicas, inclusive a informal) permitem, com um número finito de critérios de correção, demonstrar que uma decisão está não fundamentada ou incorreta, por ter violado o apontado modelo normativo.250

A segunda solução proposta seria interpretar o mandamento constitucional de fundamentação das decisões judiciais como um mandato de otimização à luz da teoria das normas constitucionais de Robert Alexy, “assim restaria justificada a possibilidade de cumprir essa norma somente até certo ponto, e não “até o fim”, admitindo que a cessação dessa

atividade em princípio infinita seja determinada pela obediência de outras normas do ordenamento”.251

O próprio Alexy, em sua Teoria da Argumentação Jurídica, propõe uma outra solução para o problema do regresso ao infinito na fundamentação das proposições normativas, o que ele chama “trilema de Münchhausen”. A fundamentação de proposições normativas é justamente o que o corre nas decisões judiciais, já que o núcleo da decisão, a ordem judicial, é precisamente uma proposição normativa. A ideia seria substituir a necessidade de fundamentações sucessivas, em um regresso ao infinito, por uma série de exigências na atividade de fundamentação. Essas exigências seriam as regras do discurso racional. Alexy adverte que as regras do discurso racional “não se referem, como as da lógica,

249 Ibid., p. 533.

250

Ibid., p. 533.

só a proposições, mas também ao comportamento do falante. Nesse sentido, podem designar- se como ‘regras pragmáticas’”252. Alexy reconhece que “[o] cumprimento destas regras certamente não garante certeza definitiva de todo o resultado, mas caracteriza o resultado como racional”253. Segundo esse raciocínio poderíamos facilmente estabelecer uma relação entre fundamentação, correção e racionalidade, mas essa relação não é uma relação de identidade. Ainda segundo Alexy, “[a] racionalidade [...] não pode equiparar-se à certeza absoluta”254.

A fundamentação adequada da decisão judicial está ligada ao preenchimento de algumas regras do discurso racional. Isso não garante, todavia, que a decisão seja a correta, no sentido de a melhor possível. Sendo assim, a argumentação jurídica, as regras do discurso racional, onde se dá essa argumentação, servem para garantir a validade da decisão judicial, na medida que garantem sua racionalidade. Uma decisão que não seja racional não é válida. Por outro lado, uma decisão adequadamente fundamentada é uma decisão racional. Nesse caso, há uma identidade de critérios. Por outro lado é possível pensar em decisões racionais e válidas que não sejam as corretas, que não expressem a melhor interpretação e que não sejam legítimas. É preciso, portanto, um alargamento nos critérios de análise da decisão judicial, de modo a não confundir esses critérios.

Além disso, deve ser acrescentada uma perspectiva pragmática ou um critério pragmático para que se possa dizer com segurança se uma decisão judicial está adequadamente motivada. Como vimos, Marcelo Guerra optou por analisar a correção da decisão judicial a partir da perspectiva da atividade intelectual do juiz. Ao fundamentar a decisão, segundo o modelo proposto por Guerra, o juiz está tentando aplicar uma norma a um fato e, para isso, precisa fundar a existência de uma norma N e a ocorrência de uma fato F. Nada obstante, o modelo não está completo se não ficar evidenciado que a existência da norma N e a ocorrência do fato F somente necessitam ser fundamentadas a partir da controvérsia estabelecida e dos argumentos lançados pela partes no processo judicial. Em verdade, a decisão judicial é fruto de um diálogo entre as partes e o julgador, por isso, além dos critérios apresentados pelo autor, outros devem ser levados em conta.

Uma decisão será correta e fundamentada (destacando-se que nem toda decisão fundamentada é correta) à luz dos pedidos e dos argumentos apresentados pelas partes. A fundamentação relaciona-se não somente à questão jurídica em discussão absolutamente

252 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação…. Cit., p. 183. 253

Idem, ibidem. p. 183.

considerada, mas, sobretudo, às razões apresentadas pelas partes para que o juiz decida neste ou naquele sentido. Somente quando oferece razões suficientes aos argumentos apresentados pelas partes pode-se dizer que a decisão é adequadamente fundamentada. Tanto assim que a lei processual brasileira prevê o ônus de impugnação especificada dos fatos, a revelia, a existência de fatos incontroversos, o reconhecimento tácito do pedido etc.255. O dever de fundamentar a decisão judicial e a própria fundamentação da decisão judicial são, portanto, uma função do pedido e dos argumentos apresentados pelas partes, ainda que esta função relacione-se à existência da norma N e à ocorrência do fato F.

A fundamentação da decisão judicial, na quase totalidade dos casos, é uma resposta aos argumentos das partes. Só faz sentido falar em decisão adequadamente fundamentada, e mesmo em correção da decisão, a partir das questões controvertidas e na medida da extensão dessas questões. Em alguns casos, por exemplo, não há controvérsia quanto aos fatos, mas somente quanto à norma aplicável; em outros casos, a controvérsia será somente quanto aos fatos e não quanto à norma; em outros ainda, haverá controvérsia tão somente quanto ao sentido da norma ou quanto à sua aplicação no tempo ou no espaço.

Essa mudança de perspectiva oferece uma solução mais simples e convincente para o problema do regresso ao infinito apresentado por Marcelo Guerra. A decisão adequadamente fundamentada é aquela que se livra da carga argumentativa imposta por autor e réu, no processo judicial e segue as regras da argumentação jurídica. Sendo assim e grosso modo, uma decisão judicial estará adequadamente fundamenta quando oferecer um contra- argumento suficiente aos argumentos apresentados pelas partes e que, em tese, possam infirmar a conclusão a que chegou a própria decisão. Esse é um requisito necessário, mas não suficiente, como veremos, para afirmar que uma decisão judicial esteja adequadamente fundamentada.