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O Direito como integridade e o juiz Hércules

2. A SEMÂNTICA DA DECISÃO JUDICIAL: DISCRICIONARIEDADE E

2.4. O caminho hermenêutico de Ronald Dworkin

2.4.1. O Direito como integridade e o juiz Hércules

108 “Para Dworkin, a interpretação entendida como um empreendimento criativo e reconstrutivo, e não a

interpretação ‘conversacional’ ou orientada para a mera identificação da intenção subjetiva dos agentes, é o melhor método para compreendermos a natureza do Direito”. MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do Direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 15.

109 Como explica Macedo Junior, “a maior novidade de sua contribuição e da importante pauta teórica que ela

carrega não se refere à mera revalorização do papel dos princípios na interpretação do Direito, mas sim à formulação de uma poderosa teoria da controvérsia teórica, capaz de explicar a prática jurídica argumentativa e justificar a teoria interpretativa do Direito, que, ao mesmo tempo, se apoia no empreendimento de reconstrução racional de uma teoria da justiça e o justifica”. Op. cit. p. 14.

No prefácio a O Império do Direito, Dworkin explica que a obra pretende oferecer uma resposta de corpo inteiro à seguinte pergunta: “Como pode a lei comandar quando os textos jurídicos emudecem, são obscuros ou ambíguos?”110 Na verdade, como o próprio Dworkin admite, essa resposta foi desenvolvida por ele ao longo de muitos anos, ainda que descontinuamente, em muitos textos esparsos. Em O Império do Direito ela a oferece de corpo inteiro. Vale a pena transcrever a síntese da resposta oferecida por Dworkin:

o raciocínio jurídico é um exercício de interpretação construtiva, de que nosso Direito constitui a melhor justificativa do conjunto de nossas práticas jurídicas, e de que ele é a narrativa que faz dessas práticas as melhores possíveis111.

Eis aí a síntese do empreendimento dworkiano. Dworkin não oferece uma teoria da decisão judicial, mas oferece-nos, pelo menos em parte, algum fundamento sobre o qual apoiar uma teoria da decisão judicial. A partir dos fundamentos expostos no subtópico anterior, Dworkin oferece uma concepção do Direito como integridade em oposição a duas outras concepções que ele chama de convencionalismo e pragmatismo jurídico. O convencionalismo é a síntese das teorias semânticas do Direito, segundo essa concepção, “um Direito ou responsabilidade só decorre de decisões anteriores se estiver explícito nessas decisões, ou se puder ser explicitado por meio de métodos ou técnicas convencionalmente aceitos pelo conjunto dos profissionais de Direito”112. Já o pragmatismo jurídico descreve o Direito como uma prática segundo a qual, “os juízes tomam e devem tomar quaisquer decisões que lhes pareçam melhores para o futuro da comunidade, ignorando qualquer forma de coerência com o passado como algo que tenha valor por si mesmo”113.

A concepção do Direito como integridade “[i]nsiste em que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro”114. A base hermenêutica da teoria do Direito como integridade fica bastante evidente quando Dworkin afirma que as afirmações jurídicas “interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de

110Idem, ibidem. p. XI.

111Idem, ibidem. p. XI. 112Idem, ibidem. p. 119. 113

Idem, ibidem. p. 119.

desenvolvimento”115. É dizer, a prática jurídica contemporânea é uma política que se renova e se reconstrói a partir da contribuição dos intérpretes.

Dworkin parte da ideia de que, ao lado da justiça e da equidade, a integridade é uma virtude ou um ideal político. Não nos cabe aqui avaliar essa premissa, embora possam ser formuladas muitas críticas a ela. Pode-se questionar, por exemplo, qual o fundamento da integridade ou se a integridade não estaria, de algum modo, contida na ideia de justiça ou, ainda, se a integridade poderia fundamentar alguma concepção de prática jurídica; se não está, ela mesma, positivada, ou seja, se ela não é, em alguma medida, obrigatória para o intérprete. Outra crítica importante é o argumento da legitimidade que veremos com maior detença dos capítulos seguintes. Se o Direito é uma prática interpretativa que renova o próprio Direito, como estaria legitimada essa renovação ou a incorporação de conteúdos novos ao Direito, já que os intérpretes, os juízes e advogados, não tem legitimidade popular, uma vez que não foram eleitos pelo povo? De toda sorte, Dworkin parte da crença de que, ao lado da justiça e da equidade, a integridade é um terceiro e independente ideal, se acreditarmos nisso, ele diz, “pelo menos quando as pessoas divergem sobre um dos dois primeiros, então podemos pensar que, às vezes, a equidade ou a justiça devem ser sacrificadas à integridade”116.

Dworkin admite que “a prática do Direito é argumentativa”117, mas não detalha como se dá ou deveria se dar a argumentação jurídica. Esse ponto é de fundamental importância porque, algumas vezes, a figura do juiz Hércules, proposta por Dworkin, é equivocamente criticada como se se inserisse no âmbito de uma teoria da decisão judicial. Na verdade, o juiz Hércules é um mero artifício argumentativo que se insere em uma teoria do Direito. Sua função é “expor essa complexa estrutura da argumentação, e para tanto utilizarei um juiz imaginário, de capacidade e paciência sobre-humanas, que aceita o Direito como integridade”118.

O problema é que Dworkin não diz como essa “complexa estrutura da argumentação” acontece na prática ou se, de fato, ela tem condições de ocorrer, tal como se o resultado da ação interpretativa de todos os juízes e advogados tomados em conjunto fosse igual ou tivesse como resultado as ações do juiz Hércules. De qualquer forma, o artifício é interessante para expor como se daria a interpretação em uma concepção do Direito como integridade em condições ideais. Por óbvio, Hércules não serve de parâmetro para uma teoria da decisão judicial. Nenhum juiz de carne e osso “pode ou deve tentar articular suas hipóteses

115Idem, ibidem. p. 272 116Idem, ibidem. p. 215. 117 Idem, ibidem. p. 17. 118Idem, ibidem. p. 287.

até esse ponto, ou torná-las tão concretas e detalhadas que novas reflexões se tornem desnecessárias em cada caso”119, diz Dworkin referindo-se às hipóteses interpretativas abertas pela concepção do romance em cadeia e pela organização hierárquica dos diversos princípios jurídicos em curso. Ainda assim, o Direito como integridade ajuda a responder uma pergunta fundamental para a teoria da decisão judicial: é possível uma única resposta correta?