• Nenhum resultado encontrado

2. A SEMÂNTICA DA DECISÃO JUDICIAL: DISCRICIONARIEDADE E

3.1. Decisão Judicial e Argumentação

3.1.6. As questões jurídicas

255. O art. 341, do CPC, dispõe:

Art. 341. Incumbe também ao réu manifestar-se precisamente sobre as alegações de fato constantes da petição inicial, presumindo-se verdadeiras as não impugnadas, salvo se: I - não for admissível, a seu respeito, a confissão; II - a petição inicial não estiver acompanhada de instrumento que a lei considerar da substância do ato; III - estiverem em contradição com a defesa, considerada em seu conjunto.

Já o art. 344 estabelece:

Art. 344. Se o réu não contestar a ação, será considerado revel e presumir-se-ão verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor.

Como a decisão judicial adequadamente fundamentada se define a partir da controvérsia jurídica apresentada, é imprescindível definirmos o que é uma questão jurídica. A argumentação jurídica desenvolve-se sempre em torno dos pontos controvertidos. Não é o juiz que decide quais são esses pontos. Eles são estabelecidos a partir da manifestação das partes. Normalmente, o ponto central da controvérsia são (a) os fatos ou (b) as consequências jurídicas atribuídas a esses fatos, ou seja, a interpretação da norma jurídica. Sendo assim, a questão jurídica pode ser amplamente definida como qualquer ponto de fato ou de Direito sobre o qual dissentem as partes e que terá impacto, pelo menos potencialmente, na solução da controvérsia ou no julgamento da causa.

A maior parte da doutrina separa as questões em questões de fato e questões de Direito. Segundo Didier, “[c]onsidera-se questão de fato toda aquela relacionada aos pressupostos fáticos da incidência; toda questão relacionada à existência e às características do suporte fático concreto”256. Enquanto a questão de Direito é “toda aquela relacionada com a aplicação da hipótese de incidência no suporte fático”257. Preferimos classificar as questões jurídicas como gênero das quais são espécies as questões de fato e as questões de Direito. Isso porque a questão fática nunca é uma questão meramente fática. No processo judicial não se discute se os fatos existem ou são verdadeiros, mas se os fatos estão provados, o que envolve um conceito normativo e, portanto, jurídico. Sendo assim, para os fins de uma teoria da decisão judicial, não há diferenças significativas entre uma questão de fato e uma questão de Direito.

Isso, contudo, diz muito pouco a partir de uma perspectiva da linguagem. O que vem a ser ponto controvertido? É preciso alcançarmos uma compreensão das questões jurídicas a partir da filosofia da linguagem. Essa perspectiva será justificada, e ficará mais clara, no próximo tópico, por enquanto adiantaremos alguns aspectos.

O novo CPC diz, por exemplo, que, no dispositivo da sentença, o juiz resolverá as questões principais que as partes lhes submeterem258. Contudo, além das questões principais, que estão relacionadas ao pedido, uma mesma ação judicial pode compor-se de muitas outras questões jurídicas. A doutrina oferece muitas classificações das questões jurídicas: principais e acessórias, questões de fato e questões de Direito, questões preliminares e questões

256 Cf. por todos, DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito processual civil: introdução ao Direito Processual e

Processo de Conhecimento. Vol 1. 17 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2015. p. 439.

257

Idem, ibidem. p. 349

prejudiciais, questões de admissibilidade e questões de mérito259. Em uma decisão judicial, muitas questões jurídicas são decididas. Já tivemos oportunidade de definir as questões jurídicas principais como “a controvérsia judicial cuja solução é capaz de resolver, com ou sem mérito, uma das lides autônomas da relação jurídica processual”260. A questão jurídica principal corresponde a um capítulo da sentença261. Embora não seja conveniente aprofundarmos o estudo e a classificação das questões jurídicas no âmbito deste trabalho, cabe destacar que a correta compreensão das questões jurídicas é essencial para se definir de modo adequado uma decisão jurídica fundamentada.

Por ora, deve-se pontuar que a decisão judicial será adequadamente fundamentada quando responder, do ponto de vista lógico-argumentativo, aos argumentos apresentados pelas partes nos termos das regras estabelecidas pela argumentação jurídica. Voltemos ao exemplo discutido no item 4.1.3.. O autor A propõe uma ação contra o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, em que pleiteia a concessão de benefício previdenciário de pensão por morte instituído pelo segurado do regime geral da previdência social – RGPS, ao qual chamaremos segurado S. A alega que é menor e vivia sob a guarda de S. Invoca o art. 33, § 3.º, do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei 8.069, de 1990262 e o art. 227, da Constituição da República263. O INSS, em contestação, argumenta que a pensão por porte pretendida não pode ser concedida a A em virtude da alteração havida no art. 16, § 2.º, da Lei 8213/91, pela Lei 9.528/97264.

259 Para uma visão ampla acerca das questões jurídicas sob a perspectiva do Direito processual e suas

classificações cf. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito processual civil: introdução ao Direito Processual e Processo de Conhecimento. Vol 1. 17 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2015; capítulo XI.

260JORGE NETO, Nagibe de Melo. Sentença cível: teoria e prática. 4 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2013. p.

165. “Há questões jurídicas que não são capazes de formar lides autônomas como, por exemplo, saber se há legitimidade passiva de um dos réus para a causa ou, ainda, saber se o autor tem interesse processual na causa. São questões preliminares meramente processuais. Por outro lado, não é qualquer ponto controvertido de fato ou de Direito que pode ser considerado questão jurídica. Algumas vezes o ponto controvertido de fato é apenas o argumento capaz de solucionar a questão jurídica” (Ibid., p. 165). Ainda sobre a teoria da cognição judicial cf. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito processual civil: introdução ao Direito Processual e Processo de Conhecimento. 17 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2015. Cap. XI.

261 Para uma análise detalhada da teoria dos capítulos da sentença cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos

de sentença. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

262

Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o Direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.

[...]

§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de Direito, inclusive previdenciários.

263

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o Direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

264

Em sua redação originária o dispositivo assim dispunha:

Nesse caso, a questão jurídica principal é saber se A tem ou não tem Direito à pensão. Este é também o objeto do pedido, por isso se diz que essa é a questão jurídica principal. É a questão jurídica que deve ser decidida no dispositivo da sentença. Mas essa questão compõe-se de algumas outras questões, a saber: (a) se deve ser aplicado o ECA ou a Lei 8.213; (b) se os precedentes do STJ são favoráveis ou contrários ao pedido do autor. Uma decisão adequadamente fundamentada poderia ter a seguinte estrutura argumentativa:

(1) O ECA é especial quanto à matéria

(2) A Constituição manda proteger a criança e o adolescente (art. 227) (3) Há precedente do STJ em favor do pedido de A

(4) O Juiz não deve se valer de argumentos meramente consequencialistas .: (5) Deve ser aplicado o ECA

.: (6) A tem Direito à pensão

Se o INSS contestasse também matéria fática, como a existência e validade da guarda do menor A pelo segurado S, haveria outra questão jurídica: (c) há ou não guarda judicial de S em favor de A. E esta questão poderia se desdobrar em ainda outras, como saber se (d) o processo de guarda é válido ou não tem efeitos porque se constituiu em fraude. Nesse caso, a estrutura argumentativa anterior seria insuficiente. Uma fundamentação adequada teria a seguinte estrutura:

(1) Os documentos de fls. comprovam que o processo de guarda seguiu os requisitos legais e terminou antes do óbito de S

(2) As testemunhas comprovam que existia, de fato, uma relação de guarda, já que os pais da criança estavam ausentes

.: (3) O instrumento de guarda existe e é válido (4) O ECA é especial quanto à matéria

I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente;

[...]

§ 2º Equiparam-se a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação.

A Lei 9.528, de 1997, deu a seguinte redação ao dispositivo, retirando o menor sob guarda do rol das pessoas equiparáveis a filhos para fins de dependência previdenciária:

§ 2º .O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento.

(5) A Constituição manda proteger a criança e o adolescente (art. 227) (6) Há precedente do STJ em favor do pedido de A

(7) O Juiz não deve se valer de argumentos meramente consequencialistas .: (8) Deve ser aplicado o ECA

.: (9) A tem Direito à pensão

Como saber se os argumentos utilizados pela sentença são suficientes para fazer face aos argumentos utilizados pelas partes? Os argumentos usados pela sentença não precisam ser mais fortes ou melhores que os argumentos usados pelas partes. Isso envolveria uma análise valorativa que somente se resolve dentro do próprio contexto argumentativo. Eles precisam ser logicamente suficientes de se desincumbir do ônus argumentativo. Imagine uma decisão que não oferecesse uma justificativa para a aplicação do ECA, por exemplo, uma decisão que não se utilizasse da premissa (3). Essa decisão não estaria adequadamente fundamentada, já que aplicaria o ECA sem dar uma justificativa para a não aplicação da Lei 8.213/91.

A fundamentação adequada envolve apenas o conceito de mínima suficiência argumentativa. Os argumentos da decisão judicial para se desincumbirem do ônus argumentativo não precisam ser melhores ou mais fortes porque a qualificação melhor ou mais forte é uma qualificação valorativa que apenas se resolve no âmbito discursivo. Para dizer que os argumentos da decisão são fracos, ruins ou inadequados, as partes devem, em sede recursal, impugnar a própria decisão usando o discurso e as regras da argumentação.

Importante salientar que a decisão judicial do recurso, que reforma a decisão do primeiro grau, também precisa se desincumbir do ônus argumentativo não só com relação aos argumentos oferecidos pelas partes, mas também com relação aos argumentos oferecidos pela decisão recorrida. No exemplo mencionado, se a decisão de segundo grau reformar a decisão de primeiro grau, deverá oferecer razões capazes de, pelo menos em tese, infirmar as premissas (3) ou (7), devendo rebater todas as premissas utilizadas pelo julgador de primeiro grau que não fiquem logicamente invalidadas pelos argumentos usados pela decisão de segundo grau.

Alguns tópicos atrás definimos argumento como “uma série conectada de sentenças, declarações ou proposições (chamadas premissas) com que se pretende dar razões de algum tipo a uma sentença, declaração ou proposição (chamada conclusão)”265. A questão

265

SINNOTT-ARMSTRONG, Walter; FOGELIN, Robert. Understanding arguments: an introduction to informal logic. 8 ed. Belmont: Wadsworth, Cenage Learning, 2010. p. 3.

jurídica é a controvérsia que envolve a não aceitação da premissa ou da conclusão utilizada no argumento. Se a aceitação da conclusão ou de uma de suas premissas foi contestada pela parte ré, é dever do juiz desincumbir-se do ônus argumentativo e oferecer argumentos capazes, pelo menos em tese, de justificar o uso das premissas ou a aceitação da conclusão.

Uma vez que o juiz se desincumba do ônus argumentativo, a decisão estará adequadamente fundamentada. Isso não quer dizer, contudo, que a decisão estará correta ou, tampouco, que a decisão será a única decisão correta, mas que os argumentos utilizados pela decisão terão sido utilizados adequadamente, de uma perspectiva lógico-argumentativa e que, por isso, será fácil submetê-los ao escrutínio das partes, da comunidade acadêmica e dos demais órgãos do Poder Judiciário. Por meio desse exercício argumentativo transparente seria possível alcançar maior legitimidade na atividade criativa dos juízes.