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1. A DECISÃO JUDICIAL COMO ATO ARGUMENTATIVO-PRAGMÁTICO:

1.3. Fatos e Normas

A decisão judicial se pronuncia sobre pontos controvertidos. Basicamente, a decisão decide controvérsias. A doutrina processual chama esses pontos controvertidos de questões. Essas questões envolvem algum grau de controvérsia entre as partes sobre qual Direito aplicar ou sobre qual a melhor interpretação do Direito a aplicar, quando são chamadas questões de Direito; ou sobre a ocorrência, a prova ou a verdade dos fatos que dão suporte à aplicação do Direito, quando são chamadas de questões fáticas. A decisão judicial pode se manifestar somente sobre questões fáticas, quando não há controvérsia quanto ao Direito a aplicar; pode se manifestar somente sobre questões jurídicas, quando não há controvérsia quanto aos fatos; ou pode se manifestar quanto a questões fáticas e jurídicas, quanto a controvérsia abrange os fatos e o Direito.

Uma teoria da decisão judicial pode a um só tempo abarcar as questões fáticas e jurídicas? Quais as vantagens e desvantagens de uma teoria que pretenda abarcar todas as questões enfrentadas pela decisão judicial? Partimos do pressuposto de que a diferença existente entre questões fáticas e jurídicas faz necessárias duas teorias da decisão judicial: uma para a decisão judicial no que decide acerca dos fatos e outra para a decisão judicial no que decide acerca do Direito.

Tanto os fatos como o Direito são decididos no âmbito de um processo argumentativo. Mas a decisão quanto aos aspectos fáticos ou probatórios tem especificidades que tornam impossível sua adequada compreensão por uma teoria da decisão judicial que pretenda explicar como a interpretação das normas jurídicas levada a efeito pela decisão judicial pode ser avaliada e criticada. Nesse sentido, é de fundamental importância a distinção proposta por Marcelo Guerra entre os “problemas ético-normativos” do Direito probatório, relacionados à “interpretação e aplicação de normas relativas à prova judicial, as quais realizam escolhas fruto de opções ideológicas, sobre o que é lícito e/ou correto fazer”19; e os

“problemas epistêmicos” do Direito probatório, relacionados à “adoção de um modelo sobre

o que é racional acreditar como tendo ocorrido”20.

Os “problemas ético-normativos” dizem respeito à interpretação e aplicação de normas jurídicas que regulamentam quais os meios de prova admitidos em determinado processo judicial, como determinada meio de prova deve ser produzido e quais os seus limites, como se distribui o ônus da prova etc. Essas questões estão relacionadas à interpretação e aplicação do Direito que regulamenta os meios de prova, somente mediatamente dizem respeito ao problema do conhecimento ou da verdade. Os “problemas epistêmicos” da teoria da prova dizem respeito aos limites e possibilidade do próprio conhecimento acerca do que se quer provar, pergunta sobre o que é racional acreditar como tendo ocorrido em face da prova produzida21.

Como salienta Marcelo Guerra, somente pode-se falar de uma teoria geral da prova judicial quanto ao enfrentamento dos “problemas epistêmicos”, já que esses problemas não se condicionam pelo Direito posto. A teoria geral da prova judicial “seria, em seus pontos nucleares, uma disciplina independente de qualquer dos ramos de Direito processual e mesmo independente de qualquer ordenamento jurídico”22. Uma teoria geral da prova não estaria relacionada, portanto, com a interpretação das normas jurídicas, seria, antes, um resultado das possibilidades epistêmicas dos fatos do mundo. Este trabalho não abarca a decisão judicial enquanto ato que decide acerca da existência ou da verdade dos fatos, ocupa-se da decisão judicial apenas enquanto ato que decide acerca de questões jurídicas. É claro que a decisão judicial, pelo menos quando enfrentar questões fáticas, deve necessariamente se fundamentar em uma teoria geral da prova, a partir do enfrentamento dos problemas epistêmicos. Ainda que o enfretamento desses problemas não seja consciente, explicitado ou racionalizado na decisão judicial, toda decisão que decide sobre questões fáticas baseia-se em alguma concepção epistêmica sobre o conhecimento a partir da prova.

A teoria da decisão judicial que propomos se ocupa do processo argumentativo que culmina na decisão judicial, de certo modo ultrapassando-a, e que resulta na definição do Direito a aplicar. Sob esse aspecto, os “problemas ético-normativos” da teoria da prova, as normas jurídicas relativas à prova judicial, à admissibilidade dos meios de provas, à produção

20GUERRA, Marcelo Lima. Prova judicial: uma introdução. Fortaleza: Boulesis Editora, 2015. p. 2. 21

Além dos problemas epistêmicos da teoria da prova, pode-se falar em dimensão epistêmica do processo, o que envolve a questão de saber se “o processo pode ser interpretado como um instrumento epistemologicamente válido e racional, ou seja se esse é um instrumento ou um método eficaz para a descoberta e a determinação da verdade dos fatos em que se funda a decisão”. TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. [tradução: Vitor de Paula Ramos]. Madrid: Marcial Pons, 2012. p. 159. Para uma visão abrangente da dimensão epistêmica do processo cf. TARUFFO, Michele. Op. cit.

da prova, ao ônus da prova etc., serão mais fortemente impactados e, de certo modo, podem- se dizer abrangidos por uma teoria da decisão judicial que pretenda descrever e oferecer critérios de crítica da decisão judicial.

O mesmo não se pode dizer com relação aos “problemas epistêmicos” da teoria da prova. Em primeiro lugar porque esses problemas são independentes das normas jurídicas em vigor, ainda que a argumentação possa ter também quanto a eles alguma importância. Em segundo lugar porque a controvérsia fática não se submete a um diálogo externo. A controvérsia fática se exaure com o trânsito em julgado da decisão judicial, enquanto que a controvérsia jurídica tem seguimento para além do processo transitado em julgado, em outros processos onde as mesmas normas sejam aplicadas, assim como na formação de precedentes e na crítica e na modificação dos precedentes.

As regras da argumentação que se aplicam para o Direito e que são comumente estudadas sob o rótulo de argumentação jurídica, aplicam-se, se não totalmente, em larga medida para as questões fáticas, pelo menos no que diz respeito ao problemas “ético- normativos” relacionados às questões fáticas. Por outro lado, a decisão acerca da verdade dos fatos sempre envolve, ainda que sublimadamente, questões jurídicas que dizem respeito ao ônus da prova e aos meios de prova legalmente estabelecidos. Muitas vezes, a decisão judicial discute mais apropriadamente se o fato está adequadamente provado do que se o fato é verdadeiro.

Há uma diferença relevante entre questões fáticas e questões jurídicas para a teoria da decisão judicial. As questões fáticas normalmente não extravasam do âmbito processual. A decisão judicial transitada em julgado geralmente é definitiva quanto às questões fáticas. No que diz respeito às questões jurídicas, podemos falar em diálogo ou argumentação interna, que acontece no âmbito do processo judicial, e em diálogo ou argumentação externa, que acontece em toda a comunidade jurídica, nos demais processos judiciais que decidem a mesma questão, no influxo do sistema de precedentes, nas opiniões dos professores divulgadas em trabalhos acadêmicos, artigos científicos e, mesmo, no debate que acontece na sociedade civil junto à imprensa e outros meios. Nesses sentido, as sucessivas decisões judiciais sobre a mesma matéria ou sobre matérias semelhantes de algum modo definem ou cristalizam o Direito em vigor, mas também o modificam, criam-no, dão nova conformação ao Direito em vigor, Direito esse que sempre está a ser definido, modelado e remodelado pelas decisões judiciais.

Essa diferença parece suficiente para fazer claro que a teoria da decisão judicial que aqui pretendemos apresentar diz respeito apenas à interpretação do Direito, ainda que, em

alguns pontos, possa estar relacionada ou afetar os aspectos fáticos, especificamente quando estiver relacionada aos “problemas ético-normativos” da teoria da prova, na definição de Marcelo Guerra. Procuraremos oferecer uma teoria, a mais abrangente possível, que possa descrever e oferecer parâmetros para a crítica da decisão. Outro propósito é que a teoria seja tão simples quanto possível. Abrangência e simplicidade são requisitos importantes para a utilidade. Quanto mais abrangente e mais simples, mais útil será uma teoria, permitindo a adequada compreensão da decisão judicial e o estabelecimento de critérios seguros para a crítica da decisão. A simplicidade estaria irremediavelmente comprometida se ousássemos abordar, sob um mesmo enfoque, a decisão judicial enquanto ato argumentativo-pragmático que interpreta, cria, modela e define o Direito e ato argumentativo-pragmático ocupado da verdade dos fatos, sob uma perspectiva puramente epistemológica e não ético-normativa.

Sendo assim, o que será dito ao longo do trabalho não se aplica igualmente às questões fáticas e às questões jurídicas, mas se aplica à decisão judicial compreendida como um ato argumentativo-pragmático que resolve questões jurídicas. O problema que motiva o estudo, a indeterminação da interpretação do Direito, a discricionariedade do julgador e, portanto, a ausência ou dificuldade de controle da decisão judicial, é um problema intimamente relacionado às questões jurídicas. Nada obstante, a descrição da decisão como ato argumentativo-pragmático, a importância da argumentação, os critérios de fundamentação adequada, legitimidade e correção da decisão não excluem as questões fáticas. Abrangem-nas, se consideramos essas questões sob o aspecto das normas que orientam e delimitam a produção probatória.

Parece, portanto, bastante claro que uma teoria da decisão judicial não se confunde com uma teoria geral da prova. A teoria da prova é usada nas decisões judiciais, nos raciocínios e nos argumentos desenvolvidos na decisão. Mas enquanto a teoria da prova está ocupada em saber de que modo é racional acreditar na ocorrência de um fato; uma teoria da decisão judicial estará ocupada em saber como se estrutura o raciocínio ou a argumentação jurídica ou como deveria ocorrer a argumentação jurídica para possibilitar que a decisão judicial dê a melhor solução a uma controvérsia jurídica, a melhor interpretação ao Direito ou, por outra, a teoria estará ocupada em estabelecer e apresentar os critérios de crítica desta decisão, enquanto decisão que define (interpreta ou cria) o Direito a aplicar.

Feitas essas delimitações, já podemos acrescentar que dizer que o que se apresenta aqui é uma teoria da decisão judicial é, a rigor, incorreto. Pode parecer presunçoso. Isso porque essa teoria não explica alguns aspectos importantes da decisão judicial, como a decisão de questões fáticas ou a argumentação relacionada a aspectos puramente epistêmicos

da verdade dos fatos. Sendo assim, essa é uma teoria incompleta. Acreditamos, nada obstante, que o uso do termo se justifica, em primeiro lugar, porque falta outro termo para designar a descrição racional de um fenômeno, ainda que essa descrição seja incompleta, parcial ou imperfeita. As teorias, inclusive nas ciências exatas, frequentemente são incompletas, parciais ou imperfeitas.

Em segundo lugar, parece excessivamente preciosista falar de uma “teoria da decisão judicial no que tange à interpretação das normas jurídicas” sempre que nos referirmos à teoria da decisão judicial que apresentaremos ao longo do trabalho. O que caracteriza a decisão judicial é a interpretação e aplicação do Direito. Aliás, juristas e filósofos do Direito têm debatido acaloradamente sobre a conveniência de separar em dois momentos distintos a interpretação e a aplicação do Direito. O núcleo ou a essência da decisão judicial é a aplicação do Direito, o esclarecimento dos fatos é uma etapa necessária, mas não suficiente para o aperfeiçoamento da decisão. Isso parece justificar, pelo menos em alguma medida, que uma teoria da decisão judicial esteja ocupada em esclarecer o que o juízes fazem quando aplicam o Direito ao caso concreto, ainda que, pelas questões acima expostas, isso não envolva o estabelecimento ou a crítica de critérios epistêmicos quanto à verdade dos fatos.