• Nenhum resultado encontrado

O que os juízes fazem quando fundamentam as decisões judiciais?

2. A SEMÂNTICA DA DECISÃO JUDICIAL: DISCRICIONARIEDADE E

3.1. Decisão Judicial e Argumentação

3.1.4. O que os juízes fazem quando fundamentam as decisões judiciais?

Parece óbvio que, quando os juízes fundamentam as decisões judiciais, eles pretendem oferecer razões capazes de justificar suas decisões com base no Direito. No entanto, que espécie de razões devem ser essas? O que se entende por razões jurídicas? E quando se considera a decisão não fundamentada? Um primeiro ponto a considerar é o de que os juízes oferecem razões jurídicas para fundamentar suas decisão e não razões políticas, econômicas ou sociológicas.

Aqui, poderíamos entrar em uma discussão sobre o que é o Direito e qual a espécie de relação que há entre o sistema jurídico e os demais sistemas sociais. Este, contudo, não é o espaço adequado para esta discussão. Ainda assim, é importante destacar que, muitas

236Acerca da questão da prova dos fatos no processo judicial, cf. o relevantíssimo trabalho de Michele Taruffo:

Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. [tradução: Vitor de Paula Ramos]. Madrid: Marcial Pons, 2012.

vezes, nas decisões judiciais, os juízes se ocupam sobre o que é o Direito ou sobre em que medida razões econômicas, políticas ou sociais determinam ou condicionam a interpretação das leis. Nesses casos, essas discussões estarão também abrangidas pela argumentação jurídica.

O segundo ponto a considerar é que a decisão judicial é proferida dentro de um diálogo. As razões apresentadas pelos juízes como justificativa de suas decisões estão referenciadas a um discurso e às razões apresentadas pelas partes que disputam o Direito controvertido. A doutrina processual brasileira, assim como a jurisprudência, parecem bastante de acordo quanto ao fato de que a decisão judicial não estará corretamente fundamentada quando (a) disser mais do que deveria dizer; (b) disser menos do que deveria dizer; ou (c) disser o que não deveria ter dito. Trata-se das sentenças ultra, citra e extra

petita237. Em todos esses casos estabelece-se uma relação entre a fundamentação e o pedido ou a causa de pedir. Na medida em que consideram a atuação das demais partes que participam da relação processual, podemos dizer que esses critérios são critérios pragmáticos de correção da decisão judicial. A sentença não estará adequadamente fundamentada quando se afasta do pedido ou, quando, deixa de responder à carga de argumentação que é imposta ao julgador pelos argumentos lançados pelas partes.

Quando fundamentam as decisões, os juízes, ainda que indiretamente, também parecem querer convencer as partes e as instâncias superiores de que a melhor decisão é a decisão tomada, de modo a influenciar na resolução dos casos futuros e na intepretação do Direito nos casos semelhantes. O oferecimento de razões não é apenas uma justificação para um único caso. Os juízes ingressam em um discurso mais amplo que ultrapassa os limites do caso em julgamento, não se esgotando nele. Nesse ponto entram em jogo argumentos consequencialistas e de política judiciária.

A fundamentação que simplesmente apresente razões sem estabelecer um diálogo efetivo com as partes não é suficiente; como veremos, estariam descumpridas regras básicas do discurso prático racional. Essa ideia há algum tempo vem sendo defendida pela doutrina processualista brasileira238, mas não tem tido a mesma acolhida nos tribunais. A

237Para uma melhor compreensão das sentenças ultra, citra e extra petita cf. DIDIER JR., Fredie; BRAGA,

Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito processual civil: teoria da prova, Direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. Vol 2. 10 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2015, p. 360 e ss.; e JORGE NETO, Nagibe de Melo. Sentença cível: teoria e prática. 7 ed. Salvador: Jus Podivm, 2016, p. 35 e ss.

238 Sobre os requisitos argumentativos da decisão judicial a partir de uma perspectiva processualista cf. DIDIER

JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito processual civil: teoria da prova, Direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. Vol 2. 10 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2015, cap. X. Para uma crítica ao livre convencimento motivado como vem sendo entendido pela

jurisprudência ainda não conseguiu estabelecer com precisão esses critérios. O novo Código de Processo Civil é mais uma tentativa nesse sentido. Uma das alterações mais importantes do novo CPC veio com o estabelecimento de requisitos relacionados à carga de argumentação, requisito de saturação e observância dos precedentes judiciais, pelos §§ 1.º e 2.º, do art. 489.

Alguns autores defendem que, a partir de uma perspectiva neuro-psico-fisiológica, as razões dadas pelos juízes em suas decisões guardam pouca relação com os reais motivos pelas quais as mesmas decisões são tomadas. As razões seriam apenas justificativas vazias que não explicariam o real motivo das decisões. A filosofia da ciência de algum tempo distingue entre o contexto de descoberta e o contexto de justificação com relação às teorias científicas. Uma coisa é sabermos que a água ferve a 100ºC ao nível do mar (contexto de descoberta). Outra coisa é sabermos por que a água ferve a 100ºC ao nível do mar (contexto de justificação).

O contexto da descoberta não está ligado a um procedimento argumentativo do tipo lógico, mas sim a constatações empíricas, observáveis pelos sentidos e que, normalmente, são indisputáveis. Já o contexto da justificação implica o desenvolvimento de teorias (argumentos) que expliquem o fenômeno observado. A mesma distinção pode-se estender ao campo da argumentação jurídica, sendo assim, “uma coisa é o procedimento mediante o qual se estabelece uma determinada premissa ou conclusão, e outra coisa é o procedimento que consiste em justificar essa premissa ou conclusão”239.

Autores mais céticos afirmariam que os juízes decidem e depois teriam ampla margem para justificar suas decisões, de modo que as razões jurídicas não exercem papel relevante nas decisões judiciais e sim fatores outros, como os preconceitos e prejuízos, as concepções políticas, a origem social, a formação ideológica, a história de vida e, até mesmo, a hora do dia ou o nível da fome240.

Ainda que seja inegável que os juízes são, de fato, influenciados por seus preconceitos e prejuízos, por suas concepções político-ideológicas241, por sua história de vida e, até mesmo, pela hora do dia ou nível da fome em que a decisão foi tomada, disso não se

jurisprudência pátria cf. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

239ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica: Perelman, Toulmin,

MacCormick, Alexy e outros. [tradução: Maria Cristina Guimarães Cupertino]. 2 ed. São Paulo: Landy, 2002. p. 22.

240

Acerca das implicações neurofisiológicas do processo de tomada de decisão, cf. KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. [Tradução: Cássio de Arantes Leite]. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012; bem como DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. [Tradução: Dora Vicente; Georgina Segurado]. São Paulo: Companhia das Letras, s/d.

241

Sobre o tema cf. PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

pode concluir que a argumentação e a justificação das decisões judiciais são carentes de utilidade. Pelo contrário. O que ocorre, muitas vezes, é um diálogo entre a primeira intuição do julgador e as razões que são possíveis para justificar a decisão. Esse diálogo se processa diversas vezes até que o juiz chegue à conclusão a partir da resposta adequada aos argumentos apresentados pelas partes. Como se, ao se deparar com o caso concreto, o juiz tivesse a primeira intuição da decisão e mirasse um alvo a ser atingido, mas procedesse a diversos ajustes no alvo e na trajetória da flecha a partir da justificação que se dá na argumentação jurídica.

Além disso, as razões jurídicas produzidas pelas partes em casos semelhantes servirão, dentro da perspectiva do diálogo ou discurso externo e do uso dos precedentes, para limitar a discricionariedade do julgador e estabelecer um padrão de racionalidade, universalidade e coerência as decisões. As razões manifestadas por um juiz ou tribunal irão limitar a discricionariedade judicial em matérias semelhantes, na medida em que estabelecem uma carga argumentativa para as decisões futuras para o mesmo órgão ou para o órgão inferior de jurisdição.

Assim, ainda que se admita a importância dos processos neuropsicofisiológicos242 do comportamento argumentativo das partes e do julgador, é também inegável que a argumentação jurídica não é apenas um disfarce para os reais motivos da decisão. Mais que isso, a argumentação jurídica é um verdadeiro limitador, um filtro de racionalidade contra a influência indevida desses fatores.