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Ato argumentativo-pragmático

1. A DECISÃO JUDICIAL COMO ATO ARGUMENTATIVO-PRAGMÁTICO:

1.2. Ato argumentativo-pragmático

Parece bastante evidente que a decisão judicial é produzida pelo juiz ou por outros órgãos do Poder Judiciário como as câmaras, turmas ou seções dos diversos tribunais do país. Dentro desta perspectiva, a decisão seria o produto de um ato intelectual isolado daqueles que integram o órgão de julgamento: juízes, desembargadores e ministros. Mas a decisão judicial pode ser vista sob um outro ângulo. Do ponto de vista do discurso, enquanto ato de fala ou ato comunicativo, que espécie de ato é a decisão judicial? Qual o nível de participação das partes e dos advogados na produção deste ato comunicativo? Podemos afirmar que a decisão judicial é produto de um discurso? Se o é, podemos dizer que a decisão é fruto de um discurso racional? E em que casos podemos dizer que o discurso de que se trata pode ser qualificado como racional?

Está fora de dúvida que a decisão judicial é um ato linguístico, ou um ato comunicativo, em que o órgão judicial comunica às partes uma ordem e a justificativa para a ordem. A decisão judicial estatui a norma que regerá o caso concreto. Mas, além de estatuir a norma, a decisão responde aos argumentos das partes; insere-se, portanto, em um discurso, em uma atividade argumentativa, procurando justificar a norma mesma e o alcance da norma que estatui. Sob essa perspectiva, a decisão é produto de uma atividade argumentativa. Para a construção desse produto contribuem muitos atores: as partes da relação processual e, em uma perspectiva mais ampla, a comunidade jurídica como um todo. Essas ideias serão detalhadas ao longo do trabalho.

A sentença é o exemplo clássico de decisão judicial. Nosso Direito positivo estabelece que os elementos da sentença são o relatório, a fundamentação e o dispositivo18. No relatório o julgador apresenta o caso e os argumentos das partes, enquanto que na fundamentação o julgador oferece uma justificativa para a norma que será estatuída no dispositivo. Nos acórdãos, a lei estabelece a necessidade do relatório e do voto, onde serão lançados a fundamentação e o dispositivo da decisão. Em toda decisão judicial, mesmo nas decisões interlocutórias, é possível divisar, em maior ou menor grau, esses três elementos,

18

O art. 489, do Código de Processo Civil assim estabelece: Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;

II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de Direito;

ainda que em muitas delas o relatório seja suprimido ou apareça muito resumido. Sob esse prisma, é incorreto dizer que a decisão judicial é um ato argumentativo, na medida em que apenas parte dela é uma ato argumentativo. A fundamentação seria o ato argumentativo por excelência, mas não o relatório e o dispositivo.

Nada obstante, pode-se afirmar por extensão que a decisão judicial como um todo é um ato argumentativo porque a própria ordem judicial, a norma estatuída pelo dispositivo da decisão, é produto de um processo argumentativo. Não há relatório, nem fundamentação, tampouco dispositivo sem argumentação. A argumentação e o contexto pragmático definem, não só a fundamentação, mas a decisão judicial como um todo. Mesmo na sentença, todos os seus elementos estão voltados, direcionados, existem e se estruturam em função da atividade argumentativa que é desenvolvida pelo juiz e pelas partes da relação processual.

Nesse sentido parece correto afirmar que a decisão judicial é produto de um processo argumentativo. Mas isso ainda não é suficiente, não traduz adequadamente toda a dimensão da decisão judicial. A palavra “produto” não a define adequadamente porque a decisão, ao mesmo tempo em que é um produto, insere-se no processo argumentativo. Quando usamos o termo “produto”, a ideia comum é que o produto não está diretamente envolvido no processo, não contribui com o processo de produção, mas é consequência do processo. Dito de outro modo, o produto é o output do processo produtivo, não se confunde com os inputs. Na fabricação de picolé, o picolé não contribui para o processo de sua própria fabricação, assim também com chocolate ou com o leite. A decisão judicial, ao contrário, é produto de um processo argumentativo, mas, ao mesmo tempo, é um elemento desse processo, contribui para esse processo, não está alijada dele como os inputs estão alijados do

output.

A decisão judicial, a um só tempo, é o resultado de um processo argumentativo e causa eficiente desse resultado, assim como são causas eficientes os argumentos apresentados pelas partes. Isso porque, além de processar os argumentos oferecidos pelas partes e incorporá-los à decisão, o julgador pode oferecer argumentos novos ou uma nova leitura dos argumentos oferecidos pelas partes. Por outro lado, os argumentos apresentados na decisão são, eles mesmos, inputs para a interpretação da norma que se cristaliza no dispositivo. A decisão judicial apresenta-se, portanto, como input e output. É input da interpretação que é dada à norma jurídica, mas é output quando ela mesma enuncia e, em alguma medida, ainda que provisoriamente, consolida a interpretação da norma. Digo em alguma medida e provisoriamente porque, como veremos, esta consolidação nunca é total, já que a decisão estará sujeita a recursos e poderá ser desafiada por outras decisões e pela comunidade

acadêmica. Mesmo a interpretação do Direito dada em decisões transitadas em julgado estará sujeita à superação em novas decisões.

Poder-se-ia argumentar que haveria uma confusão terminológica aí: o elemento que participaria do processo argumentativo seria a fundamentação da decisão, já o dispositivo seria o produto do processo argumentativo. Esta visão segmentada dos elementos da decisão judicial traz algumas desvantagens e complicações importantes. Em primeiro lugar, a segmentação estaria dissociada do que ocorre no mundo fático. É certo que muitas vezes a própria decisão apresenta como elementos separados o relatório, a fundamentação e o dispositivo; mas é igualmente certo que a decisão é o conjunto de todos eles. Esses elementos não existem isoladamente. Além disso, fundamentação e dispositivo, justificativa e ordem judicial, estão sempre referenciados um ao outro. A ordem judicial somente se pode compreender à luz de sua justificativa e a justificativa ou fundamentação existe para suportar a ordem judicial contida no dispositivo. É possível mesmo dizer que o dispositivo traz em si, implicitamente, a fundamentação. Por outro lado, as razões de decidir não podem ser adequadamente compreendidas, na verdade nem se pode dizer que existam como tais, separadas do dispositivo.

Além disso, é importante perceber, de logo, que a decisão judicial não é o produto final de um processo argumentativo, mas apenas um ato desse processo. Depois de proferida, a decisão poderá ser desafiada por recursos e, em um contexto mais amplo, por decisões proferidas em outros processos semelhantes e até pelos argumentos lançados pela comunidade acadêmica e pela comunidade jurídica como um todo. A argumentação jurídica, como será detalhado ao longo deste trabalho, não está restrita ao processo judicial que decide um caso concreto. A argumentação acontece no processo judicial e, para além dele, fora do processo, pelo sistema de precedentes e pelos influxos argumentativos da comunidade jurídica e acadêmica.

É nesse sentido, portanto, que utilizamos o termo “ato argumentativo- pragmático”. A decisão judicial é um ato praticado em uma argumentação ou processo argumentativo, que somente pode ser adequadamente compreendido se levarmos em conta o “contexto pragmático”. Isso diz mais que simplesmente dizer que a decisão é produto de um diálogo. O contexto pragmático é próprio de toda atividade comunicativa ou da argumentação; ainda assim, parece necessário destacar o termo, dado que esse aspecto tem sido negligenciado nos estudos acerca da decisão judicial. O termo, como já explicitado, é um paralelo com a teoria dos signos. Não se pretende aqui transportar o significado que tem lá

sem qualquer adaptação. Ainda assim a utilidade do paralelo parece justificar a utilização do termo.