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4. A CRIAÇÃO DA MODALIDADE DE ASSENTAMENTO PDS EM ANAPU

4.2. A grilagem de terras na ocupação de Anapu

A grilagem é entendida como a legalização do domínio da terra através de um falso documento, ou a apropriação ilícita de terras por meio da expulsão de posseiros, ou indígenas. Compreende diversos mecanismos de falsificação de documentos de propriedade de terras, negociações fraudulentas, chantagens e corrupções que têm envolvido o poder público e os entes privados (IPAM, 2006). As finalidades da grilagem, segundo CPI federal (Brasil, 2002, p. 556), incluem:

a) revender as terras em grande escala e, com isso, obter ganhos financeiros; b) obter financiamentos bancários para projetos agropecuários, dando a terra como garantia;

c) obter terra para assegurar a exploração madeireira ou para uma futura atividade agropastoril;

d) dar a terra grilada como pagamento de dívidas previdenciárias e fiscais; e) conseguir indenização nas ações desapropriatórias, para fins de reforma agrária ou de criação de áreas protegidas.

O Livro Branco da Grilagem de Terras no Brasil (s.d., p. 12) define que ―toda ação ilegal que objetiva a transferência de terras públicas para o patrimônio de terceiros constitui uma grilagem ou grilo‖, constituída portando como ação ilegal, cometida por particulares, com a pretensão de se apropriar das terras públicas. De acordo com informações do Ministério do Desenvolvimento Agrário:

A grilagem de terras acontece normalmente com a conivência de serventuários de Cartórios de Registro Imobiliário que, muitas vezes, registram áreas sobrepostas umas às outras — ou seja, elas só existem no papel. Há também a conivência direta e indireta de órgãos governamentais, que admitem a titulação de terras devolutas estaduais ou federais a correligionários do poder, a laranjas ou mesmo a fantasmas — pessoas fictícias, nomes criados apenas para levar a fraude a cabo nos cartórios. Depois de obter o registro no cartório de títulos de imóveis, o fraudador repetia o mesmo procedimento no Instituto de Terras do Estado, no Cadastro do Incra e junto à Receita Federal. Seu objetivo era obter registros cruzados que dessem à fraude uma aparência de consistente legalidade. (Grilagem: balanço definitivo). Disponível em www.mda.gov.br.

Anapu se tornou uma das regiões consideradas representativas da problemática da grilagem de terras públicas, no que se refere a agentes envolvidos, recursos naturais e processos de ocupação. Essa prática de fraudes se tornou recorrente nos cartórios da região, onde foram forjadas diversas práticas de grilagem de terras públicas, contando com o apoio de servidores desses cartórios e da passividade dos órgãos públicos responsáveis. Fernandes (1999) afirma que o processo de privatização das terras na

região se dava por meio fraudulento, mesmo quando a transação era, por parte do comprador, supostamente legal. É que as áreas eram vendidas antes de serem requeridas ao Estado, tornando ilegal a prática do vendedor. Dessa maneira nota-se que a grilagem de terras na região não é um fato novo, acontecendo desde a década de 1950. Em parte, a ineficiência das políticas públicas e, em muitos casos, a ausência das mesmas, dão suporte, por um lado, à ação criminosa de latifundiários, grileiros, madeireiros e, muitas vezes, a não menos criminosa ação de representantes do poder público.

Pode-se dizer que ao longo dos últimos 40 anos, o processo de registro de terras rurais na Amazônia apresentou muitas falhas e irregularidades, apesar de parte dessas irregularidades ter ocorrido ainda na década de 1970. Em 25 de abril de 2000, a Comissão Parlamentar de Inquérito das Terras Públicas da Amazônia foi instalada para investigar diversos acontecimentos envolvendo a apropriação indevida e ilegal de extensas áreas de terras pertencentes ao patrimônio público que, sem ter o devido respaldo documental, passaram por mecanismos ilícitos a mãos de particulares, pessoas físicas e jurídicas, com grave lesão para os estados e a União. Assim, constata-se que a privatização de terras públicas é prática comum na Amazônia, sobretudo na história recente da região, que se tornou palco de luta e resistência de posseiros, ribeirinhos, lavradores e defensores de direitos humanos na busca de uma reforma agrária e de um desenvolvimento capaz de garantir melhores condições de vida e a preservação da Amazônia.

No município de Anapu havia uma grande quantidade de terras alienadas por meio de CATP, pois a partir de 1975 foram sendo abertos processos licitatórios de terras públicas visando a implantação de projetos agropecuários. Os CATPs autorizavam o uso das terras mediante alienação, obrigando os concessionários a implantar projetos de produção e viabilizá-los em um período de cinco anos, a partir de quando o Incra deveria fazer vistorias nas áreas licitadas. Caso os requisitos dos contratos fossem cumpridos, os beneficiários poderiam adquirir o título definitivo de propriedade. Caso não, o contrato poderia ser cancelado e a terra deveria voltar a fazer parte do patrimônio da União (INCRA, 2010).

Muitos dos signatários de contratos nas áreas cobertas por CATPs não desenvolveram atividades agropecuárias. Em algumas delas, diversas famílias sem terra foram estabelecendo áreas agrícolas e pastos ou se engajando nas atividades madeireiras que começavam a crescer de forma ilegal na região. Nas primeiras vistorias realizadas

na década de 1980, o Incra constata que uma parcela significativa das terras alienadas fora repassada pelos concessionários a terceiros por diferentes meios fraudulentos.

(...) o Incra fez vistorias na região e constatou que a maioria não cumpria os termos dos contratos de alienação, principalmente, por nunca implantar tais ―Empresas Rurais‖, quando não já teriam vendido tais áreas a terceiros sem anuência do Incra e levados a registro cartorial indevidamente, como se fossem propriedades. Iniciando, a partir daí diversas ações, administrativas e judiciais, para retomar a posse destas áreas e destiná-las à reforma agrária (INCRA/ANAPU, 2010).

Desta forma, por não terem sido cumpridas as cláusulas estabelecidas em contratos, o Incra passa a reincorporar ao patrimônio da União as glebas licitadas via CATPs e também realiza os primeiros cadastros de posseiros. A partir disso começam a se estabelecer disputas judiciais entre o Incra e os pseudo empresários, ampliando desta forma os conflitos fundiários violentos envolvendo posseiros e grileiros.

A problemática dos conflitos e a violência no estado do Pará aparece, portanto, num contexto de ausência da gestão oficial do território, mostrando uma omissão do Estado nesses cenários, marcados pela indefinição da propriedade da terra, o que acaba incentivando a prática da grilagem e a apropriação ilegal de terras públicas, pelo uso da violência.

Parte dos lotes licitados pelo edital de concorrência nº 4/72 situava-se nas glebas Belo Monte (com 510 mil hectares) e Bacajá (com 210 mil hectares), ambas situadas entre as cidades de Altamira e Marabá, localizadas, respectivamente, ao norte e ao sul da rodovia Transamazônica. As grandes extensões de terras atraíram pessoas interessadas em explorar madeira da floresta ou a agropecuária.

Em 1980 e 1981, o Incra iniciou as vistorias nas áreas situadas nas glebas Bacajá e Belo Monte para verificar o cumprimento das obrigações estabelecidas nos contratos de alienação (CATPs). O órgão constatou que muitos lotes se encontravam em situação de total abandono, ou repassados a terceiros. Pressionado pelas organizações representativas dos trabalhadores rurais, o Incra entrou com ações judiciais para cancelar o registro imobiliário dessas áreas e revertê-las à União, destinando-as à reforma agrária. Embora algumas das decisões judiciais tenham sido favoráveis à União, os grileiros não desocuparam as terras, fomentando conflitos agrários e a violência contra os trabalhadores e demais defensores de direitos humanos (SAUER, 2005).

Estes conflitos ganharam peso quando a extração madeireira ilegal e a pecuária passaram, a partir da década de 1990, a atrair investimentos cada vez maiores. Esse

contexto fora reforçado pela liberação de recursos públicos via SUDAM, para que empresários desenvolvessem projetos florestais e de pecuária bovina nas áreas de CATPs, áreas estas que o Incra judicialmente já solicitava a posse para posteriormente destinar à reforma agrária. Este cenário demonstra contradições marcadas pela divergência entre políticas públicas conduzidas por diferentes órgãos federais, que potencializaram os conflitos fundiários na região.

Assim, os movimentos sociais reivindicaram que essas terras, na maioria das quais não havia produção, fossem devolvidas à União e transformadas em áreas de preservação ou em projetos de assentamento, destinados à agricultura familiar. Inicia-se então uma proposta diferenciada nestas grandes áreas pertencentes à União, para trabalhar a terra mantendo uma relação com a floresta, garantindo a sustentabilidade ambiental.

Neste contexto de ampla tensão social e ambientalização7 dos conflitos fundiários, devido aos impactos do desmatamento, reforça-se entre os movimentos sociais locais a proposta de adotar uma nova forma de assentamento de reforma agrária, que, até então, era inexistente na estrutura fundiária brasileira, o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) (FOLHES et al., 2016, p. 307).