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3. ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA CAIPIRA

4.6. A Guisa de Conclusão

As evidências detectadas no estudo permitem afirmar que o folclore ainda tem seu espaço na sociedade contemporânea, mas seria temerário e caricatural acreditar que o trânsito de elementos culturais dar-se-ia automaticamente, destituído de mediações e sem sensíveis alterações quer na forma, quer no conteúdo. A apropriação de elementos culturais de um grupo social por outro ocorre mediante o processo de refuncionalização (Benjamin, 2004), no qual a manifestação folclórica, ao perder sua função original, pode adquirir um novo significado e função.

A ‘negociação simbólica’ para a incorporação de novos conteúdos ganha assim importância na compreensão das identidades grupais e das dinâmicas culturais, ambas formuladas parcialmente pelo papel desempenhado pelas mídias.

O presente estudo aponta algumas evidências do tratamento midiático dado ao Unhudo:

1) O mito aparece na mídia de forma multi-territorial, ou seja, é descrito como um mito local (programa giro São Paulo, reportagem do JC 29/10/2000), regional (Programa Linha de Frente, Programa Lendas do Tietê, reportagem JC 31/10/2001) e até mesmo nacional (Programa Hora da Verdade). Prevalece, porém a versão regional.

2) O Unhudo é abordado preferencialmente como um mito do passado em apenas duas unidades jornalísticas (Programa Linha de Frente, Programa Lendas do Tietê) as demais (4 unidades jornalísticas) mostram o mito atualizado.

3) Em relação aos atores sociais que aparecem na mídia em relação ao mito, foi dado destaque aos populares de Dois Córregos (tanto urbanos quanto rurais) em apenas uma das unidades jornalísticas (Programa Linha de Frente). As outras unidades jornalísticas apesar de terem entrevistado populares, os depoimentos aparecem de forma secundária, pois a versão escolhida pelos programas ao definir o Unhudo é outra. As

autoridades presentes nas unidades jornalísticas são as seguintes: - o historiador Heusner Grael Tablas e sua versão oficial do mito como lenda e guardião da Pedra Branca aparece nos programas Lendas do Tietê, o qual auxiliou o repórter na produção, e nas duas reportagens do Jornal da Cidade para o qual foi entrevistado. – guia turística e sua visão do Unhudo como atrativo e protetor da mata aparece no Programa Giro São Paulo que valida as opiniões de Cristina Cury.

– o parapsicólogo prof. Antonio que reitera em seu discurso supostamente “científico” que fantasmas “somos nós que criamos com a imaginação”.

4) As estratégias comunicacionais estão repletas de relatos, entrevistas e depoimentos de populares e autoridades dando o seu ponto de vista sobre o mito. Algumas reportagens lançam mão de estratégias sensacionalistas para conquistar o público como três das unidades analisadas: Programa Linha de Frente, Programa Hora da Verdade e reportagem do JC de 29/10/2000: “Unhudo apavora Dois Córregos”. No caso televisivo o Gerador de Caracteres é um recurso bastante utilizado para chamar a atenção do telespectador nos programas Linha de Frente e Hora da Verdade. O GC cria legendas, mas é utilizado também para fazer manchetes em faixas sobrepostas à imagem. Isso pode segurar a atenção do telespectador quando a TV não dispõe de imagens espetaculares ou apresenta pessoas desconhecidas do público, pois a chamada revela o tema abordado.

5) Ainda em relação às estratégias comunicacionais, as ilustrações sobre o mito revelam apropriações importantes: das seis unidades jornalísticas duas apresentam figuras condizentes com seu relato na cultura tradicional: Programa Hora da Verdade e a reportagem do JC de 31/10/2001. Duas unidades apresentam influência midiática: Programa Lendas do Tietê e Programa Linha de Frente. O programa Giro São Paulo apresenta três ilustrações do mito: uma com influência midiática – um boneco – outra com referencial da cultura caipira e uma última que indica a

humanização do mito, ao ser representado como ser humano, e encenado por uma mulher. A reportagem do JC de 29/10/2000 apresenta também influência mista: tanto da cultura rústica quanto da versão refuncionalizada do mito como protetor da natureza. 6) Sobre os referentes culturais elementos da cultura tradicional não são abordados nas seguintes unidades jornalísticas: Programa Hora da Verdade, Programa Giro São Paulo, Reportagem do JC de 31/10/2001. A cultura caipira aparece como atual no Programa Linha de Frente e na reportagem do JC de 29/10/2000, e na perspectiva histórica, como uma cultura do passado, aparece no programa Lendas do Tietê.

7) O mito é identificado como um mito rural em quatro unidades jornalísticas: Programa Linha de Frente, Programa Lendas do Tietê, Programa Hora da Verdade e reportagem do JC de 29/10/2000. No ‘Hora da Verdade’ a abordagem de mito rural está implícita no cenário da reportagem, a zona rural, mas em nenhum momento isso é anunciado pelo programa. Apesar de identificado como mito rural, aparece refuncionalizado, passa de criatura apavorante na cultura caipira, a protetor ecológico no programa Lendas do Tietê e na reportagem do JC de 29/10/2000, na qual é descrito como “guardião da Pedra Branca”. No Programa Giro São Paulo além de ser apresentado como protetor ecológico, é também refuncionalizado como atrativo turístico da localidade. Na reportagem do JC de 31/10/2001 o mito é alçado a elemento de resistência à globalização. O Unhudo absorve elementos da sociedade globalizada como a defesa do meio-ambiente, a ecologia e o turismo em quatro das seis unidades jornalísticas.

A primeira das questões que se coloca refere-se à circulação dos elementos culturais e sua apropriação pela mídia. Produto da interpretação do mundo pela cultura rústica, o Unhudo foi originalmente arquitetado como elemento de julgamento dos homens e de suas ações, fluindo através da folkcomunicação como uma entidade aterrorizante que, sob formas múltiplas, encontra-se registrado em todas as culturas. Sua refuncionalização

operada por elementos estranhos ao mundo caipira sugere a domesticação do mito, seu ‘adestramento’ para o ‘bem’ – a questão ecológica - e para as necessidades do capital, já que transformado em elemento rentável através da empresa turística. O turismo, além da parte econômica, está relacionado à busca de qualidade de vida – lazer - na sociedade contemporânea.

Nesse sentido, a modernização de um mito suscitou um alinhamento da trama tradicional e centenária com uma causa global – a defesa do meio ambiente – e excluiu o fundamento do tradicional, do caipira, de uma cultura que se tornou, tal como o mito, positiva ao sofrer uma espécie de tratamento de ajustamento em relação aos pendores de uma sociedade que, situada na periferia do capitalismo, empenha-se em assumir os tons da atualidade.

Sociologicamente, o mito varia de lugar para lugar e dá suporte e validação a uma ordem social específica. Para Campbell essa função do mito, a de se referir a uma cultura determinada, está desatualizada (2002, p.32). A função sociológica fala ao homem sobre os princípios éticos de uma sociedade ideal, um comportamento de uma época que não mais existe. Nesse aspecto, a função mítica que mais se aproxima do mundo contemporâneo é a pedagógica, que auxilia as pessoas “como viver uma vida humana sob qualquer circunstância” (CAMPBELL, 2002, p.33). Ainda para Campbell, ao deixar a função sociológica, pode ajudar a humanidade a ter uma nova concepção do universo e reaprender com a sabedoria da natureza, desse modo é possível despertar “a consciência de nossa fraternidade com os animais, a água e o mar” (2002, p.33). No contexto midiático, de valores universais e cosmopolitas, a função sociológica se perde e o mito deixa de ser específico de um povo ou de uma localidade para falar de todo o planeta. O mito do Unhudo da Pedra Branca ao perder o referencial da cultura caipira é refuncionalizado com características globais de preocupação ecológica e interesses turísticos, como tentativa humana de estabelecer uma relação harmoniosa com a natureza.

E o único mito de que valerá a pena cogitar, no futuro imediato, é o que fala do planeta, não da cidade, não deste ou daquele povo, mas do planeta e de todas as pessoas que estão nele. Esta é a minha idéia fundamental do mito que está por vir (CAMPBELL, 2002, p.33).

A mídia compartilha os valores globais de preservação do meio ambiente e ao mesmo tempo em que contribui para a legitimação da cultura local também a modifica, pois o mito ressurge na tela da TV refuncionalizado, num contexto relacionado aos valores globais, mas sem que deixe de existir. O mito do Unhudo perde, portanto, parte de sua singularidade, mas vai continuar a lidar com questões de como se relacionar em determinada sociedade e como relacionar essa sociedade com a natureza, mas agora não em referência à cultura tradicional e sim à sociedade globalizada.

Sim, essa é a base do que o mito deve ser. E já se encontra aqui: o olho da razão, não da minha nacionalidade; o olho da razão, não da minha comunidade religiosa; o olho da razão, não da minha comunidade lingüística. Você percebe? E esta será a filosofia do planeta, não deste ou daquele grupo. Quando a Terra é avistada da Lua, não são visíveis, nela, as divisões em nações ou estados. Isso pode ser, de fato, o símbolo da mitologia futura. Essa é a nação que iremos celebrar, essas são as pessoas às quais nos uniremos (CAMPBELL, 2002, p.34).

A refuncionalização midiática opera mudanças na forma e no conteúdo, mas as imagens do Unhudo na mídia apesar das diferentes influências buscam na cultura rústica, elementos do mito para compor um referente que desperte o interesse do receptor enquanto novo mito da sociedade globalizada.

O mito do Unhudo também coloca em questão a autonomia relativa da mídia frente aos acontecimentos. Insuflada pelos interesses políticos e econômicos, a mídia teve sua atenção voltada para a mitologia dois-correguenses e, ao pretensamente entusiasmar-se por uma das expressões da cultura caipira, optou por conferir destaque à representação assumida pelos ‘donos do poder’ local. Com isto, contribuiu para a recriação do mito segundo os termos que julgou serem mais afinados com seus próprios interesses e necessidades. Poucos talvez tenham prestado atenção no fato de os entrevistados que declararam acreditar no mito, segundo a versão original, terem pouco tempo de exposição midiática na maioria dos programas e, de certa forma, foram tratados como representantes raros da ingenuidade que ainda muitos teimam em localizar na ‘alma’ caipira. Enfim, entre nós – os modernos – e os outros – os caipiras – existe um extenso território de separação: o da nossa pretensa racionalidade superior frente aos trabalhadores tradicionais do campo.

Assim, folkcomunicação e comunicação midiática encontram-se em um território comum, o da cultura das classes subalternas, gerando não uma uniformização da cultura, mas sim uma nova hierarquização das representações e dos elementos culturais produzidos e consumidos (CANCLINI, 2001).