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3. ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA CAIPIRA

3.7. Cenário Atual

4.1.3. O Mito do Unhudo da Pedra Branca

Recordando que o conceito de cultura é aqui compreendido como uma rede de significados que envolve o homem, mas que foi tecida por ele próprio (Geertz, 1989), o esforço em entender o mito caipira do Unhudo da Pedra Branca parte da tentativa de interpretá-lo. Recorre-se à Antropologia para apreender e apresentar os significados evocados pelo mito em questão, e a Comunicação para definir e capturar o mito, através da entrevista jornalística semi-estruturada e técnica da bola de neve (BELTRÃO, 1980).

Através da etnografia do mito realizada por Tablas (2001) e de uma entrevista narrativa realizada no decorrer da pesquisa, pretende-se descrever o conteúdo do mito através da noção de estrutura, analisando os modelos construídos em conformidade com o real e não a realidade per si:

A relação entre o mito com o real é indiscutível, mas não sob a forma de uma representação. Ela é de natureza dialética e as instituições descritas nos mitos podem ser o inverso das instituições reais. Isto, aliás, acontecerá sempre que o mito procure exprimir uma verdade negativa (LÉVI-STRAUSS, 1993, p.182).

A análise estrutural consiste em descobrir formas invariantes nos conteúdos diferentes "(...) um grupo de fenômenos se presta tanto mais à análise estrutural quanto a sociedade não dispõe de um modelo consciente para interpretá-lo ou justificá-lo” (LÉVI- STRAUSS, 1996, p. 318).

Sob a ótica da Comunicação o mito é parte da folkcomunicação oral, ou seja, uma comunicação de idéias ligadas ao folclore na qual quase sempre é possível vislumbrar um exemplo moral. O mito envolve criações fantásticas, deuses, heróis, espíritos materializados (Beltrão, 1980). Para a Antropologia os mitos também podem ser tratados

como modos de comunicação, entre os deuses e os homens, ressalvado o fato de que os deuses não são parceiros dos homens num mesmo sistema de comunicação, mas que o homem o representa através de imagens ou projeções (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 75).

Pretende-se apresentar agora um resumo da etnografia sobre o mito publicada no seguinte trabalho: TABLAS, H.G. Lendas de Dois Córregos. Dois Córregos: Prefeitura Municipal de Dois Córregos, 2000:

Em uma das pequenas grutas situadas no sopé da Pedra Branca mora o Unhudo. Dizem que suas unhas - ou garras - são realmente muito grandes, que ele tem cerca de dois metros de altura, que possui cabelos compridos e que usa um chapéu de palha cujas abas já estão desfiadas pelo tempo. Mas o Unhudo não pode ser considerado um ser humano. Trata-se de uma entidade fantástica, pois quem o viu garante que por trás das roupas esfarrapadas está um couro seco, já que seu corpo não é encarnado. Desse modo, segundo se comenta, o Unhudo seria um morto vivo. Quando passa alguma boiada perto da Pedra Branca, o Unhudo se esconde atrás de um tronco de árvore e fica repetindo o aboio que os boiadeiros costumam dizer com sua fala cantando pra tocar o boi. Assim, se o boiadeiro grita ‘ô boi!’, o Unhudo repete ‘ô boi!’, como se fosse um eco. (...) ele não aceita que as pessoas colham jabuticabas silvestres e nem orquídeas naquele local. E toda pessoa que se atreve a desobedecê-lo corre o risco de levar um tapa que costuma arremessar o indivíduo para o outro lado do rio Tietê. E foi mais ou menos assim que aconteceu com ‘Zé’ Ramos que morava naquele baixão de serra com a sua família. De acordo com o depoimento de seu filho ‘Neguito’ Ramos (hoje ele reside na Coloninha da Paulista, em Dois Córregos), certa vez, no início do século XX, ‘Zé’ Ramos se enfiou na mata da Pedra Branca para catar jabuticabas silvestres. E ele já estava trepado em uma jabuticabeira, colhendo as frutas, quando ouviu uma voz rouquenha que lhe disse: -Moço, essa fruteira 'tá reservada pra mim

Percebendo que não estava diante de um ser humano, e sim de uma entidade perigosa, ‘Zé’ Ramos sacou sua garrucha e disparou dois tiros contra o peito do Unhudo. As balas, entretanto, passaram pela entidade sem fazer nenhum dano, e naquele mesmo instante ‘Zé’ Ramos perdeu os sentidos, certamente atingido por um tapa do ‘morto- vivo’.

Durante dois dias, os filhos de ‘Zé’ Ramos estiveram a procurá-lo nas proximidades da Pedra Branca, mas ele só foi encontrado no bairro das Contendas, na beira do rio Tietê, um dia depois de haver desmaiado. De acordo com o que ‘Zé’ Ramos contou para a sua família e amigos, após acordar do tapa ele ficou vagando sem rumo pela mata, muito embora toda aquela região lhe fosse bastante familiar. E depois disso esse assunto passou a ser evitado em sua casa, pois sempre que alguém citava o Unhudo, ‘Zé’ Ramos ficava muito emocionado e não conseguia conter as lágrimas.

(...) Existe uma versão, sobre a origem dessa lenda que envolve a figura do major Cesário Ribeiro de Barros - antigo dono da fazenda onde se situa a Pedra Branca. De acordo com essa versão, o major, cujo enterro foi feito em Dois Córregos, teve seu corpo desenterrado pelo coveiro, tempos depois, para um serviço de rotina do cemitério e então se descobriu que ele estava intacto - nenhum verme o havia comido. Para que o corpo se desfizesse ele foi colocado no campanário da igreja matriz, mas mesmo assim não houve a putrefação. Por esse motivo o povo passou a dizer que o Unhudo seria a alma penada do major Cesário, pois conforme se acreditava, o espírito de uma pessoa falecida jamais teria paz enquanto o corpo não se deteriorasse (TABLAS, 2001, p. 22-5).

Uma outra versão foi recolhida através de entrevista realizada no decorrer da pesquisa durante uma visita ao município de Dois Córregos. Através da técnica da bola-de- neve (BELTRÃO, 1980) foi possível encontrar e conversar, por aproximadamente uma hora, sentados num banco da praça Francisco Simões à sombra de uma árvore, com Antonio Pereira, 86 anos, trabalhador rural aposentado, dia 20/02/2004 às 13 horas.

FIGURA 14 -Sr. Antonio Pereira

Apesar da idade avançada o Sr. Antonio trabalha diariamente em um sítio da cidade, consertando cerca, fazendo serviço de roça, enxada e foice. Antonio Pereira é aposentado como lavrador por tempo de serviço, mas ganha apenas o salário mínimo, que segundo ele, não basta para sustentar a família, no caso a mulher, que não goza de boa saúde como ele. “Eu aposentei com um salário só R$240,00, R$240,00 eu como sozinho no mês” - diz. Antonio Pereira que concentra certas características de um líder folk: é carismático e simpático em sua conversação, encanta com sua argüição interpretativa do mito e é apontado por todos na cidade como uma autoridade quando o assunto é o mito do Unhudo da Pedra Branca. Por isso, é personagem constante de reportagens televisivas sobre o mito, o que será observado no decorrer da pesquisa. Pereira também é conhecedor e contador de outras histórias, tanto que, durante a entrevista narrou o seu encontro com o saci (ver anexo E). Seguem os trechos da entrevista:

“O negócio do Unhudo eu tinha 15 anos. Quando ele pegou o sr. Zé Ramos conhecido nosso véio, ele tava com 50 e poucos anos. Aí foi em quatro cavaleiros, domingo depois do almoço, de tarde já 4 horas, mas era mato aquele tempo, tinha mato, hoje tem pouco mato. Aí amansou o cavalo, saiu um pra lá, outro pra cá, três, e ele saiu pra cá, achou um baixinho dava pra ele subir, na fruiteira, aí o bicho chegou. Couro mais chapéu de palha, bota, mas só osso sabe? Carne igual nós, não tem o Unhudo. Faz chop, chop... (faz gesto com a mão de punho fechado no peito): - Ô moço desce daí, aqui é meu. Pra quem você pediu pra apanhar fruita aí? - ele falou

- Ah eu não sabia de nada.

- Aqui é meu - bateu no couro: chop, chop, chop (faz gesto de punho fechado batendo no peito)

O seu Zé falou : - Ih... Hoje tá danado. Aí o seu Zé intimidou e ele falou: - Então eu vou de encontro.

E aí pegou na fruiteira e foi subindo sabe?

O seu Zé tinha uma chumbeirinha pequena, eu tenho em casa. Ai seu Zé arrancou e atirou nele, mas não viu mais nada. Aí ele caiu, falou pro pai que doeu assim, mas não sabe se o bicho deu um tapa ou se ele caiu no chão, ele contou certo, mas não chamou nem os companheiros, não gritou, sumiu o sentido. Aí ele agarrou pra lá, pro outro lado do Tietê tinha o picadão e lá ele subiu. Ai lá ele sentou e dormiu.

Mas não tinha morador muito aquele tempo, só tinha dois no meu tempo sabe, na beira do Tietê, mas eles não vinha pra cá, vinha pra Barra, Sta. Maria sabe? Por lá ele dormiu, Quando foi segunda–feira ele acordou, tinha um reloginho de bolso, olhou no relógio era onze e meia do dia. Aí ele começou a rezar, rezar, pessoar velho sabe rezar. Aí o sentido veio vindo. Ele morava pra cá do Morro Alto, onde eu morava.

Aí ele veio e chegou na casa dele eram seis horas da tarde, com fome. Aí eu conheci a dona Paula mulher dele e ela: - O que aconteceu Zé?- Mas ele já tava meio sabe, não contou, não contou não.

No dia seguinte ele contou pra ela, pra dona Paula que o bicho tinha pegado ele e atrapalhou a idéia, não gritou nem os companheiros. E os companheiros gritaram, tinha onça aquele tempo sabe, onça pintada. Ah comeu o véio! E no caminho sentado rasgou tudo a roupa, tudo e aí ele olhou no relógio eram onze e meia e aí ele começou a rezar, rezar e o sentido veio vindo sabe, aí ele veio, achou a casa dele veio pra cá, pra casa.

Aí ele contou pro pai na mesa assim, mas eu tinha 15 anos tava perto. O que ele contou pro meu pai eu conto pro cês aqui, só, a prosa é essa mais nada. Assombrou meu pai também. Ele morou na beira do Tietê dois anos, é meu pai era carreiro de boi e atrasou na venda. Meia-noite. E logo o bicho: - Ue, Ue, ... E o medo, tinha medo, cresceu o cabelo no chapéu, mas não via o bicho tava muito escuro. Aí chegou em casa e contou pra mãe. E a mãe outro dia cedo, era molecada, dois irmão e eu.

- Que bicho é esse?

- É o tar de corpo seco. Mora lá na Pedra Branca.

Mas não viu ele, agachava pra ver, mas tava muito escuro. (...) Eu caçava lá, eu sou caçador, eu olhava no pé do pau pra ver se ele tava lá. Eu olhava cismado, a gente vem e trabalha cismado.

(...) Com o seu Zé Ramos foi de tarde. Era uma fruiteirinha baixinha, dava umas quatro latas de querosene, ele começou e o bicho chegou, bateu no peito: - Com ordem de quem tá apanhando fruita aí?

E o seu Zé não sabia quem era. - Pra pegar tem que pedir pra mim.

O seu Zé não sabia, ele foi subindo na fruiteira e o seu Zé arrancou a chumbeira e fez tá, tá (tiros) não viu mais nada. Falou pro pai que caiu. Aí ele veio aqui e não sabe se o bicho deu um tapa ou ele caiu no chão. Sumiu o sentido naquela hora. Os companheiros precuraram ele, mas falou, tinha onça aquele tempo, comeu o véio né? E ele tava vivo, dormindo, o seu Zé Ramos. É só isso a prosa mais nada.

(...) Era uma pessoa que era dona de tudo, morreu e ficou atentando os outros. Era dono daí até lá no Tietê, ninguém comprava aquele tempo, tempo do sertão. Ele morreu e ficou atentando a turma. Tem muita pessoa assim. Deixa a riqueza, fica com dó, fica com dó, fica atentando os outros, minha vó falava, fica atentando os outros aí.

(...) Ah, o mundo é sortido minha filha, minha vó falava. Tem o bom e o ruim no mundo. Agora parece que tá acabando um pouco. Minha vó morreu com 85 anos, era mineira, ela contava pra nós e nós não dormia de medo de noite. Uh, o mundo é sortido.

(...) Era dono dali até no Tietê era tudo dele, aquele tempo quase ninguém comprava terra né? Ele morreu ficou atentando a turma, ficou com dó do terreno né? Tem muito assim. Eu trabalho embaixo da Pedra. Eu caçava lá, eu tinha medo, mas caçava lá na Pedra Branca.

(...) Em todo lugar tem a coisa boa e a ruim, em todo lugar tem, mas na minha idade que eu tô, eu tinha quinze anos, sobrou só três. Sobrou o seu Zé Ramos, foi verdade, assombrou o meu pai e o pai do Piolhinho já morreu. Quebrou o caminhão dele lá e não deu pra ele vir na cidade de tarde pra buscar peça, e o bicho chegou perto dele lá de noite, assombrou ele. É pessoa que morre e fica atentando os outros né? Só que minha vó falava, atenta um tempo, mas depois desencarna e ninguém vê mais. Quem viu, viu, quem não viu, não vê mais, minha vó falava. Desencarna né? O tempo dele termina. Minha vó falava, morreu com 80 e poucos anos, era mineira minha vó, mineira. Eu caçava lá. Tinha um medo sozinho nossa, dá medo não dá? Você vai cismado né, com a espingarda. Agora no caso eu trabalho lá embaixo da Pedra.

(...) Não tenho medo, se não abusa nada, não aparece nada né? Abusando aparece, qualquer hora né? Abusando aparece. Essa coisa vem do tempo antigo né? Do sertão, mas minha vó falava: - O mundo é sortido, se tem o bom e o ruim. - Ela contava pra nós, minhas duas irmãs pequeninha, ela sentava ali, nós olhava ela. Nós não dormia de noite de medo, tinha medo né, se alembrava né? Alembrava.

(...) Tem muitos que não acreditam em nada. Tem gente que não acredita nem em Deus. Só no dinheiro. Ele não sabe se tem Deus no céu, não se alembra de Deus, só no dinheiro correndo no bolso, mas tem Deus no céu né, tem que alembra né?”