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Entre o Céu e a Terra: O Fantasma

3. ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA CAIPIRA

3.7. Cenário Atual

4.1.9. Entre o Céu e a Terra: O Fantasma

A característica de deambulação do Unhudo, um Corpo-seco, é a sua convergência com o mito da alma-penada. A alma-penada ou fantasma é um espírito condenado a vagar pela eternidade, permanecendo nos lugares em que esteve em vida. “Não descansa no

além quem não respeitou o descanso dos vivos”(Saéz, 1996, p.51). Nas duas versões do mito o Unhudo também apresenta as características clássicas do fantasma como:

QUADRO 5 - Características de fantasmas

Corpo não encarnado: “‘Zé’ Ramos sacou sua garrucha e disparou dois tiros contra o peito do Unhudo. As balas, entretanto, passaram pela entidade sem fazer nenhum dano”; “... seu corpo não é encarnado. Desse modo, segundo se comenta, o Unhudo seria um morto vivo”.“Carne igual nós, não tem o Unhudo”.

Deambulação: “Quando passa alguma boiada perto da Pedra Branca, o Unhudo se esconde atrás de um tronco de árvore e fica repetindo o aboio”. “... e o bicho chegou perto dele lá de noite, assombrou ele”.

Assombração e Pena Supraterrena: “... o espírito de uma pessoa falecida jamais teria

paz enquanto o corpo não se deteriorasse”. “Era uma pessoa que era dona de tudo, morreu e ficou atentando os outros. (...) morreu e ficou atentando a turma”. “... foi verdade, assombrou o meu pai e o pai do Piolhinho já morreu”.

Conhecido de muitas culturas, o fantasma habita o imaginário humano presente nas conversas populares, em livros clássicos, nas telas do cinema, da TV e nas notícias dos jornais. Relatos na imprensa dão conta de que esse mistério há muito apavora e surpreende o ser humano:

No verão de 1692, em Cape Ann, Massachusetts, teve início uma estranha série de eventos quando Ebenezer Babson, ao voltar para casa tarde da noite, disse ter visto dois homens saírem de sua casa e correrem para o milharal. Ele entrou em casa para ver se a família estava bem, e suas perguntas deixaram a esposa e os filhos perplexos, pois insistiam que nenhum intruso entrara na casa. Babson apanhou a arma e foi lá fora, e viu os dois homens se levantarem de trás de um tronco e correrem para o pântano próximo. Um disse para o outro: ‘O homem da casa chegou, senão teríamos tomado a casa’. (...) Em 14 de julho, toda a guarnição viu uma meia dúzia de estranhos. Uma turma os seguiu, sob o comando de Babson, e posicionou-se para atirar. Babson disparou, três caíram, mas levantaram-se sem sinais aparentes de ferimentos. Enquanto fugiam, um deles virou-se e atirou em Babson. A bala passou perto e foi alojar-se em uma árvore, de onde a almejada vítima retirou-a oportunamente. Minutos depois a turma cercou outro elemento. Babson atirou, o estranho caiu, mas quando Babson e os companheiros foram até lá, não havia ninguém(CLARK, 1997, p.9).

4.1.9.1 Mito e cultura caipira

O mito do Unhudo da Pedra Branca apresenta uma visão de mundo na qual o pecado praticado em vida é punido após a morte. A punição acarreta conseqüências deploráveis como o corpo ressecado e o destino de alma-penada sendo um castigo, porém restaura o poder do antigo dono sobre a Pedra Branca.

FIGURA 17 - Pedra Branca

Em ambas as versões, o Unhudo é representado como uma figura disfórica, é autoritário, agressivo e possessivo. É um fantasma, um amaldiçoado que a terra não quis e se tornou um ser maligno, que atenta e assombra a área da Pedra Branca. Ao mesmo tempo, é um ser ambíguo, porque também exerce o papel de alma da natureza.

Em vida, o Unhudo foi grande proprietário de terra, exerceu autoridade acima da média e após a morte, punido com a despossessão e a não-putrefação de seu corpo, sofreu a metamorfose. A metamorfose o transforma numa criatura ambígua, um ser complexo produzido pela relação entre a vida x morte e a natureza x cultura. O mito é construído logicamente pelo encontro desses estados opostos operados pela metamorfose. Num plano geral, o mito é guiado pelo pensamento religioso de pecado e castigo, com o Corpo-seco denunciando os males cometidos em vida.

É importante relembrar alguns fatos referentes à cultura caipira que são importantes para a compreensão do mito. Formada por soluções mínimas de sociabilidade expressas no contato com o bairro, e de economia de subsistência, com produção mínima para manter a vida, a cultura caipira, conforme visto no item três, garantia sua auto-suficiência através do controle da terra aliado à estrutura social composta pela família e pelos vizinhos. A posse de terras esteve sempre ameaçada pelo crescimento do latifúndio e pela dificuldade em

adquirir os documentos legais de propriedade, resultando numa habitação precária, pois incerta. A agricultura de subsistência, a caça, a coleta e a pesca eram atividades que uniam a esfera do trabalho à esfera do lazer. Quanto à religiosidade, a abertura ao sobrenatural, através da crença nos espíritos, fazia com que os caipiras acreditassem que a alma dos mortos podia voltar a terra para visitas. A alma-penada seria o fantasma daquele que não cumpriu suas obrigações em vida e perambula pela terra até conseguir a absolvição de suas faltas.

No plano local, o mito além da característica acima citada, serve também como uma tentativa de resolver o problema da terra, uma dificuldade real da cultura caipira que é estruturada sob a posse da terra. O mito do Unhudo é criado por indivíduos em situação de inferioridade estrutural frente à posse de terra, são pessoas que tiveram certamente dificuldade em manter ou conquistar títulos de propriedade.

Na cultura caipira, na qual um dos elementos principais é a posse da terra, perdê-la é uma dificuldade insuperável. Moreira Neto assim observou em sua pesquisa de campo em Cunha, pois o contato diário com a terra torna o caipira bastante ligado à mesma. Para Moreira Neto, o caipira é preso a terra, “sua mãe-maior”, e a tensão é provocada pela perda da terra, sendo que sua luta é pela continuidade e tradição de seu meio de vida (2002, passim). Através do plano mítico, a manutenção da posse é assegurada com a transformação do dono da Pedra Branca em Unhudo, e assim o conflito é solucionado:

Era uma pessoa que era dona de tudo, morreu e ficou atentando os outros. Era dono daí até lá no Tietê, ninguém comprava aquele tempo, tempo do sertão. Ele morreu e ficou atentando a turma. Tem muita pessoa assim. Deixa a riqueza, fica com dó, fica com dó e fica atentando os outros...