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3. ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA CAIPIRA

3.5. Aspectos Religiosos

3.5.1. O Mito da Alma-Penada

O estudo dos mitos é parte da etnologia religiosa, já que é raro o mito que existe independente de religião (CASCUDO, 2002, p.51). Na cultura caipira o mito da alma- penada penetra os indivíduos na sua intimidade, orientando as suas emoções. A transmissão dessas narrativas na cultura caipira ocorria através da comunicação oral, interpessoal ou grupal, quando as pessoas costumavam se reunir no início da noite para conversar, e não era raro aparecer como tema dessas conversas, alguma história de assombração. Essas histórias contadas à noite, pois de dia era hora de trabalhar, gerava até pesadelos nas crianças. As pessoas vinham de sítios vizinhos para ouvir os "causos", tamanho o fascínio que exerciam e a habilidade do contador de histórias em interpretá-las.

A literatura oral paulista tece-se de mitos e lendas indígenas, do folclore e genealogia dos bandeirantes, dos relatos monçoeiros e tropeiristas, das variantes regionais do fabulário universal: contos, adivinhas, fábulas, provérbios, trovas, romances, recontos e parlendas infantis. Mesclados de arabismos, embebem-se ainda no Ocidente medieval, nas lutas de cavalaria e no hagiológio respectivo. Donde emergem as figuras do imperador Carlos Magno; de Pedro Malazartes e seu êmulo João soldado; de João e Maria; João Bobo; João de Calais, o pirata; ao lado dos mitos, por assim dizer locais, como o lobisomen, a mula sem cabeça, o corpo seco, assombrações, fantasmas, bruxas, príncipes encantados, fadas, dragões e duendes. Tudo a emprestar cor local a um universo mítico que é patrimônio da humanidade (DAMANTE, 1980, p. 15).

No meio rural caipira, existia a crença religiosa de que os mortos não pertenciam de todo ao mundo sobrenatural já que a alma podia voltar a terra para visitas, aparecer em sonho aos familiares e ajudá-los na passagem da vida para a morte. Perambulava no mundo

terreno como alma-penada aquele que não cumpriu suas obrigações em vida. Quem não teve uma vida plena e deixou de honrar a tradição, a experiência e a sabedoria, não tem igualmente uma morte completa, e seu destino é o da deambulação, até conseguir a absolvição de suas faltas. O mito é, portanto, uma história contada, uma criação inconsciente e um esquema lógico integrado em uma construção sistemática (LÉVI- STRAUSS, 1996, passim).

São sistemas de signos, uma linguagem com o sentido codificado, usados para reflexão e resolução de contradições das sociedades humanas. O mito busca propor paliativos para conflitos, mas não os resolve se os mesmos têm existência real. Alguns mitos alcançaram popularidade mesmo após o seu conteúdo perder a razão de ser, com a vinda das pessoas para a zona urbana. As histórias permanecem, porém, vivas na memória de quem ouviu ou vivenciou a experiência do encontro com o desconhecido. Apresenta-se uma breve descrição de três histórias de assombração: a do cachorro de anel no rabo, de Guaianás, distrito de Pederneiras, a mulher de branco, da zona rural de Pederneiras, e a do Unhudo da Pedra Branca, zona rural de Dois Córregos, que será posteriormente objeto de análise desse trabalho.

ƒ O Cachorro de Anel no Rabo:

O cachorro de anel no rabo era uma assombração que apavorava os moradores da zona rural de Guaianás, distrito de Pederneiras. Carneiro narra o encontro de seu avô com o cachorro de anel no rabo:

Mal concluíra seu pensamento e os cachorros já latiam sob sua janela, meu avô percebeu que era naturalmente impossível que os cachorros percorressem a distância de quase dois quilômetros em dois ou três segundos; não tinha mais dúvidas, tratava-se do tal cachorro de anel no rabo, subitamente abre a janela e põe-se a conversar com a tal assombração; apesar da lua cheia estar a pino, meu avô não via nada no quintal da casa que parecesse com um cachorro, mas continuava ouvindo claramente latidos de cachorros ali na sua janela. – Quem taí? – perguntou. É óbvio que não obteve resposta, mas continuou seu monólogo: - O que é que você fez de errado quando estava aqui neste mundo? Fica aí pelos matos e estradas, assustando as pessoas, os pescadores, atrapalhando a gente a dormir. Quem está vivo trabalha de dia e descansa à noite, e você está atrapalhando o meu descanso, se tem alguma promessa para algum santo que você não teve tempo de cumprir quando estava vivo, me diga que eu vou pagar sua promessa, mas a partir de hoje, dê sossego a esta gente que tem sofrido muito com sua presença por aqui... – Antes mesmo de terminar este diálogo cessou-se os latidos dos cães invisíveis (...) o velho João Cândido Carneiro fecha a janela, volta para a sua cama, apanha em sua cabeceira o antigo rosário, e reza algumas orações em intenção daquela alma-penada (...) Nunca mais se ouviu a tal corrida de cachorro (CARNEIRO, 2003, p. 57-8).

ƒ A Mulher de Branco:

Também em Pederneiras, muitos moradores viam a aparição da famosa mulher de branco, alma-penada que perseguia as pessoas na escuridão da noite.

Só pelas duas e meia da manhã seu Chico foi chegando na casa onde os rapazes e o resto da família o esperava ansiosamente, já era consenso entre os rapazes de que todos tinham visto a mesma coisa: uma mulher de roupa branca e da altura da cominheira da casa, só queriam saber se seu Chico também viu...Confirmando: - Vi uma muié de roupa branca, que não cabia dentro dessa casa. – Várias perguntas ao mesmo tempo eram endereçadas ao velho pelo grupo de medrosos: - O senhor não correu por quê? O senhor não ficou com medo? Ela alcançou o senhor? Que qui ela fez? – Seu Chico pediu calma pra moçada e disparou: - Não aconteceu nada de esquisito, subi no barranco, conversamos um pouco, dei umas repicadas na viola e vim embora...(CARNEIRO, 2003, p. 48).

ƒ O Unhudo da Pedra Branca:

O Unhudo da Pedra Branca é um corpo seco, um cadáver ressecado, que denuncia a existência de um pecado sem perdão divino. É a assombração mais famosa de Dois Córregos e sua história existe há mais de um século na zona rural da cidade. Refere-se a uma criatura fantástica de unhas grandes e corpo seco, que habita a mata da Pedra Branca, e impede as pessoas de roubar frutas e flores:

Outra lenda contada por Vó Armira, mas localizada por ela no bairro de Morro Alto, na margem esquerda do Tietê, falava de um homem de unhas enormes que morava em uma das cavernas da Pedra Branca, elevação próxima à divisa de Mineiros e Dois Córregos. Era chamado de O Unhudo da Pedra Branca e costumava atacar aqueles que entravam na floresta para colher jabuticabas silvestres. Certa vez, dizia Vó Armira, um rapaz foi apanhar jabuticabas e levou um tapa do Unhudo, indo acordar do outro lado do rio Tietê (TABLAS, 1987, p. 44).