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Estratificação na Cultura Caipira

3. ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA CAIPIRA

3.6. Estratificação na Cultura Caipira

Na cultura caipira tradicional, havia certa tendência a posições sociais relativamente indiferenciadas. Com o encerramento das bandeiras no Século XVIII começou a acentuar-se a estratificação social na cultura caipira. Para satisfazer as necessidades familiares referentes ao mundo externo, alguns camponeses optaram por incrementar a produção e por isso houve a necessidade de obter mais recursos. Esses recursos foram obtidos muitas vezes com o desligamento do caipira de certas cerimônias tradicionais que gerariam gastos, como a organização e promoção de festas religiosas, mas ao mesmo tempo geravam laços sociais que o unia aos demais camponeses. O fazendeiro era o camponês mais abastado que passou a utilizar mão-de-obra externa à família, explorando primeiro a mão-de-obra indígena, depois o trabalho escravo, e posteriormente, os colonos estrangeiros. Com o fazendeiro, emergiu um novo ritmo de trabalho e novas relações sociais, pois esse passou a ser parte de uma camada superior na até então relativamente indiferenciada cultura caipira. É por isso que para Antonio Candido o fazendeiro era "(...) participante, mas nem sempre integrante da cultura caipira, nas suas formas mais peculiares" (1987, p.80). Apesar de possuírem muitas vezes a mesma quantidade de terra, a diferença entre o fazendeiro e o sitiante estava no uso da mão-de- obra alheia à família e sem a dependência da cooperação vicinal. A fazenda crescia se aproveitando muitas vezes da precariedade dos títulos de posse da terra, o que levava à expulsão dos pequenos lavradores.

A comunidade camponesa, sob tais circunstâncias, testemunhará a ascensão de camponeses mais abastados que abrirão caminho afastando seus companheiros menos afortunados, até alcançarem e preencherem a lacuna deixada pelo afastamento daqueles que ocupavam o poder. No curso dessa ascensão, eles transgridem freqüentemente as expectativas tradicionais a respeito das relações sociais - e como elas devem ser conduzidas e simbolizadas - usando o poder recentemente adquirido para enriquecer as custas dos vizinhos (WOLF, 1970, p.32).

O fazendeiro sendo mais propenso às trocas comerciais seria um agente de mudança de um estado de equilíbrio baseado na posse de terras, mobilidade e trabalho familiar. O fazendeiro produzia tendo em vista os lucros, enquanto a maior preocupação do

caipira, antes de qualquer coisa, era a de sustentar a família. Desse modo, o fazendeiro desorganizava a cultura caipira impondo um novo ritmo de trabalho aos seus integrantes: o trabalho assalariado, intenso e regular, no qual perde-se a dimensão lúdica do mutirão e o caráter de subsistência da agricultura. A mobilidade sofreu mudanças com a posse legal da terra a partir de 1850, mas nem por isso diminuiu, se era impossível ter a segurança da propriedade, restava ao caipira buscar melhores condições de trabalho junto aos fazendeiros através da parceria, um acordo no qual o fazendeiro fornece a terra para o cultivo e tem direito sobre a produção realizada pelo parceiro. Essa situação se acentuou durante o Século XX, quando os caipiras preferiram a parceria e relutaram em aderir ao trabalho assalariado na fazenda, o que os tornaria dependentes do ritmo de trabalho imposto pelo patrão, restando pouco espaço para manter aspectos de sua cultura como o lazer, a posse da terra e o espírito livre. Em sua pesquisa em Bofete, realizada na metade do século passado, de 1948 a 1954, Candido percebeu um forte saudosismo e idealismo entre os parceiros referente à época em que havia pouca diferenciação social na cultura caipira e a posse de terra ainda não era definida por documentos legais:

Ninguém trabalhava alugado, porque para isto havia os cativos; não havia aforante nem colônio; era o 'tempo das posse' e todos tinham a sua terra. Era só chegar, tomar conta e pedir para o Governo, que concedia áreas medindo uma légua de frente por três de fundo. Mas depois vieram os fazendeiros ricos e, como a caboclada era ignorante, foram comprando barato de uns, tomando à força de outros. Tinha gente que chegava e ia expulsando os 'cuitadinho'a pau e tiro (CANDIDO, 1987, p.194).

Esse ressentimento do camponês em relação ao fazendeiro teve origem no início da formação da cultura caipira (Século XVIII), período no qual havia pouca estratificação, pois a maioria dos camponeses cultivava a terra com a ajuda da família. E essa suposta homogeneização foi quebrada quando alguns camponeses através de melhor exploração da terra e do trabalho se diferenciaram de sua origem, passando a explorar mão-de-obra externa à família. O fazendeiro é aquele que freqüentemente se desligou de muitos hábitos camponeses, como a guarda de dias santos, para se ligar à outra classe social. Para os camponeses um bom patrão é aquele que age conforme a tradição. O bom patrão se preocupa com seus dependentes, com a saúde do trabalhador e de sua família, com a educação das crianças que moram na fazenda e é muitas vezes convidado a ser padrinho das mesmas. O compadrio, ou seja, a relação entre o pai e o indivíduo que o mesmo

escolheu para batizar seu filho, é uma das características da sociabilidade caipira, pois amplia os laços de familiaridade existentes porque o padrinho é tido como um segundo pai da criança, aquele que dará apoio caso os pais venham a faltar.

Tendo morrido (assassinado pelo sobrinho) um antigo morador do Morro, voltaram para este a mãe, a viúva e os filhos menores, buscando amparo no fazendeiro e num irmão do morto. Como a viúva se queixasse de nada ter para o gasto, um dos moradores, seu compadre, e em atenção aos deveres inerentes, deu-lhe um pedaço do chão, que tinha aforado, já pronto para receber a semente. (CANDIDO, 1987, p.129).

O apadrinhamento por parte do fazendeiro era também freqüentemente utilizado para reforçar a submissão política:

Até 1956, a família do sr. L era a proprietária de uma enorme extensão de terra (...) o sr. L. participava ativamente na luta política. Fazia discursos, prometia favores e, talvez o mais importante, tornava-se o padrinho de inúmeras crianças e compadre de uma vasta rede de seguidores leais (FORMAN, 1979, p. 226).

A relação entre o fazendeiro e o camponês era definida por Forman como uma relação de redução de risco (1979, passim), pois o fazendeiro possibilitava proteção e acesso à cultura nacional, porém privando o camponês de participar em assuntos de Estado. Nessa relação diádica que supõe um indivíduo econômica e politicamente superior e outro econômica e politicamente inferior, o camponês se sujeitava a um contrato muitas vezes desigual proposto pelo patrão, pois a dificuldade do acesso a terra simplesmente não lhe sobrava alternativa. Era esse relacionamento desigual, a relação patrão-dependente, que garantia o acesso do economicamente mais frágil à uma assistência médica, sistema escolar, capital e até mesmo informações. Nessa relação de confiança, enquanto o camponês esperava receber segurança, proteção, acesso à saúde e alimentação, o patrão esperava a lealdade e a obediência.

A palavra do patrão é lei e não deve ser questionada. O seu desejo é cumprido, porque se acredita que ele esteja certo e que assim seja apropriado a proceder. Qualquer ato de oposição é causa para demissão, quaisquer que tenham sido as cláusulas contratuais; e quando falta uma boa razão o patrão sempre pode invocar a vontade de Deus, a lei ou, como último recurso, a força de seus capangas. Não obstante, seu trunfo mais importante é sua reputação, e, conseqüentemente, em certo sentido a coisa mais importante que seus dependentes podem fazer é espalhar pelo campo a notícia da sua 'bondade' (FORMAN, 1987, p. 112).