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6. A natureza pelo avesso

6.2 O dom da linguagem

Para Wilhelm von Humboldt (1972, p. 24), a linguagem era um dom atribuído às nações como um destino inato, uma forma de emanação involuntária do intelecto. Haveria no ser humano uma vitalidade (lebenskraft)74 exclusivamente humana e

desenvolvida ao longo da história de cada povo como a expressão de seu destino, desencadeada pela capacidade intelectual dos indivíduos que comporiam aquele povo. A linguagem, então, seria a manifestação exteriorizada das mentes dos povos e, ao mesmo tempo, seria a alma dos povos e a alma dos povos seria sua linguagem. Para Wilhelm von Humboldt (1972, p. 25), não haveria distinção entre linguagem e intelectualidade, ele considerava que, apesar das explicações sobre o desenvolvimento da linguagem ser fruto de sucessivos desenvolvimentos intelectuais na espécie humana, seria preciso considerar que os sucessivos desenvolvimentos intelectuais se originaram da peculiaridade intelectual da espécie humana considerada por ele como o livre arbítrio e a consciência.

Ao estabelecer a linguagem como um dom inato, um “poder de falar”, impossível de ser inventada, portanto, a qualidade que faz do humano, um humano, Wilhelm von Humboldt criou um abismo entre o humano e todas as demais criaturas existentes, abrindo uma lacuna no devir evolutivo que pressuporia o aparecimento do !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

74 A tradução corrente de lebenskraft é vitalidade, mas me parece que o sentido não é o mesmo. Lebenskraft seria

melhor traduzido por prana ou chi, que expressam o sentido de força vital criadora engajado no lebenskraft de Wilhelm von Humboldt. O sentido de vitalidade, em língua portuguesa, está mais associado a bem-estar e vigor físico.

ser humano em algum momento do processo de evolução. Muito embora ele considerasse a transmissão desse dom, ao longo das sucessivas gerações, um fato genético, ele elaborou seu argumento sobre a origem intelectual da linguagem contradizendo os argumentos evolucionistas que se apoiaram posteriormente em seu trabalho. Segundo Gerda Hassler (2014, p. 3), são atribuídas ideias à Wilhelm von Humboldt que não fizeram parte de seu acervo intelectual, uma delas é a perspectiva evolucionista a respeito do ser humano. Gerda Hassler (2014, p. 11) nos explicou que, em geral, as ideias de Wilhelm von Humboldt estão relacionadas ao estruturalismo, pois ele atribui um valor para cada item lexical.

Embora Wilhelm von Humboldt textualmente desconsidere a natureza divina da linguagem, sua postura discursiva sobre a linguagem, sobre o intelecto e sobre a alma o compromete. Considerar que a linguagem é um dom concedido, pressupõe a existência de algo que o conceda, pois a força vital humana foi capaz de desenvolvê- la de acordo com a capacidade intelectual dos indivíduos presentes em cada grupo humano. Não foi esta vitalidade que desencadeou a linguagem. A linguagem é um dom concedido75. Há, portanto, uma referência velada à existência divina provedora da linguagem na espécie humana. Além de pressupor uma entidade que concederia o dom, a linguagem seria o resultado do destino inato de um povo, não o produto de seu trabalho. Aqui, o “destino inato” encerra a existência de algo que trace os destinos dos povos antes mesmo que eles existam como nações. Ainda, Wilhelm von Humboldt considera a peculiaridade do intelecto humano como sendo o livre arbítrio, uma ideia- valor de caráter moral baseada nas ideias cristãs.

Como proposto por Wilhelm von Humboldt (1972, p. 20), a linguagem é própria da espécie humana, independente do grupo ao qual pertence. A língua desenvolvida por cada um dos povos é o reflexo do potencial criador dos indivíduos existentes em cada grupo, como reflexos da evolução humana em seus mais diferentes estágios. Quanto mais desenvolvido o espírito do povo (volksgeist) mais complexa e permeada de conceitos abstratos é a língua produzida por eles. Para Wilhelm von Humboldt (1880, p. 41), aqueles povos cuja capacidade dos seus indivíduos mais proeminentes estivesse voltada ao caminho solitário do pensamento abstrato criariam línguas mais complexas com mais conceitos abstratos, em oposição àqueles cujo mediador do entendimento mútuo fosse principalmente as atividades externas ou !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

75 “It is not a labor of nations, but rather a gift fallen to them as a result of their innate destiny”. Linguistic

físicas. O desenvolvimento do espírito dos povos no transcorrer do tempo levaria ao progresso que alçaria o homem, como espécie, ao topo. Para Jose Maria Valverde (1955, p. 47, tradução minha), tradutor de Wilhelm von Humboldt para o espanhol, o progresso histórico não seria exatamente um progressismo material, mas de fato espiritual, elevando a “marcha evolutiva do gênero humano”. Concordo com a interpretação do tradutor. Entendo que Wilhelm era reformista e sua ideia maior de libertação, por meio do progresso, era a ruptura das ordens eclesiásticas de acesso a Deus. Esclarecer as massas, mediante a educação para seu desenvolvimento intelectual, auxiliaria a humanidade a assentar em si a individualidade do divino. A meu ver, a perspectiva dos diferentes graus de peculiaridade dos intelectos humanos associada ao domínio militar e à subjugação política seria uma reelaboração com viés linguístico da cadeia do ser, em que o mais complexo estaria no topo e o mais complexo, para Wilhelm von Humboldt, significava o ápice civilizatório alcançado pelos europeus reformistas, cujo desenvolvimento intelectual individual os capacitava a construir uma civilização individualizadora, forte, produtora de arte e ciência.

Entendo que, para Wilhelm von Humboldt, a linguagem é inata da espécie humana como fruto de seu desenvolvimento intelectual, transmitida geneticamente. No entanto, o caráter dos povos conformaria cada uma das línguas de acordo com a capacidade criativa de seus indivíduos proeminentes e essas características adquiridas por meio do acúmulo sucessivo de conhecimento desenvolvido pelo potencial humano do grupo, também seriam trasmitidas geneticamente. Assim, o potencial criativo de um grupo humano seria transmitido a outro grupo por meio das migrações e das subjugações políticas ou militares que permitissem a transmissão do conhecimento aos povos não tão capazes de desenvolver por si sós uma civilização de alto nível intelectual76. Então, um povo, uma língua e uma cultura são geneticamente coesos. A coesão genética pode de muitas maneiras ser questionada, mas me pareceu bastante interessante a forma como Amós Oz e sua filha Fania Oz-Salzberger (2015, p. 15), em Os judeus e as palavras, trataram a questão. Para os autores, a coesão existente entre o povo judeu não é genética, visto que não é possível resgatar o pertencimento ou não às tribos originárias; não é territorial e não é linguística, pois há que se considerar os grandes grupos judeus falantes nativos de língua não hebraica, como os judeus europeus ou aqueles que vivem nos países americanos. A coesão, então, seria !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

76 “This entire course of progressive linguistic culture may only advance within the limits prescribed by its original

narrativa. É o profundo apreço pela manutenção das narrativas que mantém a coesão do grupo. As narrativas, não a língua.

No que diz respeito ao tema principal desta tese, a ideia de transferência civilizatória de povos superiores aos menos capazes intelectualmente é importante, pois serviu como crítica ao modelo ibérico de colonização. Segundo Mary Louise Pratt (1999, p. 16), a crítica ácida à forma violenta com que foram implantadas as colônias na América se propunha a romper a cortina de ferro com a qual Portugal e Espanha mantinham as colônias afastadas da dinâmica europeia. As incursões clandestinas ou autorizadas dos naturalistas à América foram a forma encontrada pelos países excluídos da colonização americana de penetrarem nos domínios ibéricos e, sob a alegação do desenvolvimento científico, estabelecerem suas formas de dominação, impondo seu modelo civilizatório. Wilhelm von Humboldt (1972, p. 14) descreveu a decadência civilizatória de gregos e romanos como a interrupção do processo criativo original do grupo decorrente da fragmentação linguística causada pela invasão de línguas estrangeiras, o que os tornou incapazes de redirecionarem-se em rumo ao desenvolvimento de um novo alento de vida. Já os hindus teriam tido o cuidado de desenvolver as capacidades dos povos aos quais se aliaram levando o conhecimento desenvolvido originalmente em suas terras até eles. Este era o modelo civilizatório almejado por Wilhelm von Humboldt que ainda considerava a capacidade tecnológica e científica desenvolvida até aquele momento pela humanidade capaz de configurar mais uniformemente a influência civilizatória, em oposição ao processo hindu que adquiriu traços característicos de cada ilha ou povo onde esteve presente. O progresso civilizatório nos índios americanos, considerados intelectualmente inferiores, tinha como resultado o corte definitivo da sua peculiaridade original, mesmo naqueles povos em que essa peculiaridade pudesse ter- se desenvolvido. Aqui, o autor se refere aos povos asteca e inca. Aos povos sulamericanos, a incapacidade intelectual ocupava as discussões.

Anchieta e Nóbrega, no século XVI, já lamentavam profundamente a incapacidade dos indígenas americanos de compreenderem as abstrações do espírito e Wilhelm von Humboldt reverberou a mesma incompreensão a respeito das línguas ameríndias. Infelizmente, ainda hoje esta crença opera nos métodos analíticos linguísticos e invariavelmente jóias filosóficas se perdem em meio a aborrecidas discussões sobre alinhamento sintático. Uma das pérolas que eu gostaria de apresentar

aqui foi extraída dos exemplos publicados por Ramirez (2015, p. 14) em um artigo sobre a ergatividade nas línguas yanomamö.

(6) Joahiw-nö ihiru a + naka+ ö

nome erg. criança 3sg+chamar+dinâmico (presente) Joaquim chama a criança.

(7) kori+una+p+nö mau u + koa+ ö +he garça+Cl+pl.+erg. água Cl:líquido+ beber+ dinâmico +3pl./erg. As garças bebem água.

Em ambos os exemplos, a partícula ö expressa dinamicidade, no exemplo (6), o movimento do ‘som saindo da boca no momento da fala’, e no exemplo (7), da ‘água escorrendo para dentro da garganta da garça’. O exemplo (7) nos permite uma maior clareza a respeito de que tipo de dinâmica está envolvida neste sentido, que é a do fluir, do contínuo e ininterrupto movimento da água. Associar a fala à dinâmica fluida do escorrer da água, seja para dentro da garganta das garças, ao despejar um jarro ou ao transcurso de um rio, implica associar o som da voz, e portanto a linguagem humana expressa pela fala, ao movimento contínuo do fluir dos líquidos. Embora a imagem do rio no qual nunca se banha duas vezes, evocada por Heráclito, seja nossa velha conhecida, esta não é exatamente a imagem evocada pela partícula ö. A imagem de Heráclito faria sentido dentro da perspectiva imagética da linguagem elaborada por Wilhelm von Humboldt (1963, p. 418, tradução minha). Para ele, “a linguagem, considerada em sua verdadeira essência, é algo persistente e, em cada momento, transitória”77. Banhar-se no rio da mutabilidade de Heráclito é, em certa medida, como o falar de um indivíduo para Wilhelm von Humboldt. Como se a fala fosse punhados de água retirados do rio da linguagem ao pronunciar cada frase no “fluir da fala entrelaçada”78.

No meu entendimento, a partícula ö do yanomamö, não trata da impermanência do som, como em Wilhelm von Humboldt, ao contrário, explora o fluxo contínuo da água e da fala, em que palavras e interrupções ocupam o espaço da continuidade na fala, contrária a nossa concepção ocidental que entende o fluxo da voz como um entrecortado de palavras e interrupções que constroem a fala. !Como seria a imagem do discurso xamânico ou da fala de um chefe? Seria algo parecido !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

77 Die Sprache, in ihrem wirklichen Wesen aufgefasst, ist etwas beständig und in jedem Augenblick

Vorübergehendes.

78 Ueber die Verschiedenheit des menschlichen Spracbaues u. ihren Einfluss auf die geistige Entwicklung des

com um rio cujo movimento contínuo estaria associado à fala imediata, momentânea, temporária, mas a permanência do rio como rio, como existência de rio, seria a evocação imagética da linguagem? Há abstração e metalinguagem suficientes na partícula ö para investigarmos as considerações filosóficas sobre a linguagem entre os povos de língua yanomamö. Infelizmente, como linguistas fazemos as perguntas equivocadas e nos limitamos aos debates gramaticais, invariavelmente, desconsiderando ou ignorando a existência de metalinguagem, filosofia ou qualquer outra forma de elaboração conceitual e abstrata por meio de nossos interlocutores indígenas, replicando o tão batido discurso de que o pensamento selvagem se produz mediante o concreto e em relação ao prático.