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4. Tapuya de tembetá é tupinambá?

4.5 Gramática Tupi

A gramática de Anchieta fazia parte de uma forma de produção intelectual maior, não estava sozinha. Não exatamente porque já havia a descrição do Quechua, mas porque estava inserida na produção intelectual escolástica e servia aos propósitos de produzir conhecimento intelectual cristão de alto nível. Não havia na decisão de Anchieta nenhum arroubo intelectual de descrição linguística da língua mais falada na costa do Brasil, no sentido de que abrangeria de fato a língua mais falada, ele apenas repetiu as lições de Nebrija e de Fernão Oliveira. Afinal vimos até agora que o Tupi não era exatamente a língua dos índios do Brasil, nem eram os Tupi a população indígena de maior porte na colônia, os aldeamentos eram mistos e ainda havia os negros e os portugueses.

A Arte de Anchieta foi organizada na forma de listas de palavras e de frases que expressavam conceitos importantes para a doutrina cristã. Então, o verbo ‘matar’ e sua forma negativa ‘não matar’ eram tão importantes quanto ‘amar’ e sua forma negativa ‘não amar’, pois faziam parte do conjunto dos dez mandamentos divinos. Na Arte de Anchieta, ‘vingar-me dele’ ayepîc cecê era fundamental. A vingança localizava o Tupinambá na rede textual da época, dava veracidade ao canibalismo e autorizava o expansionismo europeu pela via da cristianização.

Na Arte de Anchieta, abâ significa ‘homem’; abacatú significa ‘homem bom’ ou tubá ete que significa ‘pai verdadeiro’, enquanto tubá significa ‘pai’, e ete significa ‘verdadeiro’ no sentido metafísico do Pai cristão, não no sentido de ancestral. Portanto, catu e ete são sufixos relacionados a bom e verdadeiro. Homem bom é um valor semântico, desenvolvido pelos pressupostos cristãos e possivelmente não tinham relação alguma com as concepções de homem dos indígenas. Para a moral cristã elaborada por Tomás de Aquino (1947, p. 62), o homem é a potência de si mesmo, o desenvolvimento pleno da potência humana, no sentido transcendental, fazia de um homem verdadeiro e bom. Todo o agir humano, entendido como o livre arbítrio, expressaria a realização das potências humanas pelo trabalho, pela educação e pelo amor e seria uma colaboração do homem ao agir divino. Pai verdadeiro, antes de ser o demiurgo que deu origem ao grupo, designa Deus. Alfred Métraux (1979, p. 11) considerou a relação expressa por Tamöi como a de ancestral, demiurgo, e por isso a referência ao avô como progenitor do grupo. Anchieta descreveu Tamuya “avós; os mais velhos”, como um termo de parentesco usado pelos homens. Com o sentido de

ancestral, a referência de Lussagnet che rypykuere ‘meus ancestrais’, retomada por Eni Orlandi (2008, p. 129) em Terra à Vista, nos oferecem melhor perspectiva de como foram construídos os sentidos nas descrições missionárias.

Tratando a gramática de Anchieta desta forma, estaríamos replicando os estudos feitos até hoje sobre o Tupi, mas minha intenção é mostrar algo um pouco mais arrojado. Por isso, trarei a Arte da Lingoa de Angola, do padre jesuíta Pedro Dias, escrita em 1697, e que passou por uma avaliação do padre Francisco de Lima do Colégio da Bahia antes de ser publicada em Portugal. Esse é um fato interessante. Antes de ser publicada em Lisboa, a gramática foi avaliada por um padre do Colégio da Bahia, demonstrando que a rede por onde circulava e se produzia conhecimento escolástico de fato passava pelas colônias. Embora escrita 100 anos depois da Arte de Anchieta, ela pode trazer reflexões interessantes para nossa perspectiva de família linguística, principalmente, para o tronco Tupi. A primeira reflexão é sobre os nomes apelativos que, no singular, começam com mu e pertencem a homens e mulheres em seus ofícios. Por exemplo: mubica ‘escravo’ (1697, p. 44); mubiri ‘pastor de gado’ (1697, p. 7); mubuchi ‘barbeiro’ (1697, p. 32).

Em Tupi antigo, morómboeçára significava ‘mestre’ ou ‘senhor’. Segundo Anchieta (1595, p.15), também poderia ser usada acêjará ‘senhor de homem’, ‘o pai’, palavra composta precedida por acê, pronome da terceira pessoa, significando ‘homem’. Para significar ‘o senhor’, seria necessário acrescentar o absolutivo moró, morojará, que é uma possibilidade gramatical, porém não era falada. Esta forma de criar absolutivos, acrescentando moró antes da palavra, era mais utilizada para formas deverbais, em especial, derivados de particípios, por exemplo, morómboeçára ‘o mestre’. Anchieta não explicou como se formou toda a palavra morómboeçára, mas podemos inferir que se moró era usado para criar absolutivos de particípios, então havia um particípio sendo usado, mboe ou mbó ‘a mão’, cujo genitivo é pó. Embora o absolutivo seja moró, o único exemplo dado por Anchieta é morómboeçára, todos os demais absolutivos usam apenas o m como prefixo que, além de prefixo absolutivo, funciona também como possessivo, então também poderia significar, mbó ‘minha mão’. O uso da mão, talvez a mão que açoita, determinava o título de mestre ou o cargo de senhor ou a profissão de chefe. Em uma perspectiva mais ‘coisificada’ do escravo, mboe poderia ser mbae ‘coisa’, em que teríamos ‘o senhor da coisa’. Em vários cronistas do século XVI, compilados por Eni Orlandi (2008, p. 129), a palavra morubixaba foi transcrita, sempre com o sentido de chefe e sempre com morfologia

semelhante, em Montoya, morbichaousassoub; em Fernão Cardim, mburubich; em Evreux, morubixaba; em Claude d’Abbeville, muruuichave. O uso de um prefixo absolutivo moró ou mu ou mbu ou m para indicar o mestre ou o senhor já nos daria pistas suficientes para entender que morubixaba não é um termo de parentesco, nem de linhagem sucessória que significasse o líder de um grupo étnico. É provavelmente um dos tantos termos nascidos da confluência linguística do convívio na colônia.

Como os escravos negros trazidos para trabalhar nas fazendas e nos engenhos faziam parte de vários grupos étnicos e linguísticos, assim como os índios aldeados, é preciso considerar outras influências que não somente a língua de Angola, outras línguas banto estiveram bastante presentes, também o jeje e o yorubá. O encontro consonantal mb faz parte dos grupos consonantais do Quimbundo, uma das línguas banto, mb, mp e nd, nj, ng e não ocorrem em língua portuguesa, mas estão presentes no Nheengatu atual, assim como no Tupi antigo descrito por Anchieta. Renato Mendonça (2012, p. 71) analisou comparativamente a evolução desses grupos consonantais, tanto do Quimbundo quanto do Nheengatu, em seu caminho para a incorporação ao léxico português. Do Quimbundo para o Português, há duas formas diferentes de incorporação do mb: 1) a inserção de uma vogal prostética: mbundu / ambudo;

2) a perda da nasal inicial: mbirimbau / birimbau.

Do Nheengatu para o Português, o encontro consonantal mb reagiu da mesma forma: 1) a inserção de uma vogal prostética: mbirá / embira;

2) a perda da nasal inicial: mbeiú / beju.

Acrescento uma curiosidade, mboia ‘cobra’ perdeu a nasal inicial e se tornou boitatá ou boiaçu. A peculiar nota que Estevão Pinto escreveu ao livro de Alfred Métraux (1979, p. 55) sobre a raiz mboia, existente tanto na África56 quanto no Brasil significando cobra, seja cobra-de-fogo, boitatá; seja a cobra-grande, boiaçu. Couto de Magalhães (1876, p. 172-174) alegou que, no Brasil, tradicionalmente, mboia é uma pequena serpente de fogo que vive na água. Johann von Spix e Carl von Martius (1976, p. 135) documentaram mbuya, significando ‘cobra’. Analisado por vários especialistas em Tupi, todos concordam entre si que o problema da ocorrência idêntica nos dois continentes se fundava nos critérios falhos dos folcloristas e etimólogos que se basearam apenas em analogias nominais.

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Deni Moore (2014, p. 108-142), demonstrou que, no Nheengatu, a série de pronomes pessoais livres foi incorporada do Tupinambá, mantendo-se muito próxima do original, são eles:

išé 1 sg. ĩndé 2 sg. aʔé 3 sg. yãndé 1 pl. pẽỹẽ́ 2 pl. aẽtá 3 pl

A série de pronomes livres do Tupinambá é:

ixe 1 sg. (e)nde 2 sg. ae 3 sg. îandi 1 pl. ore 1 pl. exc. pee 2 pl.

Os pronomes livres em Tupi antigo, como descrito por Anchieta (1595, p. 11) em sua Arte, são os seguintes:

yxê 1 sg. (e)ndê 2 sg. iandê 1 pl. orê 1 pl. pée 2 pl.

Na Arte da língua de Angola, o padre Pedro Dias (1697, p. 8) elencou o conjunto dos pronomes livres, são eles:

ime 1 sg. iyé 2 sg. ae 3 sg. itu 1 pl. inu 2pl. ao 3 pl.

Com relação aos pronomes livres singulares, podemos dizer que são os mesmos, apenas acrescentados da variação fonética causada por algum esforço de adaptação do contato. Quanto aos pronomes pessoais plurais, é possível perceber que o esforço foi feito no sentido de incorporar afixos que marcam o plural em uma dinâmica própria. Porém, ao tratar dos prefixos que fazem o plural na língua de Angola, o padre Pedro Dias anotou à página 5 o termo ndandu ‘parente’, que pode ter-se desenrolado em yãndé ‘nós’, em Nheengatu, com sentido bastante semelhante ao do termo em Angola.

A situação de multilinguismo ininteligível era possivelmente vivenciada por índios, negros e brancos no período colonial. Línguas crioulas estão sempre relacionadas com uma história de contato linguístico entre grupos de línguas mutuamente ininteligíveis. O pidgin estabelecido no princípio do contato passaria a ser uma língua crioula quando a criança nascida nesse contexto usasse a língua como língua materna. Afinal de contas, o Tupi é uma língua crioula? Se há uma base

linguística para um pidgin, qual teria sido ela no caso do Tupi, uma língua indígena ou uma língua africana? Estas perguntas merecem resposta, no entanto, o propósito desta tese, não é respondê-las.

Acredito que antes de afirmar que existiu uma língua Tupi ou Tupinambá original, exclusivamente indígena, seria preciso averiguar com profundidade as relações com as línguas africanas que se estabeleceram, por meio de seus falantes, na costa do Brasil, bem antes dos missionários chegarem para documentá-las. Também não é pertinente estabelecer um tronco linguístico Tupi, não há esta tal proto-língua- mãe da qual historicamente descenderam seus ramos.