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CAPÍTULO I – A HISTÓRIA DA LEITURA PELA HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO

1.6 A HISTÓRIA DO ENSINO DA LEITURA E DA ESCRITA

Segundo Lerner (2002) ensinar a ler e a escrever é um desafio que vai muito além do ato de alfabetizar em sentido estrito, pois incorporar os “aprendentes” à cultura letrada, tornando-os parte da comunidade de leitores e escritores. Nesse sentido, a alfabetização é apenas uma pequena, mas muito importante, etapa desse processo. Sendo assim, a história da alfabetização, considerado o contexto de necessidades acima pontuado, segundo Batista e Galvão (1999), abarca três períodos:

 O primeiro, referente à Antiguidade e A Idade média, quando predominou um ensino orientado pelo método e/ou princípio da soletração, que privilegiava a leitura do texto escrito circunscrita aos processos de decodificação: associar sinais gráficos aos sinais gráficos, aos signos do discurso.

 O segundo, que privilegiava a leitura do texto escrito por duas perspectivas ou momentos de aprendizagem: aquele que tinha como ponto de partida o texto para a aprendizagem da palavra ou o que partia da palavra para o texto, predominou, no Brasil, até a década de 1960 e se qualificou pelo uso de métodos sintéticos e analíticos.

 O terceiro, situado por volta de 1986, orientado pela teoria da língua escrita e por ela a leitura é considerada como uma atividade que faculta ao aprendente atribuir sentidos ao texto que lê, decodificando-os, compreendendo-os e interpretando-os de forma significativa. Trata-se de um trabalho capaz de superar os limites da leitura como instrumento de

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ação para situá-la como fundamento e fundação dos processos que respondem pela ampliação dos conhecimentos prévios do leitor.

Nessa acepção, o primeiro método de ensino - a soletração - está associado à criação do alfabeto e por essa razão também foi denominado método alfabético ou do ABC. Por ele, afirma Araújo (1996) que a alfabetização se caracterizava por um processo lento e complexo que era iniciado pela aprendizagem das vinte e quatro letras do alfabeto grego, decoradas pelas crianças na mesma ordem em que essas letras eram organizadas. À aprendizagem dessas letras na ordem direta seguia-se aquela na ordem ou no sentido inverso, na qual as crianças eram avaliadas por exercícios denominados decorar e saltar e, só após esse processo, a forma gráfica das letras eram apresentadas e aprendidas. A essas duas operações seguia-se a tarefa de associar o valor sonoro (até então apenas memorizado) à respectiva representação gráfica de cada um desses sinais, agora, escritos.

Observa-se, neste âmbito, que as primeiras grafias eram aquelas das letras maiúsculas organizadas em colunas e só depois aprendia-se as letras minúsculas, pois era necessário associar as letras a suas respectivas formas. O mesmo processo era usado para o ensino das famílias silábicas, também decoradas em ordem direta até serem esgotadas todas as possibilidades combinatórias de cada letra na formação das sílabas, observada a seguinte ordem: monossílabos, dissílabos, trissílabos e polissílabos, ou seja, esses últimos se seguiam ao estudo da sílaba isolada. Esse mesmo procedimento será reiterado pelas cartilhas12que, segundo Boto (1997), tem sua origem após a invenção do silabário e, em se tratando daquelas produzidas para o uso de textos grafados em língua portuguesa, tem o século XVI como seu marco inicial.

12O termo cartilha, segundo Boto (1997), constitui

um desdobramento da palavra “cartinha” que, por sua vez era usada em língua portuguesa desde o princípio da Idade Moderna, para identificar aqueles textos impressos cujo propósito explícito seria o de ensinar a ler, a escrever e a contar. Apresentavam usualmente o abecedário, a construção de palavras e suas subdivisões, alguns excertos simples com conteúdos moralizadores, quase sempre precedidos de excertos de orações ou de salmos, posto que a religiosidade era a marca daquele ensino primário que, pouco a pouco, se constituía.

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Nesse sentido, os primeiros textos apresentados às crianças eram segmentados em sílabas e, posteriormente, por palavras sem qualquer segmentação e, antes da invenção da gramática da paginação, sem qualquer espaço entre essas palavras e sem qualquer sinal de pontuação (cf. p. 35) Observa- se que embora Platão considerasse o período de quatro anos suficiente para se aprender a ler e a escrever, esse processo de alfabetização ocorria durante doze anos. (Cf. p. 21 e 26)

Esse mesmo processo de ensino-aprendizagem orientado por procedimentos sistemáticos de progressão - letra, sílaba, palavra, texto- foi utilizado não só durante a Idade Antiga, mas também se fez extensivo à Idade Média. Estudos arqueológicos têm possibilitado afirmar que os procedimentos referentes à alfabetização medieval ocorrem em dois tempos subsequentes: a aprendizagem do alfabeto e aquela da leitura dos primeiros textos que eram escritos em língua latina e tinham cunho religioso. Afirma Araújo que, segundo a cartilha Civile Honesteté des enfants (Paris, 1560), o professor deveria apresentar à criança quatro letras por dia, sendo as primeiras as letras A, B, C, D- fato que daria origem à palavra abecedário; contudo, no século XVII a orientação exigia que se ensinasse as letras de três em três - ABC, DEF, GHI – mas na primeira aula seria ensinada apenas a letra A, razão por que o termo "abecê" não se explica apenas como redução do termo abecedário.

Observa também o autor o uso de vários artifícios ou estratégias empregadas na Idade Média para facilitar a aquisição da leitura pelas crianças, pois nos museus arqueológicos europeus estão expostos suportes utilizados na época, onde se vê o registro de alfabetos em couro, tecidos ou mesmo em ouro, tabletes de madeira ou gesso. Tais objetos eram colocados em contato com as crianças desde a mais tenra idade para que elas pudessem olhá-los, observá- los, examiná-los e com eles interagir. Assim, as imagens da época revelam crianças sendo amamentadas com essas tabularas penduradas em seus braços. Também é possível identificar alimentos como bolos, doces e bolachas que tinham o formato dessas letras, para que as crianças, depois de

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conhecerem as formas das letras, aprendessem seus respectivos nomes, enquanto esses alimentos eram consumidos.13

Esse modo de ensinar por meio da soletração começou a ser questionado no século XVI por alguns pensadores que o consideravam muito difícil. Alguns desses pesquisadores apresentaram novos métodos como o ensino das letras de palavras conhecidas pelos alunos e a própria reinvenção do método da soletração, ensinando o som das letras em vez de ensinar os seus respectivos nomes. Nestas buscas por um novo modo de ensinar, surge, em 1719, o método fônico, cuja ênfase era dada ao som individual das letras que compunham as palavras, provocando certo exagero considerado desproporcional. O método fônico foi rejeitado no mesmo século em que foi criado, no entanto, ainda hoje ele tem defensores, que alegam ser ele a solução para o fracasso escolar no Brasil, contrariando os estudos linguísticos, cujos postulados mostram que a menor unidade que o falante percebe ao falar é a sílaba e não o fonema, visto que este último é uma unidade destituída de sentido perceptível na fala.

Posteriormente, visando superar as dificuldades do método fônico, foi criado, na França, o método silábico, pelo qual se ensina o nome das vogais, depois o nome de uma consoante e, então, as famílias silábicas que formarão palavras. Esse método foi criticado pela falta de contextualização e, desta crítica, surgiu o método global, que ensinava a palavra partindo da própria palavra, pois as palavras remetem algo conhecido pela criança e, portanto, com mais sentido de ser aprendido,14já que falamos por palavras inteiras e não por pedaços delas.

Após a criação desse método, focado na unidade da palavra, foram criados métodos da sentenciação e outros que tinham como ponto de partida os contos de fadas e outros aspectos inerentes à experiência das crianças. Neste

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Observa-se ainda hoje o uso desta estratégia com a famosa “sopa de letrinhas”, cujo macarrão representa as letras do alfabeto e com elas as crianças podem brincar de escrever enquanto comem.

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Em defesa ao método global, o gramático Nicolas Adams, afirma, em 1787, que para ensinar a uma criança o que é um vestido, mostra-se um vestido e não as partes que o compõem e assim também deve ser com as palavras.

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sentido, os métodos da soletração, o fônico e o silábico, são de origem sintética, pois partem da unidade menor para a maior; já os métodos da palavração, sentenciação e os textuais são de origem analítica, pois partem de uma unidade que possui significado para as unidades menores.

1.6.1. A HISTÓRIA DAS CARTILHAS

A cartilha surge no século XVI, a partir da invenção do silabário, que vem a ser a sua primeira versão, e é utilizada como material para ensinar a ler e a escrever. No Brasil, a partir da última década do século XIX, com a organização republicana da instrução pública, observa-se o início de um movimento de escolarização das práticas de leitura e escrita e de identificação entre o processo de ensino inicial dessas práticas e a questão dos métodos. A partir de então, a cartilha vai se consolidando como um imprescindível instrumento de concretização dos métodos propostos e, em decorrência, de configuração de determinado conteúdo de ensino, assim como de certas silenciosas, mas operantes, concepções de alfabetização, leitura, escrita e texto, cuja finalidade e utilidade se encerram nos limites da própria escola e cuja permanência se pode observar até os dias atuais.

Na primeira metade do século XIX, formar leitores no Brasil implicava conviver com um conjunto reduzido de material impresso para o ensino da leitura. Uma parte desse era de natureza religiosa (Bíblia, Evangelho) ou legal (Constituição Política do Império, Código Criminal) tal como previa o art.6º da Lei Imperial de 15 de outubro de 1827. Foi a partir da segunda metade do século XIX que começaram, com mais frequência, a surgir, no país, livros nacionais de leitura destinados especificamente às séries iniciais da escolarização. As cartilhas escolares passam a ser utilizadas nas escolas primárias.

53 http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_cartilhas.htm - acessado em 30/12/14.

A palavra cartilha, que vem de cartinha, remonta, por seu turno, às situações mais corriqueiras e frequentes: até o século XIX, boa parte (muitas vezes a maioria) dos textos escritos que as crianças traziam de casa para utilizá-los na escola como materiais de ensino de leitura eram manuscritos: dentre esses, as cartas, certidões, relatos de viagens. Muitos dos meninos e meninas que, em Portugal, aprenderam a ler, inicialmente o fizeram mediante a leitura de cartinhas. Ao analisar a Cartilha Nacional utilizada nas escolas primárias, escrita por HILARIO RIBEIRO, foi empregado esse método no IMPERIAL LYCEU DE ARTES E OFFICIOS. A sua 1ª edição foi em 1885 e, segundo o Prefácio do Autor , ela foi resultado de suas experiências com o ensino simultâneo da leitura com a escrita, pelo método fônico. O método da

Cartilha Nacional constituía em: depois que o aluno tiver uma ideia clara e

consciente de que as vozes são representadas na escrita pelas vogais, e analisados os respectivos valores de cada uma, passará o professor a discriminar os elementos fônicos das consoantes, começando pelo v que tem valor certo e proferível. O método proposto é sintético (que partem de segmentos menores da língua que sintetizados formarão o todo). Do ponto de vista histórico podemos observar através do seu trabalho o realce ao valor moral e cívico.

54 http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_cartilhas.htm - acessado em 30/12/14.

No final do século XIX, a leitura era um instrumento importante para a educação cívica e moral, que poderia ser adquirida através dos livros de leitura que, segundo ele, eram a “mola real do ensino”. A ideologia que informa os aspectos ligados à cidadania nos textos das cartilhas geralmente se refere à família, à escola e à pátria. A família é apresentada nas cartilhas como um mundo à parte em si e para si, desvinculada da realidade social e econômica. Os textos moldam uma personalidade de indivíduo subordinado às autoridades públicas e desprovido de visão participativa no mundo. Entretanto, são esparsas as informações sobre as cartilhas entre os séculos XIX e XX.

Embora a maioria das cartilhas esteja associada a métodos sintéticos de ensino, há também aquelas que aderem ao método analítico, como a Cartilha

Maternal, do poeta João de Deus, editada ainda hoje em Portugal. Em geral,

independente do método de ensino, a alfabetização até o final do século XIX acontecia inicialmente em letra cursiva (manuscrita) e só depois em letra bastão, ou de forma.

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A publicação de cartilhas cresceu muito a partir de 1930 e se tornou um grande negócio, em decorrência do qual, passou a ser editado junto às cartilhas o Manual do Professor, cuja função é orientar o professor quanto ao uso adequado desse material, que apesar das críticas por apresentarem o texto apenas como um pretexto para uma leitura pouco proficiente, durante décadas se alfabetizou apenas por meio de cartilhas e há quem defenda o uso desse material, com o argumento de que ele foi eficiente num passado próximo e, portanto, pode ser eficiente no presente, mas deixaremos esta discussão para adentrarmos os conceitos de alfabetização e letramento no próximo capítulo.

1.7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O resgate da história da leitura pela história da invenção escrita possibilitou que se compreendesse o fato de os alfabetos terem sido inventados por diferentes povos e por um processo bastante demorado e, nele implicadas, inovações, renovações ou reconstruções, inclusive de seus suportes materiais. A renovação desses diferentes e variados suportes – tabuinhas de argila, superfícies lisas de pedras usadas na construção de palácios ou muralhas, papiros e pergaminhos, por exemplo – coexistiu, por um lado, em um dado tempo de duração de um dado modelo de formação ou modelo de sociedade, como a egípcia, a grega e a romana. Por outro lado, alguns deles deixam de ser usados pelos aprendentes de escritores ou escritores propriamente ditos de uma sociedade – as tabuinhas de argila, as pedras, por exemplo – de modo que, no final da Idade Média, persistem os papiros e os pergaminhos, mas estes últimos sob a forma de códex: o protótipo do livro moderno. Esses suportes, com a invenção da imprensa dos tempos modernos, da folha de papel e do livro, passam a ser documentos alocados em grandes bibliotecas ou museus públicos, por um lado e, por outro, nos dias atuais, as tabuinhas de argila retornam nas telas do computador ou nas dos “tabletes” propriamente ditos, quando os dedos das mãos substituem as cunhas e os estiletes de ferro. Hoje, também o livro impresso já divide o espaço social com o e-book.

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Esse contexto de mudanças ou transformações das formas desses suportes impuseram mudanças de comportamentos dos leitores para exercerem suas práticas de leitura: se antes era necessário desenrolar e enrolar, ao mesmo tempo o papiro ou o pergaminho, o que impedia trabalhar com vários textos ou consultar o conteúdo de um pelo do outro, hoje isso se tornou uma prática comum e corriqueira para leitores proficientes. Assim, tomar notas enquanto se lê, com o advento do livro tornou-se uma prática usual para esse tipo de leitor, mas a leitura praticada na tela do computador não deixa de ter significativo grau de similaridade com a passagem do texto registrado no volumen que se desenrolava sob os olhos do leitor. Todavia, para suprir essa falta referente ao ler registrando, estão criados alguns aplicativos para computadores e tabletes, que deverão facilitar a possibilidade de o leitor fazer apontamentos desses textos lidos nessas telas. Nesse contexto e a princípio, o registro do texto escrito se fez sob a forma de longas linhas horizontais, no sentido da largura do papiro ou do pergaminho; mas, gradativamente, a sua disposição em colunas verticais, em substituição às linhas horizontais, vai se tornando cada vez mais frequente, favorecendo o advento do códex, no final do período medieval.

Observou-se que tais mudanças contribuíam com o ensino da leitura, à proporção que elas facultavam aos aprendentes das práticas de leitura atribuir aos textos que liam, maior grau de legibilidade. Entretanto, com a invenção da gramática da paginação, esse grau de legibilidade é estendido à totalidade material de um texto nas páginas dos livros modernos, continuamente aprimorada, por meio do espaço em branco instituído entre as formas vocabulares das palavras, não mais grafadas de forma abreviada, a pontuação e a convenção ortográfica instituída ao longo dos séculos dos tempos modernos. Por conseguinte, a escola moderna, ao negligenciar o ensino desses aspectos formais do texto, contribui para registros de textos ilegíveis, razão por que muitos professores, senão a maioria deles, exigem “os textos digitados na tela do computador e impressos na folha do papel”. Entretanto, ao ensinarem a produção de texto escrito, em sala de aula, e avaliarem esse tipo de produção dos alunos, seus professores têm dificuldades, quando não se veem impossibilitados, de avaliarem essas produções em razão do baixo grau de legibilidade e, consequentemente, de leitura.

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Foram identificadas ao longo desse estudo duas modalidades de leitura: a leitura intensiva, que no fluxo do longo tempo da invenção da escrita e do seu ensino escolar passou a conviver, gradativamente, com a leitura extensiva. Pode-se observar que, a princípio, e, em razão da impossibilidade de reprodução dos textos antigos por meio de cópias, ou do difícil acesso aos textos originais, eles eram lidos de maneira intensa, profunda e reiterada. Todavia, com a invenção da imprensa e a reprodução inumerável de uma mesma obra – sem ignorar o fato da facilidade de editoração de um número incontável de livros de diferentes áreas do saber e a facilidade do processo de distribuição dessas obras – a leitura intensiva passa a conviver com a extensiva, assim, essas duas modalidades de leitura hoje convivem nas sociedades modernas, visto que hoje, leem-se alguns textos de forma intensa, profunda e reiterada – leitura intensiva – e uma enorme quantidade de textos de uma maneira mais rápida e superficial – leitura extensiva.

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