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CAPÍTULO I – A HISTÓRIA DA LEITURA PELA HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO

1.4 A FORMAÇÃO DO LEITOR E O SEU PAPEL SOCIAL: RESGATE DO PASSADO

A história da leitura, conforme a história da escrita, não está dissociada da história do alfabeto e tampouco do esforço despendido pelo trabalho do aprendiz que se propõe a aprender a ler textos de outros autores-escribas, de forma significativa. A sua aprendizagem ao longo da história da antiguidade e mesmo da modernidade sempre esteve associada àquela referente à soletração do alfabeto que, segundo Araújo (1996), desde a Idade Antiga, perpassando o tempo da Idade Média e ainda se fazendo extensiva à Idade Moderna, fez-se presente em nossas escolas. Aprender a usar a tecnologia natural da voz, para aprender a conhecer e fazer uso dos sinais gráficos das letras do alfabeto – a velha-nova tecnologia inventada pelo homem - foi o procedimento didático do longo tempo da história da alfabetização escolar.

Nesta acepção a história da leitura do texto escrito não se dissocia de seus suportes tecnológicos por meio dos quais esses textos são propagados e, alguns deles impuseram ao leitor procedimentos complexos. Segundo Barbier (2008), os suportes que circularam na Idade Antiga e Medieval não favoreciam o mesmo grau de legibilidade que o livro moderno oferece aos seus leitores, pois os registros escritos dos textos dessas épocas impuseram práticas complexas a seus leitores. Dentre essas complexidades, é preciso situar aquelas que sempre buscaram e, ainda hoje, buscam controlar e controlam as informações veiculadas por esses e outros suportes do texto escrito.

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Nesse sentido, compreender a história desses suportes, sejam eles qualificados como manuscritos ou impressos e pontuar a complexidade que essas formas impõem às práticas de aprendizagem da leitura de textos escritos, deverão contribuir para uma abordagem também significativa do livro didático e das cartilhas de alfabetização. Estender essa complexidade para o campo do controle das informações, veiculadas por esses suportes, ao longo do tempo de suas produções diferenciadas, é outro aspecto que não pode ser ignorado para ampliar a compreensão sobre as funções dos livros didáticos modernos, visto que eles são qualificados, principalmente pelos professores, como um facilitador da aprendizagem da língua materna, na sua modalidade escrita. Mas, dentre aqueles que se fazem críticos desses tipos de livros, eles funcionariam de modo a dificultar a aprendizagem da língua escrita pelos escolares que dele fazem uso cotidiano. Essa dificuldade se faz extensiva a professores que dele jamais se afastam, mesmo que fosse para complementar seus conteúdos programáticos e, assim procedendo, ampliar as orientações de suas práticas de ensino. Para Rangel (2003), se não é possível atribuir ao livro didático grau suficiente ou satisfatório de qualidades que ele precisaria ter, também não é possível atribuir a ele todas as responsabilidades pelos insucessos da escola moderna referentes às suas funções essenciais.

Assim, conhecer os antecedentes de que se originaram esses suportes – os livros didáticos dos tempos modernos – de modo a identificar suas funções ao longo do tempo em que a humanidade passou a conviver com eles, deverá facultar compreender por um lado, as funções desse objeto pedagógico. Dentre elas, como sabemos situam-se aquelas exigidas pela sociedade moderna em que se situam suas instituições escolares e sobre elas permanece a responsabilidade pelo ensino-aprendizagem significativo da cultura da civilização da escrita: um objetivo que permanece ao longo do tempo da sua invenção. Para autores como Lajolo e Zilberman (2007), desde a invenção da escola, inscrita nos primórdios da própria invenção da escrita, os materiais didáticos sempre estiveram presentes nas salas de aulas para ensinar a aprender a arte da composição escrita, bem como a leitura dessas composições.

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Segundo Santos (1997) não se pode ignorar o fato de que as mídias impressas da modernidade tornaram os conhecimentos textuais cada vez mais visíveis, possibilitando compreender o processo histórico de transformação de conceitos abstratos em imagens reais. Por conseguinte, os atuais suportes materiais dessas novas tecnologias não só facilitaram a visualização e o arquivamento da língua, mas também proporcionou uma representação temática mais concisa, coerente e compreensível dos conhecimentos inscritos e registrados em língua. Segundo esse autor, no tempo transcorrido entre os pictogramas, os ideogramas, os logogramas ou hieróglifos e o alfabeto propriamente dito, bem como o desenvolvimento da arte visual por meio da qual o homem buscou dar forma aos sinais expressos, deslocando-se dos manuscritos para o impresso, o texto abandonou a sua posição de subproduto de ações linguístico- comunicativo.

O texto, desde então passou a se situar como lugar onde os conhecimentos humanos são compreendidos e continuamente reinterpretados. Além disso, o produto desses movimentos de compreensão e reinterpretações dos conhecimentos sócio cognitivos humanos, representados por meio de textos coesos e coerentes, são indissociáveis das formas modernas de distribuição por meio das quais se assegura que eles sejam recebidos de modo cada vez mais legível, mais fácil, mais barato, mais confortável, mais rápido e mais direcionado às pessoas, às organizações ou instituições. Assim, uma abordagem do texto, no espaço por ele ocupado no mundo moderno, não pode ignorar a multiplicidade de formas sócio-cultural-econômicas e mediáticas, implicadas nos processos de distribuição e recepção desses textos. Entretanto, os estudiosos dos livros em geral afirmam que esses conhecimentos são sobre a multiplicidade de formas sócio-cultural-econômicas e mediáticas insuficientes, tanto quanto os processos de distribuição dos textos escritos. Essa insuficiência se justifica em relação ao fato que, mesmo hoje tanto quanto nos tempos de vivências passadas, eles são mundialmente controlados por sistemas globais de comunicação, coordenados pelas agências das tecnologias atuais.

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1.4.1 A LEITURA, O LEITOR E O LIVRO

O livro manuscrito carrega a primeira revolução da história da escrita e a ela se segue a revolução da escrita impressa que responderá pela agilização dos processos de divulgação e distribuição de textos e, com eles, ampliam-se a propagação da cultura letrada, da fé e do poder entre aqueles que se fizeram e se fazem leitores. Para Antos, os textos impressos revestem-se de alto grau de legibilidade e, por isso, propagam, com facilidade, o conhecimento humano armazenado ao longo do tempo, tão difícil de ser compreendido e interpretado, na era do Volumem e do Códex – aqueles que antecedem a gramática da paginação (cf. p. 35).

Na antiguidade clássica, a criação desse conjunto de folhas reunidas sobre as quais há um conjunto de formas vocabulares escritas, já era denominado pela palavra latina “liber” – “livre”, no francês, “libro”, no italiano e no espanhol e “livro”, no português – para se referir à palavra com que era nomeada a película de uma árvore de que se originou seu primeiro suporte material. Todavia, a forma vocabular usada pelos gregos da qual somos herdeiros é

”biblion”, derivada de “biblos” com que aquele povo designava esse mesmo

objeto que recebia o nome de “papiro”, no Egito e de onde deriva a palavra “bíblia” entre os hebreus e também “biblioteca”, enquanto da língua alemã temos “bokis”. Da raiz indo européia “skrib” - equivalente a “graphein”, no grego, a scribere”, em latim e a “scribus, gratter”, em português, mantemos o

uso de “gafar, grafismo, gavar” para nos referirmos a conceitos referentes à escrita: modos ou maneiras de traçar sinais escritos sobre um dado suporte.

Observa-se que desse contexto de diferentes recortes lexicais hoje convivemos com a instabilidade de uma concepção de “livro” e, por ela, hoje denominamos por “livro” apenas o objeto impresso; pois, ao “livro digital chamamos de “e- book”“. Contudo, essas diferenças nem sempre são exatas visto que além do livro impresso - aqui designado como o livro propriamente dito – existem os jornais impressos e os periódicos, sendo esses últimos geralmente usados para designar revistas e suplementos publicados regularmente. Assim, usamos

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o termo “periódico” para denominar uma coletânea de textos reunidos e encadernados, o termo “anuário” para nos referirmos a um periódico que é publicado anualmente etc. Diante do grau da imprecisão para de definir o que é um livro, a UNESCO passou a considerar ser ele uma publicação impressa, não periódica, cujo número de páginas não deve ser inferior a cinquenta; essa mesma concepção é hoje adotada e propagada, entre nós, pela ABNT. Contudo, quando nos referimos a “livros manuscritos” ou simplesmente a “manuscritos” fazemos referência a documentos escritos à mão ou livros sob a forma de “rolos”, denominados “volumem” que se fizeram presentes na civilização antiga.

1.4.2 O LEITOR DO VOLUMEM NO TEMPO DOS MANUSCRITOS

Os textos em volumem, cuja forma material se faz distante dos livros em cadernos, foram conservados em bibliotecas pelos homens letrados da antiguidade – os escribas, sacerdotes e leitores – cujo acervo não se confunde com os arquivos que são depositários de documentos, também manuscritos e possuem grande número de impressos de vários tipos. Dentre esses se situam circulares, documentos administrativos, por exemplo, e também diferentes livros, além de coleções das bibliotecas que, hoje, incluem o disco, o CD, fitas de vídeos e o DVD e, muitas delas propõem espaço de conexões com a internet conhecidas como “mediateca”.

Numa perspectiva mais abrangente, retoma-se o volumem para retomar não só a natureza do texto por ele propagado, mas também a função de mediação com o público-leitor daquela época. Sabe-se que o volumem foi fabricado por meio de tiras de papiro que foram usadas pelos egípcios, pelos gregos e pelos romanos até o século III a.C. Nesse tempo, quando os autores não escreviam os seus próprios textos que eram ditados a um “secretário escriba”, esse usava como rascunho uma tabuleta de cera ou mesmo um folheto de papiro, bem como de pergaminho, antes de passar o “texto a limpo”. Segundo os historiadores, Cícero e Virgílio ditaram os textos de que foram autores e mesmo São Jerônimo e Santo Agostinho, na Idade Média, não redigiram quaisquer textos de suas obras de próprio punho, pois só na Idade Moderna os

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autores passam a escrever e revisar seus próprios textos. Observa o autor para os seus leitores que o tema do ditado, ainda

(...) está presente num afresco do século XV da Igreja de Sainte-Paraskévi, em Chifre: o apóstolo Paulo está em pé, inclinado sobre o ombro de seu secretário, olhando o que este último escreve a partir de seu ditado. (...) A cópia tem igualmente por efeito, alterar, às vezes, o texto original, quando o secretário pode apenas tomar notas rápidas sobre as quais, com a cabeça repousada estabelece o texto definitivo. (Barbier 2008:35)

Esta prática da cópia e do “passar o texto a limpo” perpassa toda a Antiguidade Clássica, perdura durante a Idade Média e alcança os tempos modernos - quando é usada na escola pelo professor – pois, terminada a redação, tem início o trabalho da cópia propriamente dita. O texto é agora registrado sobre um só lado do volumem, sob a forma de colunas perpendiculares e sucessivas, variáveis segundo o comprimento desses suportes.

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Normalmente, o papiro, com o qual é feito o volumem, tem a forma de uma estreita tira de cinco centímetros e meio de comprimento por oito centímetros de largura; contudo, há volumem cujo tamanho chegava a ultrapassar dez metros de comprimento, dificultando a manipulação dos mesmos,

(...) a ponto de a sua própria leitura se mostrar perigosa: à idade de oitenta e três anos, Virginius Rufus (...) leu em pé um volumem tão pesado que acabou por lhe cair das mãos. Querendo apanhá-lo, perdeu o equilíbrio, caiu, quebrou a perna e morreu. (in:Barbier, 2008:36).

Observa-se o fato de o volumem ser guardado em jarras de cerâmica, em cestos, em caixas, cofres ou em prateleiras e, em se tratando de bibliotecas, em escaninhos e/ou armários; razão por que o termo “biblioteca” denominava o móvel onde esse material é abrigado e, posteriormente, o lugar que a ele serve de abrigo e proteção.

Cumpre pontuar, por fim, que o volumem impõe a seus leitores uma complexa prática de leitura, visto que ele precisa desenrolar com a mão esquerda e, ao mesmo tempo, desenrolar enrolar com a direita, o texto que tinha sob os seus olhos. Torna-se inviável, por um lado, trabalhar com a leitura de vários rolos ao mesmo tempo e, por outro lado, o leitor é compelido a fazer uma leitura seguida o que o impedia de tomar notas, elaborar comentários, consultar outros textos. Desse modo a leitura na sua cursividade fica reduzida a cada coluna que sempre corresponde a “metades” da superfície do texto; não há uso do verso da página do pergaminho que sempre fica inutilizado para qualquer uso.

1.4.3 O LEITOR ENTRE O CODEX E A IMPRESSÃO

O papiro, conforme registrado no item que antecede a esse, durante muitos séculos, permaneceu entre os povos da antiguidade e, por ele, foi propagada a cultura dos egípcios entre os gregos e os romanos que dele também fizeram uso para divulgarem as suas. Contudo, os gregos também fazem uso, desde

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o século II a.C. do pergaminho, que surgira em Pérgamo, na Turquia, e era feito da pele de animais – cabra, carneiro, cordeiro, ovelha ou bezerros recém- nascidos. A pele desses animais era mergulhada em água de cal e todos pelos eram retirados, antes de retornarem para nova água de cal, a seguir eram colocados sobre uma armação para secar. Durante a secagem a pele era desbastada com uma fina lâmina e, depois de secas elas eram lixadas com pós de pedra-pomes e, a seguir, eram cortadas em folhas retangulares que, à semelhança das folhas de papiro, eram unidas umas às outras e enroladas, conforme figura a seguir:

Gradativamente, elas foram sendo reunidas em várias lâminas, mantidas juntas por um laço de couro e, sobre essas lâminas são registradas “contas” e outras informações de valor durável. Embora o Codex não tenha sido imposto na Roma antiga, onde o volumem de papiro permaneceu, ele era usado para trabalhos rápidos e breves, notas e rascunhos e, nos séculos III e IV d.c., o seu uso se torna generalizado e supera o uso do papiro. Assim, o texto era copiado em frente e verso, e, em seguida, a pele era dobrada para se fazer ou assumir efetivamente a forma de “cadernos” que, juntados uns aos outros, eram costurados, tornando-se o protótipo do livro da Idade Moderna; razão pela qual com o codex desenvolve-se a encadernação.

Nesse sentido, segundo Barbier (2010), o Codex é o suporte da cultura letrada: o principal ponto de referência para trabalhos intelectuais sobre documentos

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escritos, pois a ele se torna possível superpor a consulta e, com ela, outros sistemas de referências textuais: pode-se, desde então, consultar outros Codex e tomar notas. Nesse sentido, ele vai possibilitando o abandono da leitura pública oralizada, para privilegiar a leitura individualizada e silenciosa, sem deixar de atribuir relevo ao fato de a letra minúscula, até então desconhecida, haver sido incorporada pelos copistas medievais. Essas qualidades do Codex serão exploradas no século XVI, com a multiplicação dos livros.

Mysterious Book: Codex Gigas In Socyberty ─ publicado em 06/07/2009 - acessado em 30/11/14.