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CAPÍTULO II FUNDAMENTOS TEÓRICOS: FACILIDADES E DIFICULDADES

2.2 MODOS DE DIZER E DE OUVIR AS VOZES LEITORAS DO PASSADO

Cavallo e Chartier (2002) observam para seus leitores que suas tarefas consistem em reconstruir por meio da singularidade da história das diferentes vozes leitoras do passado as diferentes maneiras de ler os textos produzidos no passado remoto. E, para tanto, eles não podem ignorar as palavras de Paul Ricoeuer (1978) para quem a atenção deve se voltar para o modo como se dá o encontro entre o mundo do texto e o mundo do leitor, visto que as significações não só emergem das formas e das circunstâncias desses encontros, mas também dos meios pelos quais os textos são recebidos e apropriados por seus leitores. Esses nunca foram e não são leitores ideais confrontados com textos abstratos, ideais, desligados de qualquer materialidade, mas objetos que manipulados possibilitam a audição de palavras que governavam e governam as práticas da escuta e, assim procedendo – ao aprender não só a ouvir, mas a escutar as palavras durante as atividades de leitura – torna-se possível comandam a compreensão dos referidos textos.

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Entretanto, é preciso ponderar que a semântica da palavra e, necessariamente dos textos, não se limitam apenas às teorias da recepção, pois as formas das palavras e dos textos que delas fazem usos também se revestem de sentidos, razão por que a mudança de suporte material implica outras modalidades ou modos de ler. E, nessa acepção, a história dos modos de ler abarca a história não só dos objetos escritos, mas também das palavras leitoras, visto ser ela uma prática encarnada por gestos, espaços, hábitos e tradições que orientam os modos de ler.

Nesse contexto de pressuposições, os autores chamam a atenção de seus leitores sobre os diferentes modos de ler - inclusive sobre a leitura de mundos, feitas pelos analfabetos e alfabetizados – pois essas diferenças não esgotam aquelas entre os modos de ler os suportes escritos, a leitura pública. Observa- se, neste caso, que antes do advento da imprensa, o trabalho de divulgação de textos oficiais eram lidos publicamente, diante de vários súditos e servos, na grande maioria analfabetos. Esse trabalho do leitor - que desenrolava gradativamente o rolo de papiro à vista medida em que fazia a leitura do que nele fora ditado pelo rei e registrado pelo escriba – implicava a atenção desses ouvintes que recaia sobre as palavras que o rei a eles mandava dizer. Hoje, os jornais locais, nacionais e internacionais – embora ocultem os textos escritos, propagados por meio das telas da televisão, mas lidos pelos apresentadores dos telejornais – também são palavras redigidas em língua escrita por editores desses telejornais, sob a forma de notícias. Contudo e geralmente, os seus ouvintes estão sentados em um sofá e têm diante de si apenas a imagem do apresentador do jornal, cuja função é a de oralizar o texto do editor que, na condição de empregado do dono da empresa jornalística – uma concessão do governo – diz aquilo que ele deve e pode saber sobre os acontecimentos diários, à semelhança de seus antecedentes; sejam eles alfabetizados ou analfabetos. (cf. Cavallo e Chartier, 2002) O público-ouvinte foi fragmentado em pequenos grupos de familiares e dessa fragmentação tem-se a variação de formas de escritos e de identidade pública desses grupos para melhor compreender a significação móvel e plural dos textos divulgados. Segundo ainda esses atores (op.cit. 2002; p. 7.):

(...) os contrastes que marcam os contrastes no longo prazo das diferentes maneiras de ler, caracterizam em seus desvios,

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as práticas das diversas comunidades de leitores, dentro de uma mesma sociedade, observando atentamente as transformações das formas e dos códigos que modificam, ao mesmo tempo, o estatuto e o público dos diferentes gêneros textuais.

É preciso, ainda, não ignorar modos de ler que desapareceram ou que foram marginalizadas no mundo dos tempos modernos ao qual nos integramos, como é o caso da leitura em voz alta em sua dupla função: a de comunicar o escrito

àqueles que não sabem decifrá-lo e também a de encaixar formas de sociabilidade que são outras tantas figuras do espaço privado (op.cit.p.8). O

esquecimento dessas práticas marginalizadas são os gestos esquecidos, hábitos que desapareceram e despertam estranhezas para pesquisadores por se fazerem incomuns àqueles que leem em silêncio, movimentando apenas os olhos. Assim, quando nos referimos a textos antigos, temos por referência aqueles que foram compostos para leituras de nossos antepassados: aqueles que, ainda na Idade Média e mesmo nos séculos XVII e XVIII tinham ouvintes de uma voz leitora e não leitores propriamente ditos como hoje os qualificamos e compreendemos. Eles eram dirigidos aos olhos e aos ouvidos e por isso ainda jogavam com formas e fórmulas aptas a submeterem a língua escrita às exigências próprias do desempenho da língua oral.

No caso dos textos literários convém pontuar o fato de esses tipos de textos não existirem em si e por si mesmos, separados de qualquer materialidade discursiva, pois mesmo esse tipo de texto, nunca teve ou terá dele excluído o suporte que assegura a objetividade da sua materialidade linguística. Nenhum autor do passado ou do presente escreveu ou escreve livros que não tenham se tornado objetos escritos – sejam eles manuscritos, impressos ou gravados – e manejados de diferentes formas por leitores reais, os de carne e osso.

2.2.1 As Leituras em Voz Alta e a Silenciosa na Europa Ocidental

A palavra escrita oralizada se faz presente no modelo de formação sociocultural da antiga civilização grega desde o século VIII a.C, quando a escrita alfabética, herdada dos fenícios, se faz totalmente reinterpretada por aquele povo por meio do acréscimo das vogais aos sons consonantais,

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conforme registrado no Capítulo I. Marcada por alto grau de valorização dos usos da língua oral, já inscritos na esfera do poder político, era a palavra oral que reinava como marco cultural de forma incontestável, entre seus grupos sociais; razão por que os textos eram por eles escritos para serem ditos em público. É nesse sentido que, embora aprendidos nas suas escolas, eram corrigidos pelos redatores, mediante leituras dos mesmos, mas sempre feitas pelos próprios alunos- redatores-leitores, de modo a aprenderem os modos de dizê-los na esfera do espaço público. Na antiga Grécia, pontuam Cavallo e Chartier (0p.cit.2002: p. 40 e 41), que “(...) nos primeiros tempos a palavra oral reina de forma incontestável (...)”, de sorte que sob a forma de “fama imperecível”, ou pela “gloria pós-morte”, o sentido fundamental do som das palavras era o meio usado para representar os heróis de suas epopeias dos tempos homéricos. A eficácia da sonoridade das palavras é, portanto, a razão da existência do próprio herói que sempre aceitaram a morte gloriosa, em combate. Nessa acepção, entendiam que uma escrita muda, formada apenas pela escrita consonantal, não era capaz de representar o sentido fundamental da sonoridade, da acústica do tanger das espadas de um combatente de alma nobre ou cidadã, ou seja: “(...) para que serviria „uma escrita muda‟, em uma cultura na qual a tradição oral se acredita capaz de assegurar sua própria permanência sem outro suporte além da memória e da voz dos homens?”. A resposta a essa questão, segundo os autores, seria aquela que asseguraria a produção de uma maior intensidade a ser atribuída aos sentidos da forma vocabular “bleos” – ao poder da “fama e da glória” para os ouvidos, ou seja,

(...) a produção de mais bléos, (...), graças às inscrições funerárias que garantiam uma nova forma de posteridade dos mortos. Assim, a escrita teria sido utilizada pela cultura oral em uma perspectiva que não seria a de proteger a tradição épica (embora ela acabe por fazê-lo}, mas sim a de contribuir para a produção de som, de palavras eficazes, de glória retumbante.

Heller (1970) chama a atenção de seus leitores sobre o compromisso da leitura com o passado e, mesmo em se tratando da leitura da civilização do oral, a denominada leitura de mundo(s) teve e tem a função social e comunitária de socializar informações por meio de rituais ou espécie de cerimonial coletivo. É

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nessa acepção que por ela respondia os anciãos: aqueles cujas memórias eram valorizadas e preservadas pelos seus papéis de mestres, conselheiros, chefes a quem todos ouviam e respeitavam.

Afirma essa autora que esquecer o compromisso da escrita com o passado é promover rupturas na história da própria humanidade e ignorar que a aprendizagem entre os humanos, por um lado, tem por ancoragem primeira a imitação e, por outro, a sabedoria. Tal ignorância não deixa de ter por referência o fato de se acreditar que os homens dotados vastos conhecimentos são na verdade sábios, pois, em verdade, a sabedoria não equivale à quantidade, mas ao uso qualitativo, inteligente, adequado e proficiente de conhecimentos que os homens detêm. Logo, confundir essas duas dimensões pode implicar em avaliações impróprias ou inadequadas sobre procedimentos ou comportamentos humanos, pois um analfabeto pode agir com muito mais sabedoria do que aquele que é altamente letrado. Observa também que a escrita alfabética não só se adaptou às tecnologias dos mais variados e diferentes tempos históricos e a elas continua se adaptando para divulgar informações que, processadas adequadamente, transmudam-se em conhecimentos: alicerces da sabedoria. Embora a escrita tenha respondido e talvez continue a responder pela escolha de alguns poucos que podem ascender ao espaço ocupado por seus saberes divinos que garantiram e garantem aos homens descobrirem os segredos da vida comercial pelo contrato dos lucros, há ainda uma grande maioria que não têm acesso a essa divisão lucrativa, mas desproporcional. Assim, ignora-se o fato de ela também ser capaz de desvendar segredos de outros bens sobre os quais o próprio mundo do mercado não tem total acesso e tampouco controle: aqueles sobre o domínio de novas ideias, novos hábitos, novos costumes e novos conhecimentos que podem ameaçar o futuro. Nesse sentido e desde a sua origem, a escrita tenha sido interpretada como uma técnica dada aos homens pelos deuses da sabedoria: a chave de qualquer poder. (cf. Cap. I).

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2.3 As Permanências nas Diversidades: Modelos de Práticas de Leitura