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CAPÍTULO I – A HISTÓRIA DA LEITURA PELA HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO

1.3 A APRENDIZAGEM ESCOLAR DA LEITURA E DA ESCRITA: O PAPEL SOCIAL

No campo educacional as informações que nos foram e são legadas por povos percussores da escrita alfabética, principalmente quanto a procedimentos didáticos para o seu ensino, são bastante tênues. Esse legado, no que se refere aos povos da Mesopotâmia, faz referência apenas ao modelo de educação doméstica por meio do qual saberes e crenças da sociedade daquela época eram ensinados pelos adultos a suas crianças e jovens. Entretanto, uma informação relevante é aquela que faz referência ao fato segundo o qual o processo de alfabetização proficiente ocorria ao longo de 12 anos.

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Informações mais sistematizadas sobre a criação de escolas de caráter oficial datam do tempo em que os assírios – povo que habitava a terra montanhosa ao Norte da Mesopotâmia, cujo solo era pouco fértil - invadem e ocupam a região da Babilônia, situada às margens do rio Eufrates. Nela constroem, no ano de 1240 a.C., as primeiras escolas públicas e, ao ensinar a língua escrita, pelo uso da nova tecnologia por eles inventada, os sinais materiais do alfabeto, os alunos aprendem a registrar não só a cultura mas também os valores atribuídos a esse outro novo bem material, por meio do qual passavam a ter acesso àqueles não materiais, herdados de seus antepassados. Esses bens traduziam-se em informações que tinham por referência saberes que eram controlados pela classe sacerdotal, cujos membros se fazem professores dessas escolas - razão pela qual o papel social de professor por muitos séculos foi interpretado como uma profissão qualificada pelo sacerdócio, inclusive ao longo da nossa Idade Moderna. Observa-se, ainda, que o controle desses saberes não deixa de ser, de certa forma, assegurado pelo fato de que muitos escribas não desenvolviam habilidades de leitura e muitos leitores não exerciam a escrita proficiente; contudo, os sacerdotes eram leitores-escritores proficientes, ao contrário de muitos reis.

Logo, nessa acepção, aqueles que aprendiam a escrever e a ler com significativo grau de proficiência e ascendiam aos mundos desses saberes, tornavam-se cada vez mais distantes daqueles que, embora fossem capazes de escrever, ou de ler, não alcançavam o grau de proficiência que lhes facultaria exercer a profissão de escriba ou de leitor propriamente dito; razão por que se tornam secretários ou responsáveis pela contabilidade dos templos, dos palácios ou das escolas. Além desses homens cujo grau de letramento não os impedia de exercer profissões de caráter administrativo – escrivão e/ou escriturário - é preciso considerar aqueles que sequer tinham acesso a essas escolas, visto não terem qualquer interesse para o exercício dessas “profissões letradas”, embora fossem filhos de escribas. Logo, a profissão de escriba ou de leitor era hereditária, no antigo Egito. (cf. Kristeva, 2007)

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Segundo Ferreiro9 (2005: p.11 e 12), não se pode ignorar que as sociedades inventoras da escrita não só dissociavam o ensino da aprendizagem entre si, mas também dessas duas práticas voltadas para os processos de composição e produção textual, além de segmenta-las em duas profissões. A escola, por sua vez, selecionava seus alunos pelo critério da hereditariedade, de modo que o exercício do papel social de escriba e de leitor

(...) estavam de fato tão separadas que os que controlavam o discurso que podia ser escrito não eram os mesmo que o escrevia, e muitas vezes os que praticavam a leitura. Os que escreviam não eram leitores autorizados e os leitores autorizados não eram escribas.

Nessa acepção, e em se tratando da formação do escriba, a função social dessas escolas construídas na Babilônia, à semelhança das escolas egípcias, respondiam pela formação do profissional que deveria dominar conhecimentos sobre as técnicas da transcrição da palavra oral, que a ele eram ditadas pelos sacerdotes, em palavra escrita. A esses conhecimentos referentes ao registro de textos ditados estavam inclusos aqueles implicados nos registros das leis, nas suas respectivas reproduções por meio de cópias, no controle dos arquivos desses documentos, que se faziam extensivos àqueles de dados numéricos referentes ao controle das mercadorias negociadas nos portos do Mediterrâneo e transportados por terra e pelos rios. Também era necessário controlar os impostos, razão pela qual o objetivo das nossas primeiras escolas estava voltado para: o ensinar a ler, a escrever e a contar. E, como poucas pessoas dominavam a arte da escrita, os escribas tinham posição e papel social relevante na sociedade da época, visto serem geralmente funcionários reais, comandados pelo governante para registrar tudo o que seu superior ordenasse,

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Ressalta-se que, embora este trabalho esteja pautado na concepção sócio interacionista de ensino, a qual vai ao encontro das ideias de Vygotsky. Utilizamos os estudos de Ferreiro para lapidar alguns aspectos históricos referentes à história da leitura do texto escrito, visto que a teoria que Vygotsky formulou sobre a pré-história da linguagem escrita, ficou apenas esboçada, já que este autor faleceu muito cedo. No entanto, são muito grandes os pontos de convergência entre seus achados e os de Emília Ferreiro.

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principalmente aquele cujos conhecimentos se limitavam ao domínio da “escrita cartorial e/ou contábil”.

Ressalta-se que, no Egito Antigo, os escribas eram mais valorizados do que seus predecessores ou aqueles de outras regiões da Mesopotâmia, por terem o domínio sobre a escrita demótica e dos hieróglifos e, por isso, ocupavam lugar de destaque na sociedade egípcia. Eram eles que escreviam sobre a vida dos faraós, registravam a cobrança de impostos e copiavam textos sagrados, utilizando o papiro ou as paredes internas das pirâmides para escrever esses diferentes e variados textos. Assim era o escriba - quando dotado de alto grau de profissionalização - uma importante figura pelas variadas posições ocupadas nas esferas das atividades administrativas civis, militar e religiosa do antigo Egito. E, como a maioria dos egípcios não sabia ler e tampouco escrever, quando uma pessoa iletrada precisava redigir ou ler um documento, via-se obrigada a pagar o serviço de um escriba.

A máquina administrativa egípcia, por conseguinte, era formada basicamente por escribas, que também se encarregavam de organizar e distribuir a produção; de controlar a ordem pública; de supervisionar todo e qualquer tipo de atividade, sempre obedientes à autoridade dos faraós ou à dos sacerdotes dos templos (cf. Aranha, 2006). A habilidade para escrever lhes garantia uma posição superior na sociedade e a possibilidade de progresso na carreira; mas para ele ascender a posições hierárquicas de prestígio, na sociedade da época, não era fácil; pois, embora a sua profissão permitisse ao escriba tais ascensões, ele ocuparia esses lugares apenas se as suas realizações fossem marcantes. O esforço para merecer a ascensão pelo exercício do papel de escriba está registrado em um texto que se refere a procedimentos sobre sua instrução profissional, usado durante o Império Novo, no qual se afirma ter ele a garantia de que, em sendo um cidadão, poderia salvar-se da labuta e proteger-se de todo tipo de trabalho pesado ou braçal. Assim, essa ascensão o poupava do trabalho com a enxada ou com a picareta, de carregar cestas ou fardos nas costas, de manipular o remo e, ainda, não mais precisaria se ocupar dos processos manuais voltados para a produção do papiro ou do pergaminho:

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um suporte material, usado apenas pelos estudantes da época para exercitar a escrita.

Reitera-se, conforme dados acima, que eram necessários 12 anos para que alguém estivesse em condições de ler e escrever os cerca de 700 hieróglifos, comumente usados no decorrer do Império Novo (c. 1550 a 1070 a.C.), cuja aprendizagem podia ser iniciada aos quatro anos de idade. Muitos dos exercícios escolares dessa época continuaram sendo aplicados ao longo da história, com correções dos professores e, geralmente, eles são cópias de textos clássicos egípcios. O fato de o papiro ser um material de custos muito altos levava os aprendizes a exercitarem a prática de seus registros escritos em pedaços de pedra calcária ou cerâmica, de superfície plana, madeira emplastrada, ou mesmo pergaminhos de que eles se ocupavam em confeccionar10. Os professores não eram modelos de paciência e, não raramente, recorriam à dor física para obter atenção de seus alunos. Mas o que alguns escribas aprenderam a compreender era o fato de a escrita ser a chave para toda a erudição daqueles tempos e, por ela eles se tornavam fiéis depositários da cultura leiga e religiosa, dessa forma acabaram dominando todas as atividades profissionais, ocupando cargos de agrônomos, engenheiros, contadores, sacerdotes e até mesmo de oficiais do exército, durante o Novo Império egípcio. Dentre os escritas que se fizeram sábios pelo exercício ou prática da produção de textos escritos, identificamos a voz de um deles, de nome Amenmosé (cf. Kristeva, 2007) para quem aqueles que se propõem aprender a arte da escrita11, deveriam adotar os seguintes procedimentos:

Escreve com tua mão, discute com os que são mais sábios do que tu (...). Só podemos ser fortes se nos exercitarmos todos os dias (...). Se tu te descuidares, nem que seja um só dia, serás castigado. Os jovens têm os ouvidos nas costas. Só prestam atenção a quem lhes bate. Deixa o teu coração escutar as minhas palavras. Tirarás proveito disso. Podem

10 Observa-se que, no atual mundo moderno, os suportes

– papel, lápis, caneta, tablet, notebook - são fabricados e vendidos aos escritores.

11 Observa-se que, mesmos antes da invenção dos estudos linguísticos científicos, aprendia-se

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ensinar-se os macacos a dançar. Domesticam cavalos. Consegue-se prender o milhafre no ninho. Pode-se fazer o falcão voar. Não te esqueças que se progride pela discussão. Não te esqueças do que está escrito. Esforça-te por ouvir as minhas palavras e achá-la-ás úteis. (Kristeva, 2007)

Excluído o castigo, Amenmosé se refere à mudança de comportamento daquele que visa a se tornar escriba e, para tanto, deixou-nos como legado os seguintes procedimentos, passos ou modos de proceder para alguém se tornar escritor ou compositor de textos escritos:

a) compreender que a escrita é produto de um trabalho bastante árduo a ser assumido por ele que busca aprender a escrever, pois só “se aprende a escrever, escrevendo” – razão pela qual orienta os futuros escribas a escreverem com suas próprias mãos, trata-se, portanto, e à semelhança da leitura, de um trabalho solitário, jamais realizado em grupo;

b) discutir o assunto ou tema do texto a ser escrito com aqueles que já se fizeram sábios na arte da escrita – ou seja, não escrever sobre temas que não foram discutidos por/com, pois para escrever é preciso saber sobre “o que se fala” e esse conhecimento ou domínio se refere ao conteúdo da escrita que precisa ser avaliado e socialmente compartilhado, como afirmam os cientistas contemporâneos. Para tanto,

b.1) desenvolver o hábito de prestar atenção ao que dizem os sábios, ou seja, “não ter os ouvidos nas costas”, mas aprender a ouvir para aprender a valorizar a palavra do outro que nos é dirigida, durante uma discussão, um diálogo; b.2) aquele que presta atenção às palavras do outro (de um homem sábio) e as aprende, poderá transformar o mundo pelo conhecimento aprendido, pois tornar-se capaz de ensinar “macacos a dançar, domesticar cavalos, prender um milhafre no ninho e fazer um falcão voar” . – Para progredir na aprendizagem da escrita é preciso progredir na aprendizagem, no reconhecimento e uso do poder da palavra social, mas dela saber fazer uso para expressar saberes, conhecimentos próprios;

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c) praticar a escrita diariamente, ou seja, escrever todos os dias e não de vez em quando – portanto a aprendizagem da escrita deve estar associada às práticas diárias do cotidiano do aluno;

d) observa para seus leitores a necessidade de prestar atenção naquilo que lê, não apenas “escutar” suas palavras, mas “ouvir” o que ele diz; logo, não basta ser escriba é preciso também ser leitor proficiente dos textos de um escriba: saber o que ele nos diz.

1.4. A FORMAÇÃO DO LEITOR E O SEU PAPEL SOCIAL: RESGATE DO