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Parte I. O EUSÉBIO DE CONSTANTINO

2. A História eclesiástica

2.7. A História eclesiástica e seu tempo

Sobre o que consta nos Livros VIII, IX e X de sua obra, o bispo Eusébio acompanhava de perto todas as mudanças que estavam acontecendo na igreja de seu tempo189, reconhecendo

em tudo aquilo uma aliança capaz de propiciar condições muito favoráveis ao trabalho de evangelização. A própria obra, por ser apologética, não deixou de ser carregada de um exacerbado teor evangelístico, explicitando o discurso costurado por Eusébio, o qual em sua narrativa reconhece que Deus foi quem desenhou a história.

Por acompanhar quase todos os fatores que demarcaram as transformações da religião cristã que, de movimento oficialmente perseguido se tornou aliado do Estado, Eusébio utilizará em seus escritos uma linguagem de alguém que celebra o triunfo, afinal, para ele, não foi a religião que se modificou, mas o império que se converteu. Esta convicção de que a origem da religião cristã é, de fato, divina, ficará evidente em toda a complementação da obra, composta pelos Livros VIII, IX e X, de tal maneira que na impressão de Eusébio “a vitória

omissão do discurso de Tadeo de Edesa, em I, 13. 20-21. Quanto aos resumos que faz, pelo que podemos comparar com os textos originais conservados, vemos que omite, amplia, parafraseia [...]. Com poucas exceções se pode assegurar que ele tinha o original à sua frente ou ao menos uma antologia com grandes extratos. Muito se tem discutido se Eusébio copiava do original pessoalmente suas citações ou se outros copiavam para ele. Creio, com Lawlor, que o mais apropriado é pensar que a maior parte das citações transcritas em Cesareia foi copiada por seus ajudantes e secretários, enquanto ele se dedicava aos trabalhos mais delicados. Isso explicaria não poucos dos problemas antes apontados. Por outro lado, o material recolhido em Jerusalém, também abundante, teve de transcrever sozinho, sem ajuda de ninguém, segundo dá a entender sua και αυτοί de VI, 20.1.”

188 cf. VELASCO-DELGADO, Argimiro. In: Eusebio de Cesarea. Historia eclesiástica..., p. 58 e 59.

189 Após o Edito de Tolerância que, conforme já vimos, foi promulgado pelo moribundo Galério e assinado por

Licínio e Constantino, em 311, proporcionando à metade oriental de Roma a liberdade religiosa com que os cristãos tanto sonhavam, foi assinado o tradicionalmente conhecido Edito de Milão, possivelmente promulgado entre fevereiro e março de 313, através do qual Constantino e Licínio concediam aos cristãos a igualdade de direitos em relação às demais tradições religiosas. Os cristãos, além da liberdade religiosa, passaram a ter direito de possuir qualquer tipo de bem material e de receber de volta muitas de suas antigas posses que tinham sido confiscadas durante as perseguições. Com a vitória de Constantino sobre Licínio, em 324, os privilégios concedidos pelo império à igreja cresceram sobremaneira: templos novos, conforme já mencionamos, foram construídos desde Jerusalém a Roma, outros já existentes como templos de cultos aos antigos deuses foram saqueados e convertidos em templos cristãos, isenção de impostos e não obrigatoriedade de prestação dos serviços públicos por parte dos clérigos, a livre disposição do patrimônio, a equiparação dos bispos com os senadores e a oficialização do domingo cristão, ainda em 321, como dia sagrado para o descanso e culto religioso.

final do cristianismo sobre os poderes políticos contrários é a prova tangível de sua origem divina e de sua legitimidade.”190

Segundo Hoornaert, Eusébio representa “a passagem definitiva entre a tradição oral na preservação da memória cristã e a tradição escrita, mais segura e definitiva.”191 Não que a

oralidade tenha deixado de existir no contexto da religiosidade cristã, haja vista ao que ocorrerá no medievo, mas enquanto escrita oficial da história Eusébio consolida através de sua obra aquilo que caracterizará o que se entenderá por história eclesiástica a partir de então. Além de ele ter vivido no momento em que a concepção de cânone do Novo Testamento – o texto sagrado da tradição cristã – se definia, a sua História eclesiástica instaurava um estilo específico na história da historiografia, pois foi a partir deste modelo que historiadores posteriores escreveriam a respeito da história da religião cristã sob uma perspectiva exclusivamente religiosa.

É sempre importante lembrar que a obra de Eusébio já teve um antecedente marcante no trabalho do historiador judeu Flávio Josefo. Este, ao escrever sua famosa Antiguidades judaicas, reagia às historiografias pagãs dos gregos e dos romanos; e não somente através desta, mas também de outra obra intitulada Contra Apião, Flávio Josefo tentara “responder autores que detratavam a história judaica em favor da tradição greco-romana. O resultado final é a composição de um ensaio de caráter historiográfico com a finalidade de destacar a primazia da história judaica sobre a história pagã.”192 Em termos teóricos da escrita da

história193, podemos entender que a metodologia adotada por Eusébio não se distancia da metodologia do historiador judeu. Contudo, em se tratando de uma literatura essencialmente cristã, os elementos característicos do texto eusebiano “são tão evidentes que ninguém os contesta: ele supera com maestria a postura historiográfica cristã anterior e começa a encarar seriamente as estruturas próprias da História e da ‘longa duração’ desta.”194 O seu estilo se

distingue do estilo historiográfico grego, no qual predominava o fatum, ou seja, a história do destino. No lugar de um paradigma preponderante, Eusébio opta por adotar uma historiografia cuja predominância será a da “Providência, ou seja, da Razão divina que governa o mundo.”195 Tétart entende que a historiografia cristã protagonizada por Eusébio “se

190 CURTI, C. In: Berardino (Org.), Ângelo Di. Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs..., p. 537. 191 HOORNAERT, Eduardo. A memória do povo cristão..., p. 25.

192 SILVA, Rogério Forastieri da. História da historiografia..., p. 31.

193 Para aprofundamento nas questões conceituais de Teoria da História e Metodologia da História, entre outros

conceitos importantes e fundamentais em torno da mesma temática, sugerimos as considerações de José D’Assunção Barros. cf. BARROS, José D’Assunção. Teoria da História – princípios e conceitos fundamentais. v.1. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

194 HOORNAERT, Eduardo. A memória do povo cristão..., p. 25 e 26. 195 HOORNAERT, Eduardo. A memória do povo cristão..., p. 26.

caracteriza efetivamente por uma ausência inegável de independência e de curiosidade intelectual”196, ou seja, distinta em muitos aspectos da historiografia de seu próprio tempo, ela

se confina ao serviço que presta à fé religiosa e à teologia. Esta, por sua vez, representada por intelectuais como Eusébio, instrumentaliza a história no intuito de mantê-la numa função auxiliar, sem autonomia, servindo para sustentar “uma dialética voltada para a veneração do divino, a celebração da Igreja, a conversão e a evangelização.”197

Na perspectiva da Ciência da Religião e, mais particularmente, da História da Religião, temos entendido que mesmo historiadores da igreja como Hoornaert, que pretendem romper com o modelo eusebiano, não deixam de ser historiadores teólogos, religiosos. Ele critica a tendência de Eusébio, mas acaba assumindo outra corrente teológica. Por estar ligado à igreja e às perspectivas da teologia da libertação, diz que

diante da impossibilidade de recuperar o passado cristão ‘como aconteceu realmente’ (Wie es

eigentlich gewesen ist, segundo a palavra célebre de Leopold von Ranke, pai do historicismo) tentaremos algo mais modesto: apresentar alguns temas que nos parecem corresponder às questões levantadas pela caminhada das comunidades hoje. Confessamos, pois que o nosso interesse gira em torno do presente vivido nas comunidades de base na América Latina e, por conseguinte, do novo modelo eclesial emergente. Existe um interesse social – não apenas individual – em recordar certos aspectos e temas ligados à Igreja antiga, pois estes temas sustentam a esperança hoje. Queremos ficar ligados à grande tradição de esperança que percorre toda a História da Igreja e ficar mais firmes na defesa da memória cristã diante do perigo sempre presente de manipulação desta memória.198

196 TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores..., p. 33. 197 TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores..., p. 33.

198 HOORNAERT, Eduardo. A memória do povo cristão..., p. 33 e 34. Hoornaert escreve essas linhas na década

de 1980 e, desde então, a historiografia cristã não deixou de permanecer muito distante de um rompimento com tendências teológicas, sejam quais forem. Na mesma época, em 1984, era lançada no Brasil a série Nova História

da Igreja, originalmente publicada desde a década de 1960, em francês. Há que se salientar que estamos nos referindo às obras escritas no contexto católico. Já no contexto protestante, as obras de Wiliston Walker e Martin Dreher, as quais já citamos, parecem se abrir mais para uma nova perspectiva historiográfica, rompendo com a de matriz eusebiana. Contudo, pelo que temos observado, ainda estamos bem distantes de encontrarmos uma obra de história do cristianismo produzida por um historiador cristão – católico ou protestante – que consiga se desprender de suas tendências teológicas, caso queiram escrever uma história da religião cristã que respeite novos parâmetros historiográficos. Na introdução geral à série Nova História da Igreja, Rogério Aubert, um dos diretores da coleção, inicia sua proposta com as seguintes palavras: “À primeira vista, poderia parecer desconcertante introduzirmos uma História da Igreja por considerações de natureza teológica, quando de um século pra cá o progresso dos estudos nesta matéria levou precisamente a distinguir sempre melhor os planos e os métodos. A Teologia, que é reflexão sobre elementos revelados, supõe a fé, quer dizer, uma atitude de espírito, razoável sem dúvida, mas de natureza não científica, aceitando uma intervenção sobrenatural e uma decisão pessoal diante de Deus. A história da Igreja, pelo contrário, como aliás toda obra histórica, procura reconstituir por métodos rigorosamente científicos, tão objetivos quanto possível, o passado da sociedade eclesiástica, sua evolução através dos séculos, suas características particulares que a marcaram em cada época, assim como os descobrimos através dos traços que este passado nos legou pelos documentos escritos, monumentos arqueológicos e outras fontes, passadas no crivo da crítica histórica elaborada por gerações de eruditos. O teólogo nos apresenta o ponto de vista de Deus sobre a natureza profunda da Igreja e sobre o papel dela no mistério da salvação da humanidade. O historiador da Igreja nos descreve as vicissitudes concretas desta Igreja, vicissitudes integradas no quadro mais geral dos acontecimentos profanos, sem nenhuma intenção apologética ou edificante, movido pela única preocupação de mostrar e explicar, segundo a fórmula de Ranke,

É verdade que para conhecermos o que aconteceu na história da religião cristã nos primeiros trezentos anos de sua trajetória, precisamos recorrer à obra de Eusébio. Esta é a razão da sua indispensabilidade para a investigação de qualquer pesquisador do cristianismo primitivo. Contudo, não significa que o seu intento historiográfico esteja esvaziado de uma tese específica. Ao contrário, Eusébio escreve uma obra cujo elemento central e divisor consiste na separação de um primeiro momento no qual os cristãos sofrem impiedosa repressão por parte do império romano de um segundo momento no qual o mesmo império resolve favorecê-los. Ao percebermos essa organização de ideias na História eclesiástica, conseguimos identificar suas motivações.

Eusébio e seus sucessores no empreendimento historiográfico cristão fundaram “uma historiografia que a partir de então estabelecia um telos para a humanidade, em direção à salvação. Observa-se desta maneira como as ideias de ‘progresso’, e ‘processo histórico’ estavam contidas nos articuladores da historiografia cristã.”199 De fato, se a historiografia

eusebiana quer promover a salvação segundo a soteriologia cristã, então o telos200 promovido por essa forma de escrever a história demonstra o quanto teológica e rigorosamente religiosa ela pretende ser.

Para a época, o estilo historiográfico de Eusébio é inovador não somente por ser a primeira obra de história da religião cristã que já existiu. Mais do que por essa razão, a obra de Eusébio explicita o entusiasmo de um escritor que vive o momento sobre o qual escreve,

Nova história da Igreja..., p. 5. Não concordamos com a hipótese de que o método historiográfico proposto por Ranke seja o adequado, mesmo porque nosso referencial é aquele baseado em uma ruptura radical com o historicismo e o positivismo rankeanos. Por essa razão, embora reconheçamos que a série Nova História da

Igreja represente um passo à frente no rompimento com a historiografia cristã em perspectiva eusebiana, não discordamos das observações que Hoornaert fez ao afirmar que Jean Daniélou, autor de uma parte do primeiro volume da série, bem como Hubert Jedin, diretor de um Manual de História da Igreja, em oito tomos, elaborado na Alemanha, permanecem “na continuidade do que se poderia chamar de ‘tradição eusebiana’, num sentido muito amplo, pois ambos deixam de questionar um modelo de Igreja que se impôs no século IV e que estava em descontinuidade com o modelo da Igreja primitiva.” cf. HOORNAERT, Eduardo. A memória do povo cristão..., p. 31.

199 SILVA, Rogério Forastieri da. História da historiografia..., p. 35. “Do ponto de vista da história da história

os séculos decisivos de implantação do cristianismo operaram o que já foi chamado de ‘revolução na história da

história’. Os conteúdos deixaram de ser gregos e romanos para se subordinarem aos textos das Sagradas Escrituras, a razão e o espírito indagativo característico da cultura clássica cede lugar para a fé. Esta transformação iria perdurar ao longo dos próximos séculos. Toda a história clássica conhecida passava a se tornar periferia da historiografia cristã. As civilizações orientais egípcia, mesopotâmica eram referidas enquanto modos de ilustração do triunfo das Sagradas Escrituras. A história romana foi suficientemente caricaturada como a grande perseguidora dos mártires do cristianismo. Por sua vez, figuras de caráter duvidoso como Constantino foram erigidos à categoria de santos.” cf. LÖWITH, Karl. Meaning in History. Chicago: The University of Chicago Press, 1949; SHOTWELL, James Thomson. Historia de la historia en el mundo antiguo. México: Fondo de Cultura Económica, 1939.

200 Telos, termo grego que significa fim, do qual se origina a palavra teleologia, associada à ideia de finalidade.

ou seja, ele não poupa energias para deixar bem clara a sua impressão acerca do imperador Constantino e todo aquele contexto em que a religião cristã, finalmente, se tornava livre. Dez perseguições passadas foram como as dez pragas do Egito narradas no livro bíblico do Êxodo e Constantino foi um novo Moisés levantado pela divindade para libertar seu povo da opressão maligna. Esta admiração, aparentemente, não demonstra um Eusébio ingênuo e, ao mesmo tempo, irradiante com a nova liberdade dos cristãos para praticarem sua religião. O que o texto mais evidencia é a perspicácia de um escritor que não era apenas um simples leigo, mas um bispo, o qual representava “um setor das lideranças cristãs da época, o setor que ficou entusiasmado com as novas relações políticas criadas sob Constantino e que as projeta no nível do plano divino, faz uma teologia imperial ou uma teologia da História totalmente nova para a época.”201