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Das influências de Eusébio ao estilo por ele inaugurado

Parte I. O EUSÉBIO DE CONSTANTINO

2. A História eclesiástica

2.2. Das influências de Eusébio ao estilo por ele inaugurado

Embora a primeira obra de história da religião cristã de que se tem notícia teve Eusébio como seu autor, antes deste viveram escritores cristãos que conquanto não tenham sido historiadores no sentido estrito do termo, não deixaram de contribuir para a formação inicial da escrita histórica da igreja132. Podem ser mencionados Sextus Julius Africanus133, que

130 Referimos aqui às três principais divisões sofridas pela Igreja Católica Apostólica Romana no século XI

(Cisma do Oriente), no século XIV (Cisma do Ocidente) e no século XVI (Reformas Protestantes). Sobre a permanência da cristandade institucionalizada no século IV até a atualidade, cf. VEYNE, Paul. Quando nosso

mundo se tornou cristão – 312-394. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

131 BARDY, Gustave. In: Eusèbe de Césarée. Histoire Ecclésiastique..., p. 94.

132 É nesse sentido que Momigliano afirma com segurança que “as bases da historiografia cristã se haviam

lançado muito tempo antes da batalha da Ponte Mílvio. [...] Em início do século IV a cronologia cristã já havia superado sua fase criativa. O que fez Eusébio foi corrigir e melhorar a obra de seus predecessores, dentre os quais se fundamentou principalmente em Julius Africanus. [...] Schwartz, para salvar a reputação de cronógrafo competente que tinha Eusébio, conjecturou que as duas representações que há do perdido original da Crônica de Eusébio – a adaptação latina de São Jerônimo e a anônima tradução armênia – se baseavam em um texto com interpolações que se passava por ser todo de Eusébio. Esta conjetura é quase desnecessária; tampouco estamos seguros de que a versão armênia se pareça mais com o original que a versão latina de São Jerônimo. Ambas as versões refletem as inevitáveis imprecisões da mente de Eusébio, para quem a cronologia era algo entre uma ciência exata e um instrumento de propaganda.” MOMIGLIANO, Arnaldo. Ensayos de historiografía antigua y

moderna..., p. 97 a 100.

133 Possivelmente, morto entre 240 e 245, Sextus Julius Africanus que, segundo Justo L. González pode ter sido

“de origem palestinense e não africana, converteu-se ao cristianismo depois de um longo período de serviço militar e grandes viagens. Manteve correspondência com Orígenes sobre a autoridade dos textos deuterocanônicos do Antigo Testamento e em particular das passagens de Daniel que não se encontram no texto hebraico. Enquanto Julius duvidava de tal autoridade, Orígenes a confirmava. Escreveu também uma vasta enciclopédia sob o título de Tapices. Mas sua obra mais influente foi sua Crônica, que não se conserva em sua totalidade. Nela Julius estabelecia uma cronologia de toda a história humana até o ano 221, fundamentando-se em narrações bíblicas, e com o propósito de mostrar que as doutrinas bíblicas são anteriores às pagãs. Segundo ele, o mundo deve durar sete mil anos; Jesus nasceu em 5500 da criação, e voltará no ano 6000. Mesmo que essa obra se tenha perdido, Eusébio de Cesareia e outros autores posteriores a usaram, e por consequente sua visão da história teve grande influência na tradição cristã. cf. GONZÁLEZ, Justo L. (org.). Dicionário ilustrado dos

escreveu a famosa Chronographia, tratando da história do mundo desde a criação até o ano 221 d.C., e Orígenes, um exegeta de extrema competência, filósofo e hebraísta, notável por sua proposta de interpretação alegórica da Bíblia e por sua refutação à obra Discurso Verdadeiro Contra os Cristãos, escrita por volta de 180 d.C. pelo filósofo Celso.134

Mas, realmente, foi a partir de Eusébio que a historiografia tomou novos rumos. Além dos Cânones Cronológicos e História Universal dos Helenos e dos Bárbaros, a principal produção de Eusébio foi a sua História eclesiástica. Essa obra marca não somente uma transição na história da historiografia, mas do próprio cristianismo.

Barnes comenta sobre um estilo de historiografia política que antecede a obra de Eusébio, demonstrando, inclusive, semelhanças entre ambas as formas de escrever a história, sem deixar de salientar que havia uma preocupação peculiar na História eclesiástica. Segundo ele, “outros historiadores recordam guerras, vitórias, conquistas, as proezas dos generais, além dos bravos feitos dos soldados, todos marcados por sangue derramado no intuito de defender crianças, pátrias e posses materiais.”135 Neste sentido, há uma clara semelhança entre a obra

de Eusébio e a historiografia política que lhe antecede. Entretanto, como salienta o próprio Barnes, a História eclesiástica é bem “mais que um novo tipo de história nacional. Nela há também história literária e filosófica, ainda que narrando os textos e ensinos dos intelectuais cristãos,”136 cuja preocupação maior era a de fazer uma defesa direta àquela ortodoxia ainda

em processo de desenvolvimento.

Quanto ao que temos denominado história eclesiástica – ou história da igreja – parece haver grande tensão. Eusébio não só escreveu uma obra com este título, mas inaugurou uma vertente historiográfica específica cuja pretensão era a de exatamente relatar acerca da história da religião cristã com um olhar a partir de dentro. Embora a tese de Karl August von Hase137 sustente que esta vertente historiográfica tenha sido inaugurada com a obra de Matias Flácio

intérpretes da fé– vinte séculos de pensamento cristão. Santo André, SP: Academia Cristã, 2005, p. 385. Para mais informações sobre Sextus Julius Africanus sugerimos: GELZER, Heinrich. Sextus Julius Africanus und die

Byzantinische Chronographie. Leipzig: J. C. Hinrichs’sche Buchhandlung, 1898; WALLRAFF, M., MECELLA, L. (hg), Die Kestoi des Julius Africanus und ihre Überlieferung. Berlin und New York, de Gruyter, 2009.

134 O livro de Orígenes intitulado Contra Celso, de teor apologético, foi escrito para responder “o filósofo

platônico-eclético Celso, o qual, entre os anos 170 e 185, publicara sua obra (alguns dizem um panfleto) com o título O discurso verdadeiro contra os cristãos. A resposta de Orígenes pode ser datada em torno de 248. O escrito de Celso foi perdido, mas foi possível reconstruí-lo quase inteiramente, porque Orígenes, na sua refutação, retoma-lhe o texto quase página por página.” FRANGIOTTI, Roque. In: ORÍGENES. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004, p. 19 e 20.

135 BARNES, Timothy D. Constantine and Eusebius…, p. 128. 136 BARNES, Timothy D. Constantine and Eusebius…, p. 128.

137 cf. HASE, Karl August von. Kirchengeschite auf der Grundlage akademischer Vorlesungen – v1. Leipzig,

intitulada Centúrias de Magdeburgo138, tem se tornado cada vez mais unânime a opinião de que Eusébio foi quem inaugurou o estudo de história eclesiástica. A tensão a que nos referimos compõe-se mais de aspectos conceituais, uma vez que se torna identificada a necessidade de diferenciação entre história eclesiástica ou história da igreja de história do cristianismo ou história da religião cristã. Há diferenças nessas formas de denominar o objeto? Parece-nos que sim. Quando pensamos em história eclesiástica, sabemos que se trata de uma preocupação tipicamente eusebiana, com um olhar a partir de dentro, seguindo o modelo clássico inaugurado pelo bispo de Cesareia há exatos mil e setecentos anos. Porém, ao pensarmos em história do cristianismo, entendemos que a complexidade se torna mais evidente, pois se trata de um olhar de fora, de uma história da religião cristã sem, necessariamente, preocupações religiosas, teológicas e apologéticas. Logo, não se trata de uma história a partir do paradigma eusebiano. Velasco-Delgado comenta sobre as diferenças139 entre um sentido clássico de história da igreja – aquele deixado por Eusébio, ou

seja, uma história religiosa da igreja cristã – e um sentido moderno de história da igreja, que aqui preferimos chamar de história do cristianismo, ou seja, uma leitura que segue importantes avanços historiográficos, sobretudo, do século XX, sem pretensões religiosas. Assim, para entendermos o primeiro sentido, não podemos fugir dos principais problemas teóricos apontados pelos comentaristas críticos da obra de Eusébio.

Para Velasco-Delgado, “Eusébio não escreve uma ‘História da Igreja’, e sim uma ‘História Eclesiástica’. Do passado eclesiástico quer dar a conhecer tudo o que – pessoas, obras, acontecimentos – merece ser preservado para a posteridade.”140 Se não à posteridade,

ao menos ao seu próprio tempo. Contudo, de uma maneira suficiente para que através de sua

138 Na Alemanha do século XVI nascia um novo modo de escrever a História, inicialmente com os interesses por

parte de Martinho Lutero e Philipp Melanchton de instrumentalizá-la, no intuito de contestar o primado papal e os dogmas fundamentais da Igreja Católica. Centúrias de Magdeburgo foi a primeira obra de história eclesiástica em uma perspectiva protestante, e que também pode ser considerada a primeira grande produção erudita e de crítica histórica moderna, além de ser referência clássica para a História das Religiões. “Trata-se de uma reinterpretação luterana da história eclesiástica em treze volumes, compostos na Basiléia de 1559 a 1574, pelo teólogo austríaco Matias Flácio Ilírico e alguns colaboradores. [...] Cada volume cobre um século, chegando o último até o ano 1308.” (SCHÜLER, Arnaldo. Dicionário enciclopédico de teologia. São Leopoldo/RS: ULBRA, 2002, p. 109). Nessa obra, seus autores – os centuriadores – se propuseram a demonstrar o afastamento lento e progressivo da cristandade daquela simplicidade original representada nas páginas do Novo Testamento. Em seguida, contando com o já vasto acervo da Biblioteca do Vaticano, o historiador e bibliotecário católico César Barônio (1538 – 1607) produziu “uma obra gigantesca (12 volumes) intitulada Annales Ecclesiastici (1588 – 1607), chegando até o ano 1198. Com essa obra, objetivou refutar as Centúrias de Magdeburgo” (SCHÜLER, Arnaldo. Dicionário enciclopédico de teologia..., p. 79). Pode-se afirmar que graças a essas discussões presentes no contexto de estudos em História na Alemanha diretamente em função da Reforma, foi que a concepção de “história científica” ganhou espaço naquele país no final do século XVIII e começo do século XIX, desenvolvendo-se nesse cenário a chamada Escola Histórica Alemã.

139 cf. VELASCO-DELGADO, Argimiro. In: Eusebio de Cesarea. Historia eclesiástica..., p. 36.

140 VELASCO-DELGADO, Argimiro. In: Eusebio de Cesarea. Historia eclesiástica..., p. 38. O próprio Eusébio

narrativa, “verdades históricas factuais”, “tradições” e até uma nova maneira de conceber a igreja cristã viessem a permanecer posteriormente. Somente o que se demonstrava interessante aos clérigos e leigos da cristandade futura é o que Eusébio registrara, pois seu intento nos parece rigorosamente religioso. História da igreja para ele não é história do cristianismo enquanto uma entre tantas religiões existentes, mas trata-se de uma história eclesiástica, ou seja, história da vida da igreja cristã enquanto religião verdadeira, portanto, a religião e não uma entre tantas religiões.141 Conforme nos alerta Martin N. Dreher, ao se escrever história da igreja é preciso definir a perspectiva: deve-se optar por uma história religiosa da igreja ou por uma história da religião cristã. Eusébio escolheu a primeira alternativa metodológica.

Seu estilo enquanto historiador foi impulsionado, portanto, por seus intentos enquanto bispo da igreja. Indubitavelmente, a História eclesiástica é a obra de maior importância entre todos os escritos de Eusébio. Consultá-la é indispensável diante da necessidade de se obter informações e de se compreender a respeito de quase tudo o que ocorreu na trajetória da religião cristã até o triunfo político definitivo de Constantino, em 324.