• Nenhum resultado encontrado

Parte II. O CONSTANTINO DE EUSÉBIO

3. Constantino – traços biográficos

3.3. A narrativa da conversão

Constantino teria visto, ao início da tarde do dia 28 de outubro de 312244, uma cruz luminosa no céu, acima do sol, com a seguinte inscrição: In hoc signo vinces (Por este sinal vencerás). Após testemunharem aquele fenômeno, Constantino e seus soldados caíram atônitos. Porém, ao recorrermos “às nossas fontes históricas, devemos estar preparados para dois fatores. O primeiro é que no mundo antigo é comum dizer que um ato ou um pensamento que se atribui à inspiração divina apareceu em um sonho.”245 Neste sentido, tanto Eusébio

para a decadência definitiva do Império. Considerando a religiosidade daquele momento, há que se considerar que a igreja do século IV em diante é uma nova igreja, uma invenção que se impõe e permanece. Veyne compara a organização natural do cristianismo com, por exemplo, a maneira de se organizar das religiões e religiosidades não cristãs daquele período. Mais que um movimento com características estritamente religiosas, o cristianismo ganha elementos característicos de um partido ao qual aos poucos a sociedade vai se filiando, especialmente, os políticos. Constantino é o primeiro. “Eis um dos grandes problemas da história do cristianismo. Pode-se supor que, nascido como seita judia, o cristianismo conservou ao máximo o princípio de autoridade sobre os fiéis que o da maior parte das seitas: um grupo fortemente estruturado tende a estreitar suas fileiras e a reforçar a identidade de seus membros. [...] Não se pode ser cristão sem se ajuntar a essa assembléia. Está aí outro grande problema: a exclusividade nacional do povo eleito a ser substituída pela exclusividade de um ‘partido’ internacional, o de Cristo, graças a Constantino começará a [...] se estabelecer como ‘partido único’. [...] O cristianismo praticava todas as virtudes conhecidas entre os pagãos, de tal modo que, depois da conversão de Constantino é inútil perguntar se a atroz legislação desse imperador contra os abusos sexuais era ou não de inspiração cristã: era uma legislação virtuosa e a virtude era indistintamente pagã e cristã. A moralidade pública estava inscrita na legislação desde Augusto, Domiciano ou os Severos [...] A fragilidade do cristianismo era, na verdade, sua própria superioridade. [...] Sem a opção despótica de Constantino, o cristianismo jamais seria a religião do dia a dia de toda uma população; e o cristianismo só atingiu esse ponto à custa de uma degradação, daquilo que os huguenotes viriam a chamar de paganismo papista e os historiadores atuais chamam de cristianismo popular ou politeísmo cristão (devido ao culto aos santos) e os teólogos de ‘fé implícita’ da gente inculta. [...] Em suma, o cristianismo foi uma inovação, uma invenção, uma criação, todas as coisas de que a história é feita, ainda que alguns historiadores não possam admiti-lo, sem dúvida por uma falsa concepção do determinismo histórico e do papel das condições anteriores.” cf. VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão..., p. 67 a 79.

244 É muito importante salientar que, segundo Brandt, os dois autores cristãos com os quais temos trabalhado

“afirmam que em um momento difícil de precisar (segundo Eusébio), ou bem na noite anterior à batalha da Ponte Mílvio (segundo Lactâncio), a Constantino foi concedido experimentar uma visão cristã que o levara a empreender com suas tropas, sob a proteção desse deus [o deus dos cristãos], os enfrentamentos militares contra Maxêncio. Portanto, a ‘virada constantiniana’, o ‘salto qualitativo’, tivera lugar antes de 29 de outubro de 312.” cf. BRANDT, Hartwin. Constantino..., p. 47. grifo nosso.

245 KEE, Alistair. Constantino contra Cristo..., p. 29. De acordo com E. R. Dodds, entre todos os sonhos que

fizeram história e ficaram conhecidos como determinantes para alguma transformação social, política ou de qualquer outra natureza, “o mais decisivo foi aquele em que Constantino viu o mágico monograma khi rô, enquanto ouvia as palavras In hoc signo vinces, às vésperas da batalha da Ponte Mílvio. Não posso aqui entrar na discussão em torno do que provocara este sonho, mas não temos porquê adotar a versão racionalista dos historiadores do século XIX, que somente viam nele uma estratégia de um político, que deste modo pretendia impressionar a multidão. Há outras provas de que Constantino compartilhava das superstições de seus súditos. O que ocorria era que, a semelhança de Cipriano, era um homem perfeitamente capaz de combinar crenças supersticiosas com uma visão clara das exigências administrativas. Seu sonho, desde então, possuía uma inevitável utilidade prática, mas isso não prova que fosse uma fraude. Os sonhos tem uma intencionalidade, como sabemos perfeitamente. Mas, a partir de um ponto de vista psicológico, os sonhos cristãos mais interessantes da época que estudamos são atribuídos à Santa Perpétua, uma mulher casada, de vinte e dois anos de idade, que foi martirizada em Cartago entre os anos 202 e 203.” cf. DODDS, E. R. Paganos y cristianos en

uma época de angustia – algunos aspectos de la experiencia desde Marco Aurelio a Constantino. Madrid: Ediciones Cristandad, 1975, p. 71 a 73. Os sonhos, sobretudo no contexto dos martírios, ganharão amplitude ainda maior no período medieval, mas na época de Eusébio já tinha certa importância e, até mesmo, antes dele. É o caso de mártires como Perpétua que, enquanto presa esperava a sua execução, tivera sonhos e visões. Semelhantemente, conforme relata Daniélou, foi Policarpo “agraciado por uma visão antes do martírio. Felicidade responde a seu guarda que se admira de vê-la gemer por ocasião do parto: ‘Nesta hora, sou eu quem

como seu contemporâneo Lactâncio, intencionalmente apresentaram o imperador Constantino como um novo cristão, a partir daquela experiência que este tivera ao lado de seu exército. O segundo fator seria este, de tal modo que, na noite seguinte, o imperador em sonho teria recebido uma mensagem do próprio Cristo, ordenando que aquele sinal que lhe aparecera em visão, deveria ser desenhado nas roupas e escudos de seus soldados246. Uma confirmação acerca da mensagem que apareceu sobre a cruz também foi feita naquele sonho. Constantino, como obviamente relatam os historiadores cristãos, passou a alimentar a certeza de que por ter vivenciado tal experiência, tornar-se-ia vencedor na luta por Roma contra o seu adversário Maxêncio.

Aqueles que são favoráveis à perspectiva da conversão do imperador como é o caso de Paul Keresztes247, tendem não somente a concordar com o estilo historiográfico de Eusébio,

como a legitimar que a visão da cruz aconteceu, realmente. Para os que não aceitam a hipótese de conversão de Constantino, Jacob Burckhardt é um deles, além da visão não ter nenhum significado histórico, o correto é afirmar que Eusébio a inventou248. Como nossa preocupação não tem relação com a historicidade ou não dos fatos, importa-nos extrair os resultados religiosos e políticos do discurso panegirista de Eusébio. Este, mais que ter por meio da escrita inventado um relato a respeito da conversão do imperador, inventou uma tradição religiosa que permanece forte e intocável pela ortodoxia cristã até os nossos dias.

Uma vez legitimada a visão da cruz, surge o que até hoje é reconhecido como símbolo da cristandade. O lábaro de Constantino corresponde ao que ele teria visto no céu. São as

sofre; então, um outro estará dentro de mim que sofrerá por mim, porque também eu por ele sofrerei’. Assim também Blandina ‘se encheu de uma força capaz de empenhar e esgotar os verdugos’ (H.E. V, 1.18) Clemente de Alexandria confere ao gnóstico, que chegou à união ordinária com Deus, o nome de mártir.” cf. DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja..., p. 140.

246 Segundo Veyne, “Constantino decidia as coisas com lucidez. Não nos deixemos enganar pelos prodígios que,

na sua época, eram comuns. É verdade, em 310, Constantino ‘viu’ Apolo anunciar-lhe um longo reinado. É verdade, em 312 ele recebeu em um sonho a revelação do ‘sinal’ cristão que lhe proporcionaria a vitória. É verdade, essa vitória foi milagrosa. Mas, nessa época, era normal para qualquer pessoa, entre os cristãos e entre os pagãos, receber a ordem de um deus em um sonho que era então uma verdadeira visão. Também não era raro que uma vitória fosse atribuída à intervenção de uma divindade. Reduzindo a seu conteúdo latente, o sonho de 312 não determinou a conversão de Constantino, mas prova, pelo contrário, que ele próprio acabara de decidir se converter ou, se já tivesse convertido havia alguns meses, a ostentar publicamente os sinais dessa conversão. [...] Para um homem como ele, qual o sentido de uma conversão se não for para fazer grandes coisas?” cf. VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão..., p. 96 e 97.

247 KERESZTES, P. Constantine – a great christian monarch and apostle. Gieben, J.C. Amsterdam, 1981. 248 BURCKHARDT, Jacob. The age of Constantine the Great. Routledge & Kegan Paul, 1949. Conforme

pergunta Veyne, “que homem foi então Constantino? Um militar e um político brutal e eficiente que só se torna cristão por uma questão de cálculo? Desde o grande Burckhardt, de 1850 a 1930, mais ou menos, frequentemente se tem afirmado isso, por espírito de casta ou por uma questão recusa à hagiografia. Mas se trata de uma falsa visão quanto ao que lhe poderia trazer politicamente sua conversão. Esse cérebro político não buscava aprovação e apoio de uma minoria cristã desprovida de influência, sem importância política e detestada pela maioria. Ele não podia ignorar que adorar uma outra divindade em relação à maioria de seus súditos e à classe dirigente e governante não seria a melhor maneira de conquistar-lhes os corações. cf. VEYNE, Paul.

letras gregas Χ (khi) e Ρ (rô), as duas primeiras do nome Cristo (ΧΡΙΣΤΟΣ). Conhecido pelo formato , o lábaro de Constantino também legitima a filiação religiosa que o imperador passava a ter desde que resolvera aderir ao Deus dos cristãos. Uma vez Constantino tendo vencido Maxêncio em 312 na Ponte Mílvio, aquele “lábaro não somente foi o símbolo de sua aliança com Deus, mas também da vitória”249 que este lhe concedera.

Já comentamos sobre o quanto era importante que o imperador tivesse uma filiação divina. Como antes ele já teria tido uma experiência no templo de Apolo, legitimando sua filiação do deus Sol Invictus quando rompera com a religião de Hércules, a visão da cruz não passaria de uma adaptação daquela experiência anterior. Trata-se de “uma visão que o imperador tivera na Gália, no interior de um templo dedicado a Apolo, no verão de 310.”250

Esta informação consta nos fragmentos dos Panegíricos Latinos, em favor de Constantino. Rápida observação nestes documentos permite-nos pensar em uma trajetória religiosa do imperador, que se dividiu basicamente em três momentos: religião de Hércules-Júpiter (306/307), religião de Apolo-Sol Invictus (310) e aliança com o Deus dos cristãos (312). As narrativas de Eusébio sobre as experiências que Constantino supostamente vivenciou, não são suficientes para legitimar ocorrências históricas, mas demonstram a sua tendência panegírica, seja enquanto bispo ou enquanto historiador, funções que, conforme temos destacado desde o início, parecem estar a serviço de uma articulação política que ele pretende estabelecer com o líder máximo do império. Ainda não iremos nos preocupar com a omissão de Eusébio a respeito da visão do lábaro – também conhecido como crisma – em sua História eclesiástica. Há que se lembrar, inclusive, que é exatamente esta omissão uma das razões pelas quais se levanta dúvida acerca da autenticidade da autoria eusebiana de A vida de Constantino. O que, porém, aparecerá no momento em que trataremos de comentar os Livros VIII, IX e X da História eclesiástica, especialmente na narração sobre a conversão de Constantino, na qual o historiador chega a elaborar uma analogia do imperador com a personagem bíblica Moisés, fazendo, inclusive, apropriações de passagens específicas da Bíblia Hebraica, que precisariam ser avaliadas do ponto de vista hermenêutico.

O lábaro de Constantino ( ) irá aparecer pela primeira vez em uma moeda do império romano somente por volta de 327, ou seja, dezesseis anos após a visão do imperador, segundo as narrações de Lactâncio e Eusébio. Aqui, parece-nos apropriado citar o que se diz a respeito em A vida de Constantino:

249 KEE, Alistair. Constantino contra Cristo..., p. 31.

O símbolo foi confeccionado da seguinte forma: uma larga haste de lança dourada sustentava uma vara transversal, formando uma cruz. Sujeita na borda superior do conjunto, havia uma coroa tecida com pedras preciosas e ouro, na qual se havia colocado o símbolo do nome do Redentor: duas letras, as iniciais do nome de Cristo, a rô (P) atravessada no centro pela khi (X). Essas letras eram as que o imperador levaria mais tarde em seu capacete. Da vara transversal, fixada pela haste da lança, pendurava também um pano de linho, rico tecido que [...] lhe conferia um aspecto maravilhoso [...]. E a haste vertical [...] levava sob o sinal da cruz, no extremo superior do tecido descrito, o retrato dourado do imperador amado por Deus, assim como os seus filhos.251

Segundo as fontes que nos servem de informações, foi após essa experiência que as batalhas se sucederam. No Ocidente, Constantino derrotou Maxêncio e tomou posse de Roma. Conforme o texto de Eusébio que iremos comentar no próximo capítulo, o próprio povo de Roma, em sua maioria, recebera o imperador e seus soldados com brados de júbilo. O triunfo alcançado era apenas uma confirmação de que a promessa feita pela divindade na visão que ele tivera um dia antes estava apenas começando. A estátua de Constantino e o arco construído ao lado do Coliseu a pedido do Senado e do próprio povo romano eram apenas alguns sinais do reconhecimento público daquela conquista252. A decadência da Tetrarquia aos poucos se consolidava, pois com a derrota de Maxêncio, havia apenas três governantes: Constantino, Licínio e Maximino Daia.