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Eusébio, de bispo escritor a panegirista do rei

Parte I. O EUSÉBIO DE CONSTANTINO

1. Eusébio de Cesareia – de provável escravo a primeiro historiador cristão

1.4. Eusébio, de bispo escritor a panegirista do rei

Por volta de 313 – ainda trataremos à frente acerca desta data – época decisiva na história do cristianismo devido à promulgação de mais um edito imperial diretamente favorável aos cristãos, Eusébio foi elevado à condição de bispo de Cesareia. Mas, o que

66 FRANGIOTTI, Roque. In: Eusébio, Bispo de Cesareia. História eclesiástica..., p. 17. Em sua obra, Hiérocles,

governador da Bitínia e prefeito no Egito no período da perseguição aos cristãos, teria desenvolvido um estudo comparativo entre Apolônio de Tyane (ou Tiana) e Jesus Cristo. Segundo Frangiotti: “a obra Contra Hiérocles, redigida por volta de 312, é refutação que toma o nome do imperador da Bitínia, daquele tempo. Nela se rebatem as acusações deste governador, que contrapunha os milagres de Jesus e os prodígios do pitagórico Apolônio de Tiana. Trata-se, portanto, de refutação vigorosa e irônica do panfleto de Hiérocles que exaltava Apolônio de Tiana acima de Jesus.”

67 BARDY, Gustave. In: Eusèbe de Césarée. Histoire Ecclésiastique..., p. 24. 68 BARDY, Gustave. In: Eusèbe de Césarée. Histoire Ecclésiastique..., p. 24.

69 Segundo Jacques Le Goff foi Pedro Abelardo que “inventou a palavra teologia no século XII, e o Padre Chenu

mostrou como a teologia se torna uma ciência no século XIII.” LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da

Europa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 217. Para aprofundamento na discussão sobre a concepção de teologia como ciência, sugerimos: BERGER, Klaus. Hermenêutica do Novo Testamento. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1999, p. 83 a 90; KONINGS, Johan. “A teologia enquanto ciência e a universidade brasileira”: Notas e comentários, Perspectivas teológicas 39 (2007), 239-245; SUSIN, Luiz Carlos. “O estatuto epistemológico da teologia como ciência da fé e a sua responsabilidade pública no âmbito das ciências e da sociedade pluralista”: Revista da Faculdade de Teologia da PUCRS, Teocomunicação 36.153 (2006) 555-563; SOARES, Afonso M. L. A teologia em diálogo com a ciência da religião. In: USARSKI, Frank (org.). O espectro disciplinar da ciência

significava ser bispo da igreja cristã nas primeiras décadas do século IV? Segundo Wiliston Walker, desde o século III ocorria um processo de expansão na igreja, envolvendo tanto um crescimento numérico entre os leigos como entre os líderes. Nesse sentido, não parece exagero compreender que no século IV, quando Eusébio foi elevado à posição episcopal, ser bispo significava desenvolver aquilo que competia a essa função eclesiástica desde o século anterior. Não ocorreram muitas mudanças, a menos que consideremos o fato de que com o fim da última perseguição promovida por Diocleciano, bispos cristãos deixaram de ser considerados mentores de um grupo religioso proibido no contexto do império romano. Assim, Walker comenta que

quaisquer que tenham sido as incertezas e crises da existência cristã no terceiro século, a realidade é que durante a maior parte daquele período as igrejas desfrutaram de relativa paz. Foi, portanto, uma era de expansão para as igrejas em muitas partes do mundo romano, e com a expansão veio o desenvolvimento e consolidação da organização da igreja sobre os fundamentos já estabelecidos no segundo século. Estes desenvolvimentos afetaram o status e articulação do ministério oficial, a organização interna das igrejas individuais e as relações das igrejas umas para com as outras. [...]70

Até a metade do terceiro século da era cristã, segundo comentara Jean Daniélou, “o bispo podia agrupar em torno de si o conjunto das comunidades locais. Mas o crescimento considerável do número de cristãos nas cidades, o progresso igualmente da evangelização do interior tornam sempre mais difícil esta centralização.”71 Se recuarmos no tempo,

70 “Qualquer que fosse o tamanho e complexidade da congregação, porém, sua unidade ou consensio (para

utilizar o termo de Cipriano) era representada pelo fato de que o bispo local era o líder e pastor de toda a congregação. Escolhido pela comunidade, o bispo era ordenado com a imposição de mãos por bispos vizinhos – uma indicação do fato de que em sua responsabilidade pastoral ele era o representante não apenas da congregação à qual pertencia, mas também da igreja universal. Uma vez eleito e ordenado, ele era o governante na congregação. O bispo administrava os negócios financeiros da comunidade, era seu principal mestre, escolhia e ordenava seus outros ministros (presbíteros, diáconos e outros), aplicava a disciplina e presidia as assembleias batismal e eucarística. Tendo em vista que ele ‘oferecia os sacrifícios’ (como 1 Clemente diz no final do primeiro século – 1 Clemente 44.4) na liturgia eucarística, o bispo veio a ser chamado sacerdos ou hiereus (‘sacerdote’), um título que também poderia ser aplicado aos seus colegas, os presbíteros. O bispo, entretanto, não estava sozinho no exercício da liderança administrativa, pastoral e litúrgica. O terceiro século assistiu a um crescimento no número de ofícios (grego klêroi, daí ‘clero’, ‘clérigo’ em português) ou ordens (latim ordines, daí ‘ordenação’, em português) que serviam as igrejas. Crescentemente, vários daqueles sem ofícios, os quais eram chamados laikoi ou plebs (‘laicato’, ‘plebe’), os ocupantes destes ofícios e ordens incluíam não apenas os bispos, diáconos e presbíteros, mas também, de tempos em tempos, leitores, viúvas, subdiáconos, virgens, diaconisas, catequistas, acólitos, exorcistas e porteiros. Desnecessário dizer, tal desenvolvimento era mais elaborado nas grandes comunidades e em todo caso ocorria de forma vagarosa, informal e desigual. Os mais proeminentes entre estes oficiais eram sem dúvida os diáconos, os quais, como os assistentes pessoais do bispo, não apenas desempenhavam um papel litúrgico importante, mas também eram diretamente responsáveis pela execução da obra de caridade da comunidade.” cf. WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã. 3ed. São Paulo: ASTE, 2006, p. 119 e 120. Sobre essa discussão, também cf: ESTRADA, Juan Antonio. Para compreender como surgiu

a Igreja. São Paulo: Paulinas, 2005.

71 DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja – dos primórdios a São Gregório Magno.

perceberemos que a autoridade dos bispos remonta o fim do século II. Diante das novas perspectivas teológicas que apareciam, os bispos representavam a tradição de uma fé em comum que se formava, bem como sua unidade. Um bispo agia, primeiramente, na comunidade sob sua responsabilidade. Simultaneamente, bispos de diferentes comunidades que compunham uma mesma região se reuniam em sínodos, o que demonstra que de fato a ação desses líderes religiosos acontecia de maneira coletiva, diferentemente da ação de fundadores de grupos específicos que acabavam, muitas vezes, sendo rotulados como sectários. Estes, diferentemente dos bispos, atuavam mais individualmente, assemelhando-se aos chefes de escolas.

No terceiro século, já há o desenvolvimento de uma hierarquia episcopal, o que vinha se construindo desde o século anterior. Um bispo metropolitano de uma província civil era superior aos demais que a compunham. Era comum que tal preeminência pertencesse ao bispo mais antigo, e foi neste contexto que surgiram as dioceses, tendo sido a primeira no Egito. O bispo da cidade de Alexandria, segundo afirma Daniélou, foi “o patriarca da diocese do Egito, diocese que compreende diversas províncias. Coisa análoga deve ter ocorrido na diocese do Oriente, onde o bispo de Antioquia goza de preeminência, e na diocese da África, onde se dá o mesmo com o bispo de Cartago.”72

Quanto a Eusébio, não somente por causa de seu possível nascimento em Cesareia, mas, também, por desta cidade ter sido consagrado bispo, tornou-se unânime na historiografia denominá-lo Eusébio de Cesareia. Roque Frangiotti defende que este após tornar-se bispo, “continuou elaborando a História eclesiástica, outros tratados apologéticos e obras sobre as Escrituras. Entre os anos 315-316, participou da grande festa da dedicação da igreja de Tiro, ocasião em que pronunciou um panegírico.”73

Bardy, em defesa de Eusébio, afirma que este certamente “não teria esperado a restauração da paz religiosa no início de 313 para retornar do exílio à cidade de Cesareia, haja

segundo as regiões. Nas grandes cidades se decidem pela multiplicação das circunscrições territoriais, sobretudo nos subúrbios. Um sacerdote era posto à sua frente. Foi assim que se constituíram os tituli romanos, provavelmente nesta época. É também o caso para Alexandria. [...] Na Ásia Menor vigorou, durante este período, a instituição dos corepíscopos, isto é, bispos de aldeias, considerados de categoria inferior e destinados a desaparecer no fim do IV século. Fizeram sua aparição no início do III (H.E. V, 16.17). No entanto a solução mais geral, aquela que devia prevalecer, seria a de estender ao interior a solução aceita nas cidades, isto é, multiplicarem-se as ‘paróquias’, à testa das quais se colocava um presbítero, dependente do bispo da cidade mais próxima. É o regime que se desenvolverá, sobretudo, na Gália.”

72 DANIÉLOU, Jean; Marrou, Henri-Irenée. Nova história da Igreja..., p. 229.

73 FRANGIOTTI, Roque. In: Eusébio, Bispo de Cesareia. História eclesiástica..., p. 10. Podemos conhecer esse

amplo panegírico, conferindo a H.E. X, 4. Panegírico significa elogio, o que se tornou bem característico em discursos proferidos por Eusébio ao imperador Constantino, em algumas solenidades.

vista o seu zelo pelo sacerdócio e a sua dedicação aos estudos.”74 Considerando seu empenho

na pesquisa e na produção literária, há que se levar em conta que “a atividade de Eusébio nos anos imediatamente após a grande perseguição e a paz de Milão não se limita às obras históricas que conhecemos.”75 O fato é que enquanto fazia as suas pesquisas, dedicava-se à

leitura de tudo o que lhe poderia ser útil, inclusive escritos não cristãos. O Eusébio escritor não era, portanto, um intelectual ingênuo que se dedicava, apenas, às leituras de textos produzidos por escritores cristãos.

Enquanto bispo, Eusébio também é defendido por seus admiradores. Afirma-se que ele tenha se tornado bispo “involuntariamente, pois nada em seu passado parecia predestiná-lo a exercer tão alto cargo, a não ser seu amor pela ciência e sua reputação como estudioso dedicado.”76 A eloquência de Eusébio era tão notável que foi ele o escolhido para proferir o

discurso panegirista a Constantino na ocasião do aniversário de vinte anos de reinado deste imperador. É uma pena que o seu pronunciamento não tenha sido preservado, nem mesmo em seus principais escritos de elogio a Constantino.

Entendemos que seja importante precisar a diferença entre o Eusébio panegirista do Eusébio apologista. Não podemos misturar os conceitos, pois embora sejam intimamente ligados por se tratarem de duas características presentes em textos e discursos do mesmo intelectual, há que se esclarecer que ele é apologista quando se refere à sua religião e panegirista quando se refere ao imperador.