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Um historiador da igreja anterior a Eusébio?

Parte I. O EUSÉBIO DE CONSTANTINO

2. A História eclesiástica

2.4. Um historiador da igreja anterior a Eusébio?

Devemos aqui abrir parênteses para comentarmos a respeito de outro autor cristão que antecedeu Eusébio e que para alguns, pode ser considerado de fato o primeiro historiador religioso do cristianismo. Estamos falando de Lucas, provável autor de dois livros contidos no Novo Testamento: o Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos157. Este segundo, particularmente, conquanto seja um complemento ao primeiro, é para muitos o primeiro texto de história do cristianismo na história da historiografia cristã.158 Segundo Ferdinand Christian

atitudes e motivações bem diferentes em Eusébio. Este plano compreende de duas partes, das quais a primeira ‘é incompatível com o fato da perseguição e da vitória final do cristianismo’ (LAQUEUR, Richard. Eusebius als

Historiker seiner Zeit…, p. 210), a qual aponta precisamente à segunda, que diz assim: ‘e também os martírios de nossos próprios tempos e a proteção benevolente e propícia de nosso Salvador’. A primeira parte expõe os temas desde um ponto de vista objetivo: o que importam são os temas cujas epígrafes, válidas para todas as épocas, vão aparecendo às vezes, alternando com certa regularidade, ao longo dos sete primeiros livros. A segunda parte, em mudança, começa pela saída do âmbito da última epígrafe da primeira parte – os martírios cristãos de qualquer época – e entra diretamente em uma perspectiva claramente cronológica: ‘de nossos tempos’. O ponto de vista é, pois, completamente distinto.” cf. VELASCO-DELGADO, Argimiro. In: Eusebio de Cesarea. Historia eclesiástica..., p. 43.

156 VELASCO-DELGADO, Argimiro. In: Eusebio de Cesarea. Historia eclesiástica..., p. 43.

157 “Que Lucas – pois é assim que, de comum acordo, chamamos o autor anônimo do terceiro Evangelho e dos

Atos –, portanto, tenha tido a intenção de contar uma história do nascimento do cristianismo, ninguém duvida. Ele foi o primeiro a redigir uma biografia de Jesus seguida de um escrito que, mais tarde, recebeu o título de ‘Atos dos Apóstolos’ (Πράξεις αποστολων). Na Antiguidade ninguém depois dele havia de repetir tal gesto. Os dois volumes desta grande obra foram dissociados por ocasião da formação do cânon do Novo Testamento, antes do ano 200; o primeiro foi reunido a Mateus, Marcos e João para constituir o Evangelho quadriforme; o segundo, colocado antes das epístolas, a fim de estabelecer o quadro narrativo dos escritos paulinos.” MARGUERAT, Daniel. A primeira história do cristianismo – os Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulus, Loyola, 2003, p. 13.

158 “Bem antes que a noção de enredo fosse introduzida no debate historiográfico por Paul Veyne, Martin

Dibelius já percebera a performance narrativa e teológica de Lucas. Por isso, num artigo de 1948, ele galardoou Lucas com o título de der erste christliche Historiker, ‘o primeiro historiador cristão’. Lucas, diz ele, ‘tentou combinar num texto significativo o que fora transmitido na comunidade e o que ele vivera pessoalmente’. Lucas quis também ‘tornar visível a orientação dos acontecimentos’. Numa palavra: ‘das histórias ele fez uma história (aus Geschichten Geschichte)’. Dibelius é um mestre de reflexão sobre a historiografia; ele diz: porque Lucas tece um enredo e, por isso, recorre obrigatoriamente a elementos de ficção, Lucas é um historiador. Está falado.” MARGUERAT, Daniel. A primeira história do cristianismo..., p. 23 e 24. cf. DIBELIUS, Martin. Der erste

Baur, para quem Lucas enquanto historiador está situado em um contexto de definição sintética entre uma corrente paulina e uma corrente petrina, o correto é reconhecer que já na apresentação dos Atos dos Apóstolos existe, na tendência particular de seu autor, um intencional desvio daquilo que para a historiografia factual é chamado de “verdade histórica”159. Para Daniel Marguerat, a tese mais arrasadora foi feita por

Franz Overbeck, exegeta em Basiléia, que num contexto de 1919 chama a obra de Lucas ‘uma gafe em escala de história mundial’. Qual teria sido ela? Segundo Overbeck, o pecado de Lucas foi ter confundido história e ficção, isto é, ter ‘tratado historiograficamente o que não era história e nem fora transmitido como tal’. Em poucas palavras: o autor dos Atos teria misturado história e lenda, o fato histórico e o sobrenatural, numa sopa inconveniente diante da qual o historiador moderno tapa o rosto.160

Há acertos e problemas na opinião de Overbeck. Embora Lucas não deixe de ser um escritor da história, enquanto religioso ele não tinha muito como fugir de seus intentos. Escrever a história como ele escreveu, entendendo que situações extraordinárias, próprias da linguagem mítica, de fato ocorreram historicamente é, sem dúvida, problemático. Por outro lado, a crítica que Overbeck faz se situa numa perspectiva historiográfica, para nós, já ultrapassada. História não é mais e simplesmente aquilo que aconteceu, ou seja, não é mais possível trabalhar com a clássica hipótese racionalista e positivista de “verdade histórica”.161

História, ao contrário, é aquilo que o historiador narra. Se história também é narrativa, independentemente de elementos fantasmagóricos, sobrenaturais e mirabolantes que estejam contidos nela, Lucas não deixa de ser um historiador, ainda que voltado para a sua vertente religiosa, o que não é incomum. Não queremos concordar ou discordar de Lucas no que tange às suas convicções religiosas. O que queremos, simplesmente, é entender que a história pode ser narrada de diferentes maneiras162; problematizá-la não é o mesmo que desconstruí-la e sair

christliche Historiker. In: Aufsätze zur Apostelgeschichte. FRLANT 60, 5ed. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1968, p. 111 a 113.

159 cf. BAUR, Ferdinand Christian. Paulus, der Apostel Jesu Christi. 2ed. Leipzig: Fues, 1866, p. 120. 160 MARGUERAT, Daniel. A primeira história do cristianismo..., p. 16.

161 Podemos nos apoiar na conclusão do próprio Marguerat: “Se quisermos sair do impasse, será preciso refletir

sobre o próprio conceito de historiografia. Realmente, é sintomático que nem Baur nem Overbeck apelem a uma teoria da história; tanto um como o outro, na linha reta do positivismo, identificam verdade histórica com fatos brutos, documentados.” cf. MARGUERAT, Daniel. A primeira história do cristianismo..., p. 17.

162 Para Marguerat, mencionando Raymond Aron, Henri-Irénée Marrou e Paul Veyne “não existe história fora da

mediação instituída pela interpretação do historiador, que confere a tudo o seu sentido: a história é relato e, como tal, constituída a partir de um ponto de vista. [...] A historiografia, pois, não é descritiva, mas (re)construtiva. Ela não alinha os fatos nus (aqueles que Baur e Overbeck identificavam com a ‘verdade histórica’, geschichtliche

Wahrheit), mas unicamente fatos interpretados em função de uma lógica estabelecida pelo historiador. E nessa operação, reconhece Raymond Aron, a ‘teoria precede a história’ ou, se se preferir: o ponto de vista precede a elaboração da história. A veracidade, pois, da história não depende da realidade, em si, do acontecimento relatado (embora o historiador seja responsável por seu relacionamento com os fatos); ela depende da

em defesa de uma verdade histórica, mas identificar a tendência do historiador e compreender o quanto ela é passível de críticas. O mesmo, aqui, é o que pretendemos fazer com o Eusébio historiador, ou seja, com a sua forma de escrever a história.

Entre Eusébio e Lucas há algumas aproximações e distanciamentos. Primeiro, podemos apontar aquilo no que eles se assemelham. Ambos escrevem uma história providencialista, falando constantemente de uma divindade que intervém nas ações humanas. Tanto em um como no outro, aquilo que é tipicamente mítico, mais próximo de uma ficção163, se torna fato histórico por meio da construção narrativa, demonstrando poética e discursivamente que há uma administração divina da história. O interesse documentário, além da história poética, se faz presente tanto na narrativa lucana como na eusebiana, pois eles também pretendem trabalhar com acontecimentos verificáveis e constatáveis, especialmente, aqueles de cunho político: assim como Lucas “dispõe, ao que tudo indica, de uma informação perfeita sobre a organização administrativa do Império”164, Eusébio respeita, por exemplo, todos os dados

com os quais teve de trabalhar acerca da sucessão imperial romana até chegar em Constantino. Saibamos também que Lucas semelhantemente ao que faria Eusébio, não só escreveu uma história eclesiástica, mas uma história da salvação, defendendo a expansão de uma missão religiosa que, para ele, deve ser reconhecida como verdadeira.

Ainda que Lucas e Eusébio se aproximem nessas questões apontadas acima, sem considerar que ambos, em certo sentido, se moldaram aos processos narrativos dos historiadores greco-romanos, uma diferença entre eles deve ser demonstrada: enquanto Eusébio trabalha com a continuação de um estilo historiográfico que salienta a vida dos grandes – em seu caso, de Constantino e de outros imperadores – mesmo tendo escrito também sobre conflitos eclesiásticos, heresias e os grandes nomes da igreja até seu tempo, Lucas se mantém interessado em seguir o modelo das narrativas bíblicas.

interpretação que ele da de uma realidade, sempre suscetível, em si, de uma pluralidade de opções interpretativas.” cf. MARGUERAT, Daniel. A primeira história do cristianismo..., p. 17 e 18.

163 “É Paul Ricouer quem nos ensina até que ponto o ato de narrar é comum a estes dois grandes gêneros

literários, a história e a ficção, que garantem, tanto uma como a outra, uma função mimética (isto é, de representação da realidade). O trabalho do historiador não está mesmo tão longe do trabalho de quem conta um conto quanto o positivismo (que se embaraça com a dimensão narrativa da historiografia) queria fazer acreditar. Há, pois, mais de fictício na história do que o historiador classicamente admite: já que modela (em latim fingere, da mesma raiz que ‘ficção’) um enredo, o historiador trabalha com elementos de ficção. A diferença entre o livro do historiógrafo e o romance histórico tem a ver com o fato de que o romancista exerce apenas um fraco controle sobre o realismo de seus personagens e de seu enredo. Mas, para além da diferença entre relato fictício e relato histórico, aquele que conta uma história e aquele que narra a história tem um procedimento comum: é a sua própria historicidade que ambos verbalizam.” MARGUERAT, Daniel. A primeira história do cristianismo..., p. 23. cf. RICOUER, Paul. La fonction narrative. In: Études théologiques et religieuses, 54, 1979, p. 209 a 230; RICOUER, Paul. Philosophies critiques de l’histoire – recherche, explication, écriture. In: FLOISTAD, G. (ed.).

Philosophical Problems Today, t. I, Dordrecht: Kluwer, 1994, p. 139 a 201; RICOUER, Paul. La critique et la

conviction. Paris: Calmann-Lévy, 1995.