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Parte I. O EUSÉBIO DE CONSTANTINO

1. Eusébio de Cesareia – de provável escravo a primeiro historiador cristão

1.2. Pânfilo, o mestre de Eusébio

A educação de Eusébio foi construída em Cesareia, onde estava instalada a biblioteca fundada por Orígenes (185-253), intelectual cristão mais bem reconhecido até então. Seu mestre Pânfilo (?-310), conforme já dissemos, era nada menos que “o mais douto dos discípulos de Orígenes, por quem teve um reconhecimento e veneração tão profundos que assumiu seu nome.”56 Bardy nos diz que

não há dúvida de que Pânfilo verdadeiramente desempenhara um papel preponderante já na juventude de Eusébio. Ele era um homem de família nobre. Nascido em Beirute, na Fenícia, começou a estudar nas escolas de sua cidade natal, mais conhecidas pelo ensino jurídico. Foi para Alexandria e, depois de exercer suas funções administrativas em seu país, se estabeleceu em Cesareia, onde recebera o sacerdócio. Foi até Cesareia, e passou a trabalhar no sentido de melhorar ainda mais aquela que era a maior biblioteca de seu tempo, e que tinha sido fundada por Orígenes. Mal sucedido na aquisição de novos manuscritos, dedicou-se a fazer cópias e correções daquele acervo que já estava lá. Seu maior zelo era com a Sagrada Escritura.57

54 VELASCO-DELGADO, Argimiro. In: Eusebio de Cesarea. Historia eclesiástica..., p. 16.

55 FRANGIOTTI, Roque. In: Eusébio, Bispo de Cesareia. História eclesiástica. São Paulo: Paulus, 2000, p. 9. 56 CURTI, C. In: BERARDINO, Ângelo Di (org.). Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. Petrópolis,

RJ: Vozes, 2002, p. 537.

57 BARDY, Gustave. In: Eusèbe de Césarée. Histoire Ecclésiastique..., p. 21. Para conhecer panoramicamente o

que fazia o copista ou escriba, qual era a sua tarefa e até seus erros mais frequentes naquele contexto histórico, vale conferir o que escreve Arns: “Parece-me que toda a tarefa do escriba está indicada nestas poucas frases: copiar o texto, confrontá-lo com o exemplar, corrigi-lo, e ficar atento a qualquer inadvertência que pudesse causar novos erros. O primeiro dever é apresentar uma boa cópia, quer dizer, reproduzir o exemplar tal qual! Caso este trabalho pudesse se apresentar sem nenhum erro, todas as outras recomendações se tornariam supérfluas. [...] Aplicava-se também o sistema do ditado para multiplicar as cópias? Pode-se admitir que os copistas se reuniam em um ateliê para copiar ao mesmo tempo manuscritos diferentes ou o mesmo manuscrito em exemplares distintos. As cópias da Bíblia exigidas por Constantino, em meados do século IV, poderiam ter sido reproduzidas assim. Mas, será que se encontram casos em que um leitor lê o texto em voz alta, para que vários colegas seus possam reproduzir ao mesmo tempo o modelo? [...] Os erros dos copistas eram tão frequentes que se receava sua presença em toda parte. Para salvaguardar uma figura de repetição, Jerônimo a assinala: ‘Que ninguém pense que isto foi reproduzido por erro do copista. Na verdade, trata-se de uma figura, que, entre os mestres de retórica, é chamada de repetição’. A adulteração do texto da Bíblia pelos scriptores justifica sua nova tradução. [...] Uma cultura superficial está na origem de muitas correções. Quando o copista não entende, acrescenta, muda, para que a narrativa fique clara, isto é, errada. [...] Se a falta de preparo dos copistas torna os escritos, pouco a pouco, ininteligíveis, a falta de atenção é igualmente prejudicial: os copistas adormecem sobre o trabalho. Foi assim que o Evangelho se tornou irreconhecível: os tradutores o traduziram

Velasco-Delgado também nos oferece detalhes importantes a respeito do trabalho de Pânfilo e, neste caso, particularmente sobre o período em que ele ainda não havia se unido a Eusébio nos trabalhos bibliotecários em Cesareia:

Estando à frente da biblioteca de Orígenes, Pânfilo parece que continuou o trabalho deste, tratando principalmente de reorganizar e completar a biblioteca e, por meio dos métodos filológicos aprendidos em Alexandria, sobretudo a base de copiar, confrontar e corrigir os manuscritos dos livros da Escritura e as obras de Orígenes [...]; reconstruir e definir a partir deste o texto bíblico. Ajudaram-no neste trabalho seu jovem auxiliar [...] e “filho espiritual”, Porfírio, notável calígrafo, e outros dois jovens, Afiano e Edesio, meio irmãos, de nobre e rica família de Gaga, em Lícia, excelentemente preparados nas ciências jurídicas e filosóficas nas escolas de Berito. [...] Um dia, não sabemos quando, Eusébio se uniu a ele. [...]58

Podemos entender numa comparação de narrativas eusebianas produzidas em diferentes momentos que, para o próprio Eusébio, o encontro com Pânfilo foi tão decisivo em sua vida como será o encontro com o imperador Constantino59. Não há indícios suficientes para se afirmar de que maneira Pânfilo e Eusébio realmente se conheceram, contudo, “o certo é que, uma vez que os dois se conheceram, se aliaram de tal modo que a confiança mútua permaneceu até o fim. Eusébio tornou-se o fiel colaborador de Pânfilo.”60

Não é possível afirmar com certeza se Eusébio já era presbítero quando passou a auxiliar Pânfilo. Segundo Timothy D. Barnes, a associação de Eusébio “com Pânfilo aconteceu logo após a última perseguição em Cesareia; Eusébio era então um jovem, provavelmente tendo entre vinte e vinte e cinco anos.”61 O que parece muito provável é que tanto a Eusébio como a

Pânfilo, foi Agápio quem ordenara ao sacerdócio. A partir daí, morando inclusive na mesma casa, desfrutando da mesma paixão pelos estudos aprofundados da bíblia e da teologia cristãs, ardorosos seguidores do pensamento de Orígenes e integralmente empenhados nos mesmos trabalhos, Eusébio e Pânfilo, contando com o apoio de Agápio, formavam uma equipe de altíssimo nível. Devido à amizade que foi construída entre eles, Eusébio e Pânfilo chegaram a

mal, os leitores mal-informados e presunçosos quiseram corrigi-lo, às vezes, até com perversidade, e os copistas

sonolentos completaram a devastação, trazendo acréscimos ou modificações ao texto. Mas o cúmulo é que se tende a atribuir ao próprio autor a responsabilidade pelas negligências do copista. [...] Em defesa do copista, devemos dizer que é ele quem cria a atmosfera necessária a todo trabalho científico: em uma sala repleta de livros, ele escreve em silêncio, e sustenta a coragem e a atividade do senhor com seu zelo e devoção.” cf. ARNS, Paulo Evaristo. A técnica do livro segundo São Jerônimo..., p. 56 a 60.

58 VELASCO-DELGADO, Argimiro. In: Eusebio de Cesarea. Historia eclesiástica..., p. 17 e 18.

59 Conforme comenta Velasco-Delgado: “a expressão ‘meu senhor’, ‘meu dono’, com a ênfase que Eusébio

utiliza, demonstra a sua devoção e entrega ao mestre.” cf. VELASCO-DELGADO, Argimiro. In: Eusebio de Cesarea. Historia eclesiástica..., p. 18.

60 BARDY, Gustave. In: Eusèbe de Césarée. Histoire Ecclésiastique..., p. 22.

61 BARNES, Timothy D. Constantine and Eusebius. Cambridge/Massachusetts and London/ England: Harvard

escrever uma obra intitulada Apologia em favor de Orígenes62, composta por cinco livros escritos enquanto Pânfilo se encontrava preso, vítima da última perseguição oficial que o império exercera contra os chamados cristãos. Barnes, portanto, parece ter razão quando afirma que “Pânfilo e Eusébio, considerados como os herdeiros intelectuais autênticos de Orígenes, dedicaram suas vidas aos estudos da tradição que este havia fundado.”63

Eusébio acompanhara Pânfilo na prisão até a provável data de decapitação deste em 16 de fevereiro de 310, sob determinação do governador Firmino. Não podemos saber como Eusébio conseguiu escapar do processo de condenação, a não ser supondo que tenha se ausentado de Cesareia por algumas vezes. De qualquer modo, ele superará o seu mestre na paixão pelos estudos, produzirá um sexto e último livro para a Apologia em favor de Orígenes, além de escrever, em 311, uma biografia de Pânfilo, obra que mais tarde será muito bem apreciada por Jerônimo, mas que infelizmente se perdeu com o passar do tempo64.