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O começo de uma possível vida de Constantino

Parte II. O CONSTANTINO DE EUSÉBIO

3. Constantino – traços biográficos

3.1. O começo de uma possível vida de Constantino

Primeiramente, é importante reconsiderar a hipótese de que a autoria da obra atribuída a Eusébio intitulada A vida de Constantino não é tão confiável se comparada à unanimidade que há com relação à autoria da História eclesiástica, e já apontamos as razões. No entanto, para esta abordagem recorreremos, especialmente, a esta obra de autoria incerta, mesmo porque o Constantino de Eusébio antes se tornou muito mais um conceito de heroísmo do que propriamente uma personagem histórica. Concorda com isso Hartwin Brandt ao afirmar que “seria simples escrever uma história do conceito Constantino na antiguidade tardia, uma vez que seus traços fundamentais se mantiveram em grande parte os mesmos desde o modelo eusebiano até a sentença do papa Pio X.”227

Acompanhamos os demais historiadores que desenvolveram alguma biografia de Constantino, sobretudo, aqueles que não optaram por reproduzir o modelo hagiográfico e panegirista de Eusébio. Mas, não queremos ignorar aqueles que deram continuidade ao discurso de defesa ao imperador inaugurado pelo bispo de Cesareia. De qualquer modo, mesmo considerando tais continuadores de Eusébio, se for para seguirmos uma proposta de elaborar uma biografia no sentido moderno deste gênero literário228 – e não concordamos que

227 BRANDT, Hartwin. Constantino. Barcelona: Herder, 2007, p. 14. Sobre a sentença que Brandt nos informa,

ele próprio inicia sua obra dizendo que “no ano 1912, em memória à vitória obtida 1600 anos antes por Constantino o Grande sobre seu rival Maxêncio ao norte de Roma, o papa Pio X ordenou que se colocasse uma placa comemorativa em Saxa Rubra, ‘Rochas Vermelhas’, um dos cenários importantes da(s) batalha(s) da Ponte Mílvio no outono de 312. Nesta placa pode-se ler uma inscrição latina, exaltando o comandante Constantino o Grande, que ali venceu Maxêncio graças a providência divina (divinitus) levando Roma ao estandarte cristão, convertendo-se assim no artífice de uma época mais feliz para a humanidade.” cf. KUHOFF, W. Ein mythos in

der römischen Geschichte. Der Sieg Konstantins des Groβen über Maxentius vor den Toren Roms am 28. Oktober 312 n. Chr. Chiron 21, 1991, p. 157, nota 80. É desse artigo que Brandt faz a citação da sentença do papa Pio X.

228Para Brandt “uma biografia moderna de Constantino deve, pois, manter uma distância crítica com relação aos

modelos de biografias procedentes da antiguidade tardia e do período bizantino.” cf. BRANDT, Hartwin.

seja apropriado fugir disso ao fazer uma biografia – por se tratar de Constantino, fica impossível escrever qualquer coisa sobre a sua vida antes do ano 306, quando ele se tornara imperador romano, sucedendo seu pai Constâncio Cloro. Dada a dificuldade de se alcançar um Constantino histórico, que não se reduz ao que Eusébio construiu, o que podemos fazer é, no máximo, identificar apenas alguns traços.

Da mesma maneira, seguindo aquilo que se tem sobre a vida de Constantino a partir de 306, é importante ressaltar que estaremos recorrendo às fontes cristãs sobre sua vida, ou seja, parece quase impossível reproduzir uma vida de Constantino livre da ideologia dos seus biógrafos, quase todos, sucessores de Eusébio no empreendimento de uma historiografia religiosa. Em A vida de Constantino, por exemplo, faltam informações sobre a infância e a juventude, dados indispensáveis em qualquer biografia. Isso mostra que a intenção do autor dessa obra era escrever uma história do reinado de Constantino, mais que de sua vida. Em todo o caso o que foi escrito é tudo o que temos, e aquelas fontes que melhor se aproximam de uma proposta biográfica moderna e mais avaliativa da personagem biografada e de boa parte daquilo que já escreveram a seu respeito, optamos por também aproveitá-las nesta segunda parte do nosso trabalho.

Constantino foi proclamado imperador romano pelos soldados da armada da Bretanha possivelmente em 25 de julho de 306, em Eboracum, atual cidade inglesa de York, imediatamente após o falecimento de seu pai Constâncio Cloro. Filho deste com Helena, Constantino teria vivido duas experiências de casamento. Primeiro, casara-se por volta de 303 com Minervina com quem teve um filho ao qual chamaram Crespo. O segundo casamento teria sido com Fausta, filha de outro imperador romano chamado Maximiano. Com Fausta, Constantino teve três filhos e duas filhas, respectivamente chamados Constantino, Constâncio, Constante, Constantina e Helena. Outro membro familiar importante de Constantino foi a sua irmã Constancia, a qual era filha de seu pai Constâncio Cloro, mas com outra mulher, Teodora, filha legítima ou adotiva – não se tem certeza – do pai de Fausta, Maximiano.

Segundo as primeiras linhas de A vida de Constantino, seu nome era Flavius Valerius Constantinus. Nascera em Naissus, localizada ao sul da atual Sérvia, próxima à divisa com a Bulgária, no dia 27 de fevereiro de 272 ou 274. Pouco há para ser informado sobre a infância, e o que há não passam de informações que não constam nos registros com os quais pretendemos trabalhar. Qualquer referência à educação de Constantino, à sua atuação no reinado de Diocleciano enquanto seu pai era um dos dois Césares do império desde o final do século III e até mesmo participações em combates liderados por Galério e Diocleciano não

passam de conjeturas. Portanto, o Constantino acerca do qual pretendemos estudar, segundo a provocação de Brandt, “nasceu no ano 306”229, e não na década de setenta do século III, pois

o Constantino que nos interessa é o que foi inventado por Eusébio, seu principal biógrafo. Neste sentido, precisa ficar compreendido desde já que, embora o Constantino de Eusébio tenha sido o mesmo imperador romano e jamais deixou de sê-lo, não é possível pensar sobre sua vida apenas pelo percurso da história política. A vida deste imperador não é suficientemente compreendida através da história política do império nas primeiras três décadas do século IV, mas a partir, principalmente, da história da religião praticada naquele período, especialmente, nas regiões que Constantino morava e atuava. Há, portanto, que se questionar o ambiente, o cenário que serve de palco para o Constantino de Eusébio atuar enquanto personagem da narrativa construída por este, seu grande panegirista. Portanto, o biografado Constantino que pretendemos problematizar é aquele que inevitavelmente ganharia as características do seu biógrafo. Brandt defende, inclusive, que “sem a onipresença do religioso, a vida e a obra de Constantino não podem ser compreendidas. Contudo, isso não significa minimizar a importância da política para favorecer apenas a religião.”230 Neste

sentido, o que há no processo que conduz o império romano no início do século IV e que transformará aquela sociedade e suas mentalidades na base do que será a Europa durante toda a Idade Média é um conjunto de relações de poderes de diferentes procedências. Estas relações provocam tensões, alianças, conflitos, mudanças no sistema e reformulações sociais. O processo quase sempre será lento e de longa duração. Em se tratando de Constantino, sua participação neste processo é de suma importância tanto para com a política quanto para com a religião, pois suas atuações enquanto imperador serão determinantes para que uma nova Roma comece a aparecer, tanto política como religiosamente.