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Das intenções do escritor aos problemas e valores de sua obra

Parte I. O EUSÉBIO DE CONSTANTINO

2. A História eclesiástica

2.6. Das intenções do escritor aos problemas e valores de sua obra

O último bloco da obra de Eusébio nos parece demonstrar uma nova etapa por diferentes razões: além de se tratar de um momento novo para o próprio autor não somente como escritor e historiador, mas, especialmente, como bispo, também corresponde àquilo que melhor caracteriza as suas intenções eclesiásticas, políticas, teológicas e apologéticas. Ele próprio, no prólogo do Livro VIII, declara:

Depois de haver descrito em sete livros inteiros a sucessão dos apóstolos, cremos que seja um dos nossos mais necessários deveres transmitir, neste oitavo livro, para conhecimento também dos que virão depois de nós, os acontecimentos do nosso próprio tempo, pois merecem uma exposição escrita especial. E nossa narração terá o seu início a partir deste ponto.178

Velasco-Delgado acrescenta, neste sentido, que “os Livros IX e X são resultado da reelaboração e ampliação do Livro VIII.”179 A sequência que Eusébio demonstra adotar não

parece muito satisfatória, especialmente, devido às lacunas, desordem cronológica e informações desencontradas, “pois, por exemplo, descreve acontecimentos que supõem a

de definição da história no campo do conhecimento humano, quando na Arte Poética estabeleceu, entre outros aspectos, o início de uma discussão que ainda perdura entre aqueles que se dedicam a reflexões sobre a história. Segundo o filósofo, além de se distinguir no plano formal, por ser escrita em prosa, a história descreve algo que

aconteceu, enquanto a poesia o que poderia ter acontecido. Acrescentava também que a dependência à cronologia e ao efetivamente acontecido fazia com que esta forma de conhecimento fosse inferior ou, pelo menos, subordinada às formas mais elevadas que eram a poesia e a filosofia.” cf. SILVA, Rogério Forastieri da.

História da historiografia..., p. 28. “Na história da filosofia também teria surgido amplo material de narradores de sucessões. Por volta de 200 a.C., Sotion teria reunido ao menos trinta e três livros de sucessões, formando uma ampla história sequencial das escolas filosóficas.” Segundo Velasco-Delgado, “os temas primordiais da

História eclesiástica serão estas sucessões, permitindo conhecer a ordem de sucessão dos bispos nas Igrejas fundadas pelos próprios apóstolos. [...] há quatro tipos de sucessão: a de Jerusalém e a cristandade judia, a da Síria e Antioquia, a de Alexandria e a de Roma, no século II, com algumas variações e cruzamentos. [...] Eusébio aplica também os termos διαδοχή, διάδοχος, διαδέχομαι a diversos tipos de sucessões (de sumos sacerdotes, I, 6.7 e 8; de imperadores, III, 17; de hereges, IV, 7.3; de diretores da escola catequética alexandrina, VI, 6; 29.4; de filósofos, VII, 32,6).” VELASCO-DELGADO, Argimiro. In: Eusebio de Cesarea. Historia eclesiástica..., p. 4. Sobre o conceito de ciência em Eusébio, já comentamos em nota anterior.

178 H.E. VIII, prólogo. Este prólogo mais parece uma continuação do último parágrafo do Livro VII: “Após ter

descrito nestes livros o tema das sucessões, desde o nascimento do nosso Salvador até a destruição dos oratórios, abrangendo uns trezentos e cinco anos, a continuação iremos deixar por escrito, para que o saibam os que vierem depois de nós, quantos e de que índole tem sido os combates dos que em nossos dias se portaram de maneira viril em defesa da religião” cf. H.E. VII, 32.32. Além do prólogo no Livro VIII, o autor dedica o primeiro capítulo do mesmo Livro aos que precederam a perseguição empreendida por Diocleciano, e o faz, inclusive, apropriando-se de trechos da Bíblia Hebraica como Lamentações 2.1-2 e Salmos 88.40-46. Na sequência, inicia o segundo capítulo no qual tratou da destruição das igrejas, afirmando que todas aquelas “coisas aconteceram, efetivamente, em nossos dias, quando com nossos próprios olhos temos visto os oratórios, de alto a baixo, inteiramente arrasados, e as divinas e sagradas Escrituras entregues ao fogo no meio das praças públicas [...]” cf. H.E. VIII, 2.1.

179 VELASCO-DELGADO, Argimiro. In: Eusebio de Cesarea. Historia eclesiástica..., p. 48. Sobre o Livro VIII

“os acontecimentos que são relatados parecem montar um no outro sem muita ordem ou relação entre os capítulos. O último capítulo termina com o edito de tolerância de 311, mas não segue nos demais uma ordem cronológica. Começa expondo os inícios da perseguição, a conduta dos cristãos diante desta perseguição e o seu desenvolvimento em Nicomédia. Segue uma exposição dessa perseguição em vários lugares do império e termina com uma rasa informação política, seguida do edito de Galério.”

existência de um quarto edito de perseguição e, no entanto, não faz dele a mínima referência.”180

Para Curti, sem deixar de mencionar os méritos do trabalho de Eusébio, além da intenção explicitamente apologética, na sua obra

foram notados diversos defeitos: aí faltam uma reelaboração pessoal das fontes e um quadro histórico organicamente unido. Foram observadas desproporções na exposição da matéria, superficialidade na solução de algumas questões, parcialidades de julgamento. No entanto, apesar destas carências, a obra tem qualidades indiscutíveis, como a de nos aproximar de textos e documentos que doutra forma nos seriam desconhecidos, e de nos fornecer informações preciosas sobre a história da Igreja primitiva, as sucessões episcopais, os mártires, os hereges, etc.181

O uso de várias citações demonstra, ao mesmo tempo, muito mais os seus valores enquanto fontes primárias do que pelo simples uso feito pelo autor. Hoornaert, por exemplo, aponta que em um “nível de técnica historiográfica Eusébio é o primeiro historiador cristão a citar fielmente o material por ele usado e a indicar corretamente as fontes. Sua obra demonstra paciência, escrúpulo e excelente organização da matéria.”182 Para Velasco-Delgado, “o grande

valor da História eclesiástica se reside precisamente nas citações, e estas enquanto base de investigação, do que pelas fontes ou utilização das mesmas feitas pelo próprio Eusébio.”183 É

importante considerarmos que conquanto Eusébio seja um pioneiro na escrita da história da igreja cristã, seu texto demonstra em grande escala uma dependência que supera qualquer autonomia reflexiva que ele, enquanto historiador, poderia explicitar. Sua hermenêutica adotada em toda a obra, mas, sobretudo, nos Livros VIII ao X, não ultrapassa os limes de uma tendência teológica, sem provocações à postura das lideranças cristãs diante dos favores imperiais, pois seu texto só se desenvolve reproduzindo o que já disseram as passagens bíblicas por ele utilizadas, não existindo qualquer interesse em interpretar a história de outra maneira que não seja aquela que favoreça a sua fé, seus interesses político-eclesiásticos e seus intentos de historiador religioso184.

180 VELASCO-DELGADO, Argimiro. In: Eusebio de Cesarea. Historia eclesiástica..., p. 48.

181 CURTI, C. In: Berardino (Org.), Ângelo Di. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs..., p. 537. 182 HOORNAERT, Eduardo. A memória do povo cristão..., p. 26.

183 VELASCO-DELGADO, Argimiro. In: Eusebio de Cesarea. Historia eclesiástica..., p. 56. “Chegaram até nós

citações de fontes antigas totalizando ao menos 250 passagens, das quais não teríamos conhecimento sequer da metade, caso ele não as tivesse preservado em sua obra. Além destas, há que adicionar muitas outras citações indiretas ou resumos, um terço do que procede dos mais variados textos já totalmente perdidos em suas versões originais.” cf. LAWLOR, H. J. Eusebiana. Essays on the Ecclesiastical History of Eusebius, Bishop of Caesarea (Oxford 1912), p. 19.

184 Eusébio não deixa de ser um intérprete da história, no entanto, a entende a partir de uma perspectiva

providencialista. Quando se apropria, por exemplo, de passagens da Bíblia Hebraica para legitimar religiosamente as suas opiniões, adota um método tipológico de interpretação. Segundo David S. Dockery “a

Ao tratar dos que foram considerados hereges e de suas respectivas controvérsias teológicas, Eusébio não cita os seus escritos originais, mas somente aquilo que os autores ortodoxos lhes responderam. Não nos parece coerente afirmar que naquele início do século IV, os escritos gnósticos, por exemplo, já tivessem desaparecido. No entanto, Eusébio não os cita, mas apenas os seus refutadores, o que demonstra que, realmente, seu interesse literário era “estritamente eclesiástico e ortodoxo”185, a menos que ele não os conhecesse, o que

também é possível. De qualquer maneira, naquele momento, ter uma preocupação teológica ortodoxa e, ao mesmo tempo, ser ariano, não significa uma contradição, especialmente, porque Eusébio entendia que a perspectiva cristológica ariana é que deveria ser reconhecida como correta.

Há um problema de consistência nas citações feitas por Eusébio, as quais nem sempre aparecem de modo rigorosamente exatas. Nem sempre, também, estão claros o início e o final de uma citação direta, o que se torna um agravante ainda maior quando sabemos que aquela citação é o único fragmento existente, uma vez que o texto original se perdeu. Também em vários momentos da obra, uma referência é citada de maneira mutilada, editada, tanto no meio de uma frase já iniciada como em seu final. Isso demonstra que Eusébio, não poucas vezes, se apropria de frases de outros, sem obrigatoriamente citá-los, pois nesses casos particulares pretende simplesmente completar uma afirmação usando, contudo, o recurso do plágio186, sem dar-se o trabalho de ao menos parafrasear os textos de outro escritor.187 Esse problema parece colocar em dúvida a afirmação de Hoornaert quanto à fidelidade de Eusébio em suas citações.

exegese tipológica busca descobrir uma correspondência entre as pessoas e acontecimentos do passado e do presente ou do futuro. A correspondência com o passado não é necessariamente descoberta no âmbito do texto escrito, mas no contexto do acontecimento histórico.” cf. DOCKERY, David S. Hermenêutica contemporânea à

luz da igreja primitiva. São Paulo: Vida, 2005, p. 35.

185 BARDY, Gustave. In: Eusèbe de Césarée. Histoire Ecclésiastique..., p. 95.

186 Segundo Sonia Vasconcelos, “na visão da maioria dos países de língua inglesa, o plágio é definido como a

‘apropriação ou imitação da linguagem, ideias ou pensamentos de outro autor e a representação das mesmas como se fossem daquele que as utiliza’, conforme o Random House Unabridged Dictionary.” cf. VASCONCELOS, Sonia M. R. O plágio na comunidade científica: questões culturais e linguísticas. Ciência e

Cultura, São Paulo, v. 59, n. 3, p. 4 e 5, jul/set 2007. O plágio é um conceito moderno, embora praticado desde a Antiguidade. Em Eusébio, não estamos nos referindo ao ato de copiar enquanto copista, mas enquanto alguém que se apropria da ideia e do texto de outrem, reproduzindo em seu texto como sendo seu. Vimos que, embora tenha muitas vezes citado com rigor os autores consultados, em outros momentos da obra ele demonstra a tamanha dependência que possui em relação a tais autores. Sem muitas alternativas, Eusébio os copia, os transcreve, os parafraseia, sem citá-los direta ou indiretamente. Assim, embora o conceito de plágio seja bastante recente, a sua prática já existe há bastante tempo. Para sabermos o que significava citar uma obra ou copiá-la no intuito de preservá-la, não enquanto plagiador, mas enquanto copista, cf. ARNS, Paulo Evaristo. A técnica do

livro segundo São Jerônimo..., p. 56 a 60.

187 Para exemplos de situações em que isso ocorre, consultar VELASCO-DELGADO, Argimiro. In: Eusebio de

Cesarea. Historia eclesiástica..., p. 57 e 58. “Estas mutilações são muito numerosas, e nem todas podem ser detectadas, devido à falta de possibilidade de comparação dos textos, já que aparecem somente na História

eclesiástica (ver, por exemplo, III, 21.4; V, 1.36; VI, 40.5, VII, 10.5). Muitas destas falhas se devem a simples negligência ou descuido, talvez dos secretários, porém as vozes são deliberadas e significativas, como é a

Obviamente, exceto quando lhe convinha, Eusébio fez referência a escritos de autores pagãos, aos quais denomina historiadores de fora ou judeus como Filo de Alexandria e Flávio Josefo. É possível elaborar, por meio de diversas citações, uma lista de obras dos vários autores dos primeiros três séculos de nossa era, todos mencionados do Livro II ao Livro VII da História eclesiástica.188 Estes, claramente, seriam os que Eusébio não deixou de citar a fonte, não significando que ele sempre tenha feito assim.