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A humanização e a produção de histórias em quadrinhos

3.2 Segunda Sinfonia: as práticas integrativas e populares de cuidado como

3.2.5 A humanização e a produção de histórias em quadrinhos

Na Ciranda de Aprendizagem e pesquisa, a temática da humanização trouxe à cena a linguagem gráfica, mais especificamente a produção de Histórias em Quadrinhos como possibilidade de formulação teórica, sistematização das discussões e potencialização da criação coletiva.

Trazida pelo cirandeiro Josenildo, revela-se como espaço comunicativo da prática pedagógica das Cirandas, que surge, de início, das potencialidades desse ator protagonista. Na Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa, Josenildo fala de como essa trilha das artes visuais se delineou nos percursos da humanização:

Uma de minhas funções dentro das cirandas é facilitar oficinas e vivências de quadrinhos e, nessa caminhada, temos nos envolvido com adultos, jovens e crianças. [...] No início, sempre tinha alguém me auxiliando. Mas com tempo precisei caminhar com minhas próprias pernas. Comecei, então, a facilitar as oficinas estando à frente do trabalho. Dessa vez, Mayana Dantas, estudante de filosofia que trabalhava conosco como apoio técnico, começava a me acompanhar. Como éramos convidados para realizar vivências curtas e as rodas das Cirandas onde reuníamos as crianças eram, no geral, encontros rápidos, comecei a pensar então uma metodologia que pudesse ser utilizada nesses espaços e tempos.

A fala do cirandeiro é reveladora da descoberta que se faz ancorada na prática, da experiência feita. Sigamos com a sua fala:

Desenvolvi uma forma de construção de quadrinhos através de recortes, onde os participantes montariam seus painéis. Os diálogos poderiam ser criados a partir de temas discutidos em grupos e escritos em balões de diálogo e colados nos painéis.

Nas primeiras oficinas, as crianças desenhavam aquilo que representasse seus sonhos, seus medos, suas dores, seus sentimentos, seus desejos, sua raiva e tudo que representasse sua realidade. Eram desenhos soltos, criados em folhas de papel A4.

Com o tempo, começamos a trabalhar vivências de HQs. As oficinas começaram a ganhar mais espaço e passamos de simples vivências para oficinas com uma carga horária maior, onde além da expressividade se juntava falas.

Do seu discurso, apreende-se como ele amplia seu olhar e compreende mais a mais a importância dessa linguagem, não só na discussão das situações-limite, mas como expressividade e fala – acrescentamos, também, como espaço de exercício do protagonismo infantil e de suas leituras de mundo.

As histórias produzidas sempre tinham a ver com a realidade de vida das crianças e jovens. Muitas até abrangiam situações-limite discutidas nas comunidades. O gibi produzido sobre a Granja Portugal traz um pouco da discussão realizada na comunidade e traz em seu conteúdo o sonho das crianças por um bairro melhor. A fala das crianças. O roteiro é das próprias crianças da comunidade...

Aqui nos remetemos a Canclini (1997) que traz á cena a importância das histórias em quadrinhos na cultura contemporânea ocasionando novas técnicas narrativas, combinando tempo e imagens em um relato de quadros descontínuos que evidenciam a potencialidade visual da escrita e a dramaticidade que pode ser condensada em imagens estáticas.

Outro aspecto importante da proposta das Cirandas tal como está descrita no relatório de gestão, (FORTALEZA, 2006) é a potencialização dos atores locais no sentido de contribuir para a ampliação dos seus horizontes. Ouçamos o cirandeiro Josenildo sobre a socialização das oficinas de histórias em quadrinhos:

A última oficina de quadrinhos que promovemos abordou o tema da Humanização na saúde. Nós resolvemos convidar crianças e jovens que haviam se envolvido nas oficinas de noções de histórias em quadrinhos que fizemos nos anos anteriores, para aprofundar a idéia de possibilitar a essas pessoas sua expressão nas técnicas dos quadrinhos e na temática da humanização na saúde. Iniciamos com nove adolescentes e jovens das diversas regionais, além de Mayana e eu como trabalhadores do projeto.

Segundo se depreende da fala do cirandeiro, a imagem parece guardar possibilidades expressivas que não trazem os limites do sentido aprisionado pelo conceito. Também observamos que o trabalho com imagens pode funcionar como sendo utilizado como síntese de temas geradores a serem explorados nas rodas de desvelamento de realidades. Canclini (1997) nos diz que a linguagem dos quadrinhos põe em evidência uma sociedade na qual as fronteiras podem estar em qualquer parte.

A oficina foi construída com base no conhecimento prévio dos participantes, trabalhando em uma abordagem teórico-vivencial, partindo de idéias força e imagens geradoras de reflexão, articulando a discussão conceitual à produção de imagens e roteiros acerca do tema. O conteúdo programático incluiu a discussão acerca da educação popular com a linguagem do cordel, o SUS e a luta popular na conquista da saúde como direito; utilizamos vídeos e produção de imagens sínteses, a leitura de materiais acerca da Política Nacional e Municipal de Humanização e a contextualização do projeto Cirandas da Vida (NASCIMENTO, 2008).

Do relato do cirandeiro, é possível apreender a perspectiva de elaboração coletiva do conhecimento, base referencial desta proposta metodológica:

Nas oficinas trabalhamos com leituras do cordel “Educação Freiriana” do poeta João Santiago, parte do texto teatral “Pacientes pacientes” do grupo Semearte, que discute o SUS, seus princípios e as dificuldades de acesso da população aos serviços como forma de problematizar, com os atores e atrizes envolvidos, referências acerca dos princípios da educação popular do SUS e da política nacional e municipal de humanização.

A produção técnica da história também foi permeada por essa perspectiva da formulação coletiva do conhecimento e suas possibilidades:

Toda a construção e caracterização dos personagens e dos roteiros, assim como a própria metodologia da oficina foi coletiva e articulada a momentos de vivência nas unidades de saúde, onde a situação foi problematizada com atores comunitários, trabalhadores e gestores locais, para a construção do gibi. No processo houveram algumas desistências, fruto das dificuldades de acesso e compreensão, mas o gibi produzido está assinado coletivamente por cinco atores juvenis, que partilham de forma igualitária para sua construção, embora cada um construa de forma diferenciada a sua contribuição (DANTAS, M. et al., 2008).

O processo foi revelador das potencialidades dos atores na reflexão acerca do tema da humanização na saúde, além de promover a “autoralidade” de atores populares juvenis. Em sua fala na Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa, o cirandeiro detalha o percurso metodológico vivido:

Após a leitura dos textos, foram trocados os papéis e cada um leu o que o outro escreveu para, então, desenhar a representação do que se discutiu. Este encontro serviu para esclarecer mais sobre a metodologia das Cirandas, que tem como ponto de partida a reconstituição da história da comunidade por idosos, adultos, jovens e crianças. No enfrentamento das situações-limite se unem o saber popular e o acadêmico. Nesse momento discutimos as possibilidades de enfrentar a situação-limite de forma coletiva e percebemos que a arte é uma maneira de expressar as angústias, de conversar, de dialogar (grifo nosso).

Em encontro ampliado da Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa, outros atores desvendam, as estratégias de trabalhar coletivamente as diferenças e contradições, sempre na perspectiva de fortalecer as potências dos sujeitos.

Resolvemos fazer uma visita à uma unidade de saúde para pesquisaras opiniões de pessoas que acessam o serviço, dos trabalhadores e da coordenação. Nós imaginávamos que, pelo menos os profissionais estariam antenados com a idéia, mas o que vimos e ouvimos na unidade era muito diferente do que a teoria mostrava. O acolhimento naquela unidade ainda não funcionava e então ficamos pensando como íamos escrever sobre uma realidade que não vimos. Foi então que tivemos a idéia de escrever a história real e o sonho.

Também aqui é possível perceber movimentos de produção compartilhada do conhecimento e do exercício da “autoralidade” dos atores populares. Na Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa, o cirandeiro Josenildo traz em sua fala o detalhamento desse percurso:

O maior desafio da produção do gibi da humanização foi a provocação das Cirandas vivida como desafio para fazermos essa produção coletivamente. Fugindo à regra das produções que, em geral, exibem uma assinatura individual, essa HQ teria a assinatura de diversos autores, jovens das comunidades da periferia de Fortaleza e que já haviam participado de oficinas que realizamos. Cada autor trazia em sua bagagem um traço diferente com estilos diferenciados de desenho como, por exemplo, o mangá, cartum, ou mesmo um estilo mais americanizado. Naquele momento já nos perguntávamos como iríamos fazer isso. Decidimos produzir inicialmente tirinhas de humor tipo aquelas de jornal. Depois resolvemos construir o roteiro da história principal e o grupo chegou ao consenso de dividir a história em dois momentos que representariam o real e o sonho em relação à humanização. A construção do roteiro com todos participando foi muito interessante. Uma pessoa pensava a idéia geradora, vamos dizer assim, um tema, ou uma situação, outro por sua vez pensava o desenvolvimento ou o conflito da história e outro ou outra pensava o final. Esse processo seguimos também para a produção das tirinhas, aliás começamos com elas.

E o sonho da humanização? Nessa produção compartilhada de conhecimento deixavam-se ver as dobras: a realidade e o sonho. Justapostos ou enfrentando-se? O riso e a releitura das imagens parece também provocar certo estranhamento que dá espaço a leituras novas e possibilidades de transformações:

Na construção dos desenhos, as tirinhas foram o momento da produção de cada um e possibilitou aos que ainda não tinham conseguido dar ritmo e qualidade à sua produção, no que se refere as técnicas, a possibilidade de mostrarem sua potência. Por outro lado, ficamos pensando sobre qual estilo de desenho melhor se adequaria e como fazer dialogar dois estilos diferentes em uma mesma história, no caso o meu e o do Wilton. Como já tínhamos decidido que a história trabalharia o real e o sonho, então decidimos que o sonho seria representado na linha do estilo desenho americano, que a princípio é um estilo de desenho mais realista. Ao mesmo tempo, pensamos que a realidade, por trazer tantos problemas, poderia estar simbolizada por um estilo mais leve de desenho, como o cartum, que foi a linguagem trazida pelo Wilton. Para nós, naquele momento, era como se a arte, ao trazer o cômico, pudesse nos ajudar a mudar aquela realidade que se transfigura a partir do riso que o desenho provoca.

Dessa forma, a produção coletiva de histórias em quadrinhos, refletindo a edificação da política de humanização em Fortaleza, configura uma linguagem comunicativa acessível a diversas faixas etárias que podem se entreolhar; revela a potencialidade dos atores juvenis comunitários como produtores de reflexões e tecnologias pedagógicas e comunicativas, possibilitando a discussão sobre o tema em diversos ambientes, como escolas, grupos, unidades de saúde, entre outros.

Portanto, urge enxergar o horizonte das potencialidades humanas, sobretudo objetivando a superação das situações-limites identificadas pelos grupos e reconhecer as possibilidades e a criatividade que cada ser utiliza em seu percurso rumo à emancipação e à capacidade para a tomada de decisões.

Como disse Freire (1997, p. 99),

[...] o sonho pela humanização, cuja concretização é sempre processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica etc., que nos estão condenando à desumanização. O sonho é assim

uma exigência ou uma condição que se vem fazendo permanente na história que fazemos e que nos faz e re-faz.

Freire (1987, p. 30) relaciona essa questão com as condições sociais que promovem ou determinam a desumanização referindo-se a elas como distorções da vocação humana de ser mais. O autor afirma, ainda, que a luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, somente é possível porque, mesmo considerando a desumanização, um fato concreto na história, ela não significa destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que alimenta subjetividades aviltadas e que geram a violência dos opressores e, assim, o ser menos.

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