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A Proposta político-pedagógica: contribuições para a formação de um

3.3 Terceira Sinfonia: o canto coletivo das escolas na produção da vida

3.3.2 A Proposta político-pedagógica: contribuições para a formação de um

A Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa traz para o centro da roda a articulação e a formação dos artistas-educadores, com vistas à formulação compartilhada do processo pedagógico a ser realizado em onze escolas municipais de ensino fundamental, escolhidas com base na pactuação entre os cirandeiros e os distritos de saúde e educação nas seis secretarias executivas regionais-SER.

Para o cirandeiro Ray Lima,

Um aspecto facilitador desse processo refere-se à capilaridade que as Cirandas têm no meio popular e sua capacidade de inserção nos territórios, articulando saberes e práticas, assim como sua vocação pelo trabalho em rede, tecendo relações com e entre os mais variadores atores sociais, institucionais e não institucionais diretamente ligados ou não ao setor saúde. Aliás, vale destacar sua contribuição junto às comunidades e aos espaços de formação do Sistema Municipal Saúde Escola – SMSE quanto à ampliação do conceito de saúde através da educação popular, que tem se concretizado na produção de tecnologias leves, praticadas no âmbito do sistema municipal de saúde do município de Fortaleza.

Respaldados na fala do cirandeiro cabe perguntar-nos: que princípios orientadores percebemos nas práticas pedagógicas realizadas pelas Cirandas da Vida e em que medida eles dialogam com os princípios da saúde e da educação?

Que tecnologias leves18 as Cirandas produzem nessa caminhada com os grupos de arte dos territórios e em que medida elas podem iluminar os processos pedagógicos vividos com os profissionais de saúde ou mesmo nas escolas?

18

Segundo Merhy (2005, p. 49-50),O trabalho em saúde é centrado no trabalho vivo em ato e não pode ser capturado na lógica do trabalho morto, expresso somente nos equipamentos/máquinas (tecnologia dura) e nos saberes estruturados

De que forma esses processos podem contribuir para a interação saúde e educação? No que diz respeito à interação saúde educação, os percursos das Cirandas, no seu propósito de problematizar a violência e outras situações-limite apontadas pela população, trouxeram a necessidade de constituir diálogos com outros setores e projetos do campo da saúde que atuam no espaço escolar.

No processo fomos construindo diálogos com o projeto Saúde e Prevenção nas Escolas-SPE, conduzido pela área técnica de DST e AIDS, com o grupo das escolas promotoras, técnicos da Secretaria Municipal de Educação, Distritos de Educação e as escolas e fomos percebendo que são muitas as temáticas presentes no cotidiano juvenil e nos projetos políticos pedagógicos das escolas. A possibilidade de trabalharmos com um universo temático mais amplo foi sendo configurada, mas a escolha das escolas onde atuaríamos, foi definida a partir da constatação de situações de violência na escola ou em suas cercanias (FORTALEZA, 2007a). O relato do cirandeiro Ray Lima sobre a forma de envolvimento dos artistas e a edificação da proposta traz possibilidades de reflexão sobre diversos aspectos da questão.

Um dos aspectos diz respeito à forma de escolha dos educadores-artistas para facilitar as oficinas. Por um lado, o convite dirigido aos grupos partícipes da Rede de Arte Cultura, outra sinfonia sobre a qual nos debruçaremos posteriormente. Este se deu com base em um perfil estabelecido pelo coletivo dos cirandeiros que, segundo documento de avaliação anual das Cirandas (FORTALEZA, 2007a), constou de experiência com facilitação de oficinas, tempo de participação no grupo ou atuação com a linguagem artística e envolvimento com a comunidade em seus movimentos de organização e luta popular.

Outra dimensão singular da proposta diz respeito ao trabalho pedagógico empreendido com o grupo de artistas-educadores populares.

Ancorada nos princípios da educação popular, e tendo os próprios cirandeiros e cirandeiras facilitando o processo, a proposta consistiu em que os saberes dos atores e atrizes dos grupos e movimentos locais que trabalham com arte tivessem vez e voz na mesma roda, expressando sua singularidade, sua peculiaridade rítmica, medrando ações grupais onde se pudesse experimentar a riqueza da construção coletiva.

Ainda considerando essa diversidade, entendemos a necessidade de constituir um olhar multirreferencial na abordagem, com base no qual se pudesse produzir uma leitura plural, buscando trazer o ponto de vista popular sobre as realidades que desejávamos mudar, em sua complexidade e heterogeneidade.

(tecnologia leve-dura), pois no campo das intervenções assistenciais há abordagem assistencial de um trabalhador de saúde junto a um usuário/cidadão, em um processo de relações, que envolve tecnologia de relações (tecnologia leve) de encontros de subjetividades, de produção de vínculo, autonomização (aqui definida como a capacidade do indivíduo de governar o modo de conduzir a sua própria vida) e acolhimento.

Tendo como referência esta proposta pedagógica, gestores, professores, estudantes, educadores populares foram envolvidos, além da comunidade do entorno da escola em seu processo de elaboração. O percurso metodológico vivenciado na constituição da experiência sempre considerou a diversidade de saberes e lugares que constituem o universo complexo da comunidade onde se insere a escola, tendo como aspectos fundantes a “dialogicidade” criativa, a escuta sensível e a escrita coletiva.

Segundo Ray Lima,

Uma das preocupações era a de aprofundar a discussão sobre educação popular a partir de uma abordagem vivencial que pudesse incorporar as dimensões subjetivas e coletivas dos processos e propiciar a construção metodológica das oficinas de forma coletiva e problematizadora. Nesse sentido buscou-se a reconstituição da memória de cada grupo, a discussão sobre as relações que construiu com escolas e comunidades de seu território de atuação e a preparação da proposta de trabalho para desenvolver esse momento na escola, envolvendo estudantes, professores, pais, gestores e equipes de saúde. Conhecer a experiência prévia de cada um, seus desejos, sonhos, projetos de vida era outra questão que considerávamos fundamental por entendermos que o trabalho do educador necessariamente envolve a dimensão subjetiva, o desejo, a amorosidade.

Considerar a subjetividade dos educadores populares, para o conjunto de atores e atrizes das Cirandas da Vida, tal como expressam em um dos documentos sobre o processo, representa aspecto-chave da proposta. Possibilitar a esses educadores a oportunidade de trabalhar apoiados em suas crenças e escolhas, de refletir sobre quem realmente são nessa história, por onde trilhar e o papel de cada ator/atriz envolvidos no projeto, foi um dos aspectos orientadores da proposta político-pedagógica.

Para uma reflexão importante no que concerne ao respeito à experiência prévia dos diversos atores e atrizes envolvidos, vamos buscar mais uma vez em Freire a âncora, quando ensina que “respeitar os saberes” de “senso comum” ou produzidos na experiência existencial não significa limitar o ato educativo a esse saber, mas dialogar com ele, problematizá-lo. Dessa forma, é possível, segundo ele, elaborar um saber relacional, como síntese articuladora entre os saberes apreendidos na escola da vida e aqueles proclamados na vida da escola.

Dessa forma, quando nos referimos ao respeito a esses saberes, o inscrevemos considerando como Freire (2000) a identidade cultural dos educandos e a compreensão de que subestimar a sabedoria que resulta da experiência sociocultural seria, simultaneamente, equívoco de atitude científica e manifestação inequívoca da presença de uma ideologia elitista no que fazer educativo.

A arte como aspecto transversal a todas as ações das Cirandas permeia também aqui os diversos momentos do processo. Nesta direção, a arte é vista como indispensável para a formação do cidadão, inclusive para as práticas sociais e para o trabalho.

Continuemos com o relato do cirandeiro:

Trabalhamos a acolhida com brinquedos cantados e jogos cooperativos com o objetivo de trabalhar o ritmo, a cooperação, a integração e o espírito coletivo no trabalho. A problematização sobre a educação foi construída com base em questões geradoras que abordaram as dimensões conceitual, pedagógica e cidadã em sua relação com o território. As sínteses produzidas pelos grupos tiveram como orientação a inclusão das linguagens da arte que trazem em se saber de experiência feito como o teatro, a música, a poesia. Também buscamos sintetizar com arte a reconstituição de suas experiências, a concepção do seu aprendizado, as linguagens com que cada um constrói sua prática artística e os lugares onde ela se realiza.

As linguagens artísticas mais uma vez revelam a potência de sua dimensão problematizadora no rap produzido pelos facilitadores como reflexão ás questões norteadoras:

Escola que eu quero Olha só o que me deram Popular, igualitária Envolva e me atraia Escola que eu quero Olha só o que deram. Loteada, privada,

Fechada para os donos do saber Não valoriza o povo

Tampouco o seu saber Escola que eu quero Olha só o que deram. Sistema educacional Diretor senhor feudal

Mantenedor do sistema formal Fecha a escola

Para a riqueza local Não cumpre o seu papel

Educação = defasagem = evasão Educador que deseduca

Forma o Brasil que caduca

Essas reflexões partem da compreensão das potencialidades da arte como espaço de produção de saberes e sentidos, a partir dos quais consideramos a possibilidade de promover a ampliação da percepção de seres humanos, como sujeitos criativos e afetivos, na perspectiva de fomentar a participação popular e o protagonismo infanto-juvenil na promoção da saúde e da vida. Nesse sentido, retomamos a proposição de Lima (2009) sobre o artista transformar-se e/ou reconhecer-se como educador, e o educador transformar-se e/ou reconhecer-se como artista, inserindo-se no universo pedagógico das escolas.

Sigamos com o relato do cirandeiro:

Do material produzido pelos artistas, pudemos apreender a diversidade de suas leituras e referências para o que compreendem como processo educativo e que giram em torno de autores como: Frei Beto, Leonardo Boff, Paulo Freire, José Comolin, Florestan Fernandes e Nietzsche. No que diz respeito á concepção de educação esta aparece como base de libertação e como saber coletivo, como processo e vivência que transforma a realidade, abrindo-se a um mundo de conhecimento e de convivência.

Nesse percurso inicial com os facilitadores, percebíamos, como pesquisadora implicada, que, apesar das leituras diversas ou mesmo da escassez de leitura escrita por parte de alguns, o conjunto dos facilitadores trazia a perspectiva de uma educação libertária, processual e coletiva, onde a vivência é expressa como dimensão fundamental.

A diversidade de referências soava para os que conduziam as Cirandas como a possibilidade de trabalhar a “dialogicidade”, compreendendo a importância da alteridade que, para Rolnik (1992), remete ao plano das forças e das relações, ao encontro dos seres, no qual cada um afeta e é afetado, produzindo certa instabilização que enseja transformações. Neste sentido, buscamos mais uma vez Bakhtin (2003) para nos lembrar que os sujeitos do diálogo se alteram em processo (devir) e que não se posicionam como coisa muda, mas como sujeitos que também falam e respondem.

Ao mesmo tempo necessitávamos ter uma idéia das concepções de arte trazida por esse grupo de artistas com bases conceituais tão diversas e trabalhar coletivamente os caminhos possíveis. Tendo como referência metodológica os círculos de cultura freireanos questões como: onde está a arte em mim? Onde poderia estar a arte na escola pública? E onde arte, educação e saúde se encontram no cotidiano escolar?Constituíram o mote para a problematização que buscou ainda localizar as situações-limite, as imagens de transformação e os potenciais para seu enfrentamento.

A problematização representou para o processo com os facilitadores a possibilidade de refletir sobre suas vivências cotidianas com arte, uma espécie de distanciamento, no dizer brechtiano, em que a reflexão traduz a possibilidade da ação transformadora, como propõe Carneiro (2005, p. 25) ao discorrer sobre as idéias de Freire,

Problematizar é diferente de apresentar respostas prontas para a solução dos problemas. É diferente também de apresentar a realidade como algo já posto, imutável, a qual é preciso se adaptar. Responder questões implica em pensar. Pensar é aproximar-se da realidade e destruir mitos. Pensar coletivamente é diferente de pensar para alguém, ou para um grupo. A ação transformadora da realidade só é possível a partir das descobertas coletivas. É desta forma que se estabelece o diálogo. É assim que estará sendo restituída a palavra que foi roubada do povo oprimido, no decorrer dos séculos. Junto com a palavra, é restituída a cultura, as formas de expressão.

Para os jovens foi um momento de olhar para sua ancestralidade, para o ser brincante que há em si, para pensar a escola além dos muros; uma escola integral, espaço para

discussão e acolhimento cuja potência como educadores pudesse ser reconhecida mediante a vivência com as linguagens da arte. Dessa forma, a reflexão sobre a arte e sua importância como espaço de criação, expressão e produção de saber é referendada pelos atores partícipes das Cirandas nas Escolas.

Na Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa, entretanto, o cirandeiro Ray Lima problematiza:

Apesar do anseio de pensadores, arte-educadores, educadores populares e sociais de incorporar a arte de maneira mais sistemática no trabalho de formação para a cidadania não existe a convicção e a firmeza de outros setores da sociedade, e mesmo no meio educacional, de que esta seja o motor principal de um processo educativo, embora seja aqui compreendida como imprescindível, tanto quanto outros conhecimentos e recursos pedagógicos que contribuem para a formação integral do indivíduo.

A reflexão do cirandeiro naquele momento inicial foi retomada por alguns facilitadores durante o processo, haja vista as dificuldades de articular efetivamente o processo por eles conduzido à proposta pedagógica da escola, funcionando a experiência em algumas escolas, de certa forma, com certa marginalidade à atividade cotidiana.

Um dos momentos mais interessantes dessa caminhada das Cirandas com os artistas da rede de Arte e Cultura em sua interface com as escolas aconteceu durante um dos encontros de avaliação. Naquele momento, pudemos ver a importância de deixar espaço para as incertezas, a improvisação. O cirandeiro Ray Lima fala desse momento na Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa.

Havíamos pensado um momento de interação inicial, mas como os facilitadores não chegaram todos no mesmo momento, já não havia tempo para o que planejamos. Então de forma bem espontânea, fizemos uma provocação sobre o porquê de os artistas quando vão a um encontro formal não ousarem quebrar o gelo, romper com o pré-estabelecido e propor algo diferente ou intervir no processo em questão, no formato das linguagens e práticas de suas artes. Dentro do espaço educativo isso tem um significado muito grande. Se por um lado o educador pode facilitar processos pedagógicos transformadores, criativos, por outro ele também pode estar alimentando processos conservadores, repetindo modelos maquiados como inovadores, revolucionários que servem a uma elite que se mantém no poder há séculos. Feita a provocação, veio aquele silêncio e... em seguida as pessoas começaram a jogar no centro da roda objetos, pertences, alimentos, etc. e a partir deles refletir o que trouxe, deixou de trazer, ofertar...

Essa ocasião ensejou uma produção poética coletiva amparada nos objetos em cena, na verdade, o que cada um representa como simbologia e expressão daquele momento e que aqui transcrevemos em parte:

O homem dependente da caneta que abre portas e janelas para a vida; A chave que transfere para o papel o que estava trancado na mente; A caneta que é chave para abrir a mente (do homem e da mulher que

“das restrições mentais” deste mundo [...] Há também os objetos de tirar som – as chaves Do conhecimento que abre o(s) universo(s) em movimento; As chaves da vida, instrumentos de apitar o movimento vital

De criação, recriação e reinvenção do mundo; As pessoas também são chaves ou não – pessoas chaves, O ator e a atriz chave, o problema chave, a pergunta chave, A palavra, a idéia chave, a escolha chave, o momento chave;

As chaves necessárias para abrir o cofre da vida, portas e janelas do mundo não feito e porvir.

Essa produção é, por sua vez, relida pelo cirandeiro Elias, que a socializa com os facilitadores, gerando novas reflexões com o coletivo dos atores.

A sabedoria abre portas e abre trilhas por onde a vida circula. O conhecimento é como um chaveiro, com muitas chaves, cada chave serve para abrir uma porta.

E cada poeta é lugar de passagem, de entrada e saída. Portas trancadas, portas travadas sugerem segurança,

prevenção e medo, mas sugerem também bloqueios, cativeiros e isolamento. Há sempre um lamento do outro lado da porta,

um desejo de liberdade, um sonho de felicidade, um olhar que sonha com uma réstia de luz [...]

A cada dia, no correr do tempo e da história, novas chaves aparecem, surgem para abrir as portas desse visto mundo e desvendar seus mistérios.

O medo e a alienação desconstroem a chave.

Quantas chaves sem função e quantas portas precisam ser abertas neste mundo são! A chave não é o bastante.

O saber que não circula não abre portas e janelas,

Não desacorrenta a alma, não constrói pontes, não desata os NÓS do EU e não ajuda o EU ser mais.

A formação dos facilitadores, portanto, produz esse diálogo reflexivo em que os diversos sujeitos se constituem, ao mesmo tempo, como educadores e educandos, conscientes de seu inacabamento, mas buscando chaves em sua ação cotidiana que lhes direcionem na possibilidade de ser mais. Assim, como diz Freire (2000), “as pessoas começam a agarrar sua história com as próprias mãos e com isso a educação muda”.

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