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3.1 Primeira Sinfonia – alteridade e transformação: a arte como potência humana

3.1.3 A juventude na roda da Ciranda: sonho e desafio 86

Ao tomarmos esta sinfonia como espaço inicial de reflexão das trilhas percorridas pelas Cirandas da Vida, de certa forma, a referendamos como lugar de onde olhamos o percurso metodológico empreendido. Nele, desde já se vislumbra o dialogismo entre o princípio da comunidade e a esfera institucional – fundamento de uma ideia da gestão que se clarificava a cada passo.

Assim é que, também para as rodas com os jovens, o encontro inicial foi revelador das possibilidades da arte como espaço não de só de criação, mas também de escuta aos atores

juvenis. Nesse processo, deparamos algumas singularidades, decorrentes do próprio perfil dos cirandeiros: contávamos com partícipes de movimentos de juventude (como o Movimento de Meninos e Meninas de Rua) e, também, com partícipes de movimentos que lidam com diversas linguagens da arte em seu cotidiano. Além disso, era marcante a presença de jovens de um grupo artístico local, o Vidança, nas rodas das Cirandas.

As linguagens do teatro, dança e música brotavam como formas singulares do dizer dos jovens, que traziam das ruas suas experiências com arte e iam delineando um percurso que seria a marca das Cirandas nos seus momentos dos diálogos com as juventudes.

Desse modo é que, entre os jovens, a discussão girava e pausava-se em torno da violência sofrida, tanto no ambiente doméstico quanto nos momentos de atividades escolares e no cotidiano da comunidade. Os relatos de cada adolescente refletiram as dificuldades vivenciadas ante a insuficiência prática das políticas de educação, saúde e, principalmente, de oportunidades de trabalho e renda. Diante de uma realidade marcada pela dificuldade de acesso à escola, oportunidades de profissionalização e de lazer, os jovens elaboram suas estratégias de enfrentamento.

As expressões culturais surgiram como opções concretas de resistência e transcendência da realidade. Isto aparece de forma explícita na fala de um jovem:

[...] quase todos os meus amigos estão na penitenciária ou na lama das drogas, eu ainda estou resistindo graças ao trabalho do Vidança.

No geral, os jovens colocam a falta de oportunidades sociais de trabalho, em especial, como o foco central da sua problemática – e a leem como violência; a partir daí essa fala sobre a violência é tocada em seus vários matizes. Nessa história da gente comum se ia reconstituindo o movimento subterrâneo das sociedades e dos grupos sociais juvenis. O como dessa expressividade e dessa escuta adentraremos, ao estudar com detalhe a sinfonia da regional, lugar onde o clamor da juventude se torna revolta e dor.

Para o cirandeiro Jonhson, que se envolveu naquele primeiro encontro, algumas singularidades se apresentavam no que diz respeito à participação da juventude naquele território. Ouçamos o que nos diz acerca dessa questão:

Havia, naquele primeiro encontro, vários jovens: desde o jovem pai e mãe à juventude organizada especialmente em grupos de arte como o Vidança, grupos de quadrilha, grupos de capoeira. O que chamou atenção nas falas daqueles jovens, foi o nível de consciência com relação aos problemas do mangue e o desejo de enfrentamento das situações de adversidades do território, especialmente a moradia. Talvez essa preocupação tenha a ver com o fato de muitos serem pais e mães ainda adolescentes, o que os chama para uma responsabilidade que, a princípio, não seria o esperado nesse momento de vida. Nesse grupo de Vila Velha não se percebia a presença do que

alguns cirandeiros nomeariam, mais depois, de jovens vida loka, embora a presença deles no território já se esboçasse na fala de alguns jovens presentes (grifo nosso).

Dessa fala podemos vislumbrar, desde aqui, como a juventude se posiciona claramente, problematizando o seu lugar social. Parece que, como vamos ver em outros momentos deste trabalho, essa problematização feita pela juventude inclui aspectos subjetivos do estar no mundo e aspectos mais marcadamente preocupados com o mundo da vida comum das pessoas do lugar. Podemos dizer que quase sempre se reduziu o dizer das juventudes a falas mais subjetivadas ou a discussões sobre os determinantes sociais e políticos, sem considerar que, como estamos a ver, estas duas solicitações da vida estão finamente estruturadas.

A escuta nossa, como grupo (dos cirandeiros) depois, em avaliações intragrupo, evidenciou, com amparo especialmente nas falas de Thiago Porto, a necessidade das Cirandas da Vida constituírem estratégias para o trabalho com jovens vida loka (nomeados pelo universo das instituições, quase sempre como “jovens em conflito com a lei”).

3.1.4 Os adultos: retratos de uma história de luta e resistência

Os relatos da ocupação do mangue revelam uma série de outros problemas sociais. A presença de jovens que constituem família muito cedo, e passam a dividir o espaço de moradia com os pais, criam logo a necessidade de ampliar suas residências ou buscar outra forma para garantir o direito de morar... Na base de todos os problemas, na leitura que se fazia, parecia que uma fala em surdina ia evidenciando a dificuldade de trabalho e renda:

- Dizem que liderança é ladra, é corrupta... se nós vamos ao governo pedir algo, não é de graça... é dos nossos impostos.

- Existe uma coisa onde se fica com adolescentes (7 a 13 anos) para que os pais procurem emprego? Nesse projeto, o PETI, os filhos de catadores de lixo, muitos deles não tem o café da manhã...

As situações-limites foram entendidas na discussão como aquilo que dificulta a concretização dos sonhos, desejos e necessidades da população. Também nesse momento a discussão foi desencadeada por perguntas geradoras e, mediante o desvelamento delas, se iniciava a busca por caminhos de superação dessas realidades. Essa busca de compreensão partilhada, no entanto, ia ser aprofundada nas oficinas temáticas, onde se tentava buscar também potencialidades locais de atuação conjuntas.

As falas dos presentes revelavam, então, as dificuldades vividas pela população nesse território; as contradições que permeiam o cotidiano e as microrrelações de poder que se estabeleceram nas diferentes conjunturas.

A diversidade e amplitude das questões apresentadas nas rodas onde se discutiam as situações-limite e nas oficinas temáticas remeteram a ação das Cirandas da Vida à necessidade de participarmos de várias políticas setoriais da SER I, para que pudesse haver esclarecimentos, confrontos, diálogos e, assim, se desse sequência aos enfrentamentos que a população sugeria.

As falas sobre esses momentos – leitura das situações-limite, oficinas temáticas e enfrentamentos – parecem sugerir que havia a ideia de avançar no sentido crítico, confrontando o já pensado no âmbito de cada política e o que foi expresso pelas rodas das Cirandas como possíveis. Ouçamos mais:

- Vila Velha II e III têm como limite duas redes de prostituição... Tinha uma mulher chamada Sargento que vinha pegar as adolescentes no fim de semana.

- Hoje me sinto indignada por não terem respeito pela liderança comunitária... Hoje, nós somos: enfermeira, professora, mãe... Vivemos várias coisas e vários conflitos; o pessoal vai à nossa porta pedir café, lanche... O pessoal daqui... Tudo que se precisa falta aqui...

- Um dos principais problemas que eu pude observar foi a questão da violência, educação, saúde... Pra resolver todos esses problemas tem que ter a questão da economia... Acho que deve se criar setores pra fazer isso...

As situações-limite apontadas, como vamos detalhar, foram expressas pelas crianças e jovens sob a forma de dança, percussão e desenhos, que revelaram, entre tantos outros aspectos, a dificuldade de acesso às políticas públicas, como educação, saúde, moradia, geração de trabalho e renda.

Kuenzer (1992) já assinalava que a necessidade de democratização das relações sociais, bem como a intensificação dos avanços científicos e tecnológicos, constituem condicionantes fundamentais no desenvolvimento da sociedade globalizada em que vivemos, e, assim, produz-se uma crise do princípio educativo, vivido nos moldes em que ele se apoiava. A formação da força de trabalho juvenil, agora, tem de considerar as bases tecnológicas postas pelo capitalismo hoje. Desse modo é que temos de pensar formação juvenil como qualificação para o trabalho – visto de um modo ampliado, em seus aspectos culturais, educacionais, políticos – mas, também, temos de pensar de que forma se vai romper ou lutar contra fortes e complexos mecanismos estruturais que constituem a macroeconomia. As visões de conhecimento que temos tido que temos ajuda os jovens a compreender as complexas relações sociais e os interesses envolvidos no mundo do trabalho?

Alguns estudos mostram que a procura de trabalho está ligada a uma estimulação mais larga para o consumo; temos discutido isso quando vivemos processos educacionais com juventudes? Benoit-Guilbot (1990) sugere que haveriam de se desenvolver nos tempos de

agora capacidades de aprendizagem que incluíssem saberes sobre normas, valores, laços sociais, ética do trabalho em um conjunto temático que ele nomeia de “qualificação social”. Ainda, haveria de se pensar nas questões subjetivas, que buscam no próprio sujeito a base das condições indispensáveis para sua inserção no mundo do trabalho. Assim, como observam Tesser e Luz (2002), “a análise sobre a procura de emprego ou ocupação deve envolver as questões subjetivas e objetivas articuladas com o conjunto de políticas públicas, mormente a econômica, que tanta influência exerce sobre as oportunidades de trabalho e renda”.

Nos relatórios das Cirandas da Vida se vêem explicitadas, como que desenhando o lugar, as falas ouvidas pelos que compõem a Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa:

A comunidade enfrenta cotidianamente o abastecimento precário de água e energia, ausência de coleta de lixo, inexistência de telefones comunitários, precariedade no transporte público, que não chega ao local pela dificuldade de vias de acesso... E há um canal de escoamento de águas pluviais permanentemente contaminado, devido à falta de esgotamento sanitário, ao destino inadequado dos dejetos, à impossibilidade de construção de fossas... como agravantes da problemática de justiça ambienta em Vila Velha.

Era por demais eloquente a ansiedade quanto à possibilidade de remoção da área de risco; e os conflitos entre lideranças e comunidade configuraram a situação-limite escolhida para a primeira oficina temática:

- Por que vão mexer com a área de risco? Houve técnicos da polícia, da UFC... Nós queremos ficar aqui.

- Eu acho que a gente não vai enganar o povo com nada, com saída pra outro lugar. Isso não dá certo. A gente elege os representantes e eles não mudam isso!

As apresentações, contudo, no seu prosseguir, vão descortinando, por seu turno, caminhos e potencialidades para preparação do inédito viável. A experiência nova da arte (porque novos os atores sociais e o contexto dialógico) provocava certo distanciamento importante: retirava-se algo quase invisível do cotidiano e se dava a esse fato moldura estranhada ou, no dizer de Brecht, “certo distanciamento”.

É como Brecht (1957, p. 207) ensinava: “o ato de distanciar significa também conferir celebridade a um acontecimento, é-nos possível assim apresentar certos acontecimentos simples como se fossem célebres”.

Prosseguiu-se: a dança foi, então, sem dúvida, um traço marcante da cultura local, expressa no Vidança, nos grupos de quadrilha, de axé. O esporte trazia as cenas populares de jogos e práticas de carimbas, capoeira, acrobacias na areia, entre outros. Os jovens traziam na dança, na música, os registros juvenis em suas lutas para conquistar novos horizontes, focos

de luz que, segundo diziam, “precisava da gente ter o que fortalece”, para que se pudesse conquistar “um espaço na sociedade” – concluíam.

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