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Arte e Cirandas da Vida: o protagonismo popular na produção e sistematização de

3.3 Terceira Sinfonia: o canto coletivo das escolas na produção da vida

3.3.4 Arte e Cirandas da Vida: o protagonismo popular na produção e sistematização de

Desse percurso coletivo – cirandeiros e artistas-educadores, pelas escolas de Fortaleza – uma formulação importante tem relação direta com a sistematização das experiências e a produção de reflexões protagonizadas por estes últimos com a mediação pedagógica das Cirandas.

A necessidade de sistematizar o vivido foi objeto de reflexão em um dos momentos de avaliação, por compreendermos a singularidade do que estamos produzindo como conhecimento, entendendo também a importância de articular esse conhecimento local àqueles produzidos por outras pessoas em outros lugares ao longo da história humana. Daí a importância da sistematização das experiências que vivenciamos.

Por sistematização entendemos a interpretação crítica da experiência vivida, partindo do seu ordenamento e reconstrução, na perspectiva de compreendê-la em profundidade, apropriar-se e dar conta dela, compartilhando com os outros o aprendido (HOLLIDAY, 2006). Segundo o autor, aprender e compartilhar são dois verbos que não podem ser desligados do exercício de sistematizar.

Outra questão importante tratada por Holliday (2006), relativa à sistematização, diz respeito ao inédito que constitui cada experiência, que é, portanto, irrepetível e inesquecível. São as experiências que nos fazem ampliar horizontes rumo ao inédito viável, mas este nos remete, como disse Freire (2000), à importância e à necessidade de aprender com a experiência do outro como atitude permanente dos que creem não possuir verdades definitivas acabadas. Perceber-nos em nossas experiências vividas como seres inconclusos nos inscrevem em um permanente movimento de busca.

Holliday (2006) também nos chama à atenção para o fato de que toda experiência é histórica e coletiva, mas vivida individualmente pelos sujeitos que a constituem. Nesse sentido, precisamos ir além do seu registro, da perspectiva de guardá-las na memória. Sistematizar é, segundo ele, reconstituir um projeto vivo dotado de intencionalidade e inclui

necessariamente uma análise e interpretação critica para que dela possamos extrair aprendizagens e compartilhá-las, além das fronteiras do território de nossas singularidades.

Nessa perspectiva, ainda recorrendo à Holliday, (2006) e Freire (2000), os diversos atores foram provocados a protagonizar a sistematização das próprias experiências, exercitando a “autoralidade” e nos aproximamos da compreensão dos fenômenos sociais em sua dinâmica viva, como sujeitos-protagonistas implicados nessa edificação histórica. Sobre isso diz Freire (2002, p. 61):

O homem se constrói e chega a ser sujeito na medida em que, integrado em seu contexto, reflete sobre ele e com ele se compromete, tomando consciência de sua historicidade. O homem é desafiado constantemente pela realidade e a cada um desses desafios deve responder de uma maneira original. Não há receitas ou modelos de respostas, mas tantas respostas quantos forem os desafios, sendo igualmente possível encontrar respostas diferentes para um mesmo desafio.

As reflexões produzidas apontam para algumas, questões, como vínculos possíveis entre arte e educação, escola, saúde e comunidade, o papel da arte no processo educativo formal e as linguagens artísticas como espaço coletivo de produção de saberes e tecnologias educacionais e comunicativas.

Dessa forma, o trabalho produzido por uma das facilitadoras para a II Mostra do Sistema Municipal de Saúde Escola de Fortaleza é revelador da potência da música nessa perspectiva.

A linguagem musical permeou todos os momentos da oficina potencializando aos estudantes vivenciarem os vários ritmos musicais, especialmente aqueles que falam de perto á cultura nordestina como baião, maracatu, além de outros significativos para o grupo como o rap e o funk. O processo incluiu a descoberta do corpo como expressão de musicalidades, a composição coletiva de músicas a partir dos ritmos trabalhados, culminando com a produção de instrumentos percussivos e possibilitando a manutenção do grupo enquanto espaço de criação da escola. Também foi trabalhada a dimensão do canto assim como outras questões como a disciplina e auto-confiança. A produção musical trouxe a temática da violência sob a ótica dos estudantes que contribuiu com a problematização da questão na escola e na comunidade. O processo contou com o apoio do conjunto dos trabalhadores e da gestão escolar, apontando para a importância da interação escola-comunidade (ALMEIDA, 2008).

Segundo Holliday (2006), para sistematizar, é imprescindível um projeto com base no qual desencadeamos um processo que valoriza o saber cotidiano, buscando compartilhar e confrontar as interpretações dos diversos sujeitos e identificar as tensões entre o projeto idealizado e o processo vivenciado. Daí a importância de compreender esse processo, não apenas como intercâmbio descritivo ou narrativo das experiências, mas também como movimento de explicitação de seus ensinamentos e de análise e reflexão das mudanças

que se processam e os fatores que as determinam e das opções tomadas. No entendimento de Jara, ao sistematizar uma experiência, contribuímos para engendrar seu sentido e ousamos lançar sobre ela um olhar panorâmico.

Nesse sentido, a reflexão produzida por outro ator desse processo nos permite apreender como a arte constitui diálogos entre o processo pedagógico e as situações-limite.

Na Escola Maria de Lourdes Jereissati, a pactuação inicial ocorreu entre a cirandeira regional, a direção da escola e o facilitador que discutiram critérios de escolha dos estudantes a serem envolvidos. As oficinas, iniciadas com a reconstituição de luta e resistência da escola, apontaram a ausência de espaços de lazer e a violência como situações-limite a serem enfrentadas. A linguagem artística escolhida foi o grafite, trabalhada no sentido da construção de uma história, depois grafitada no muro da escola a ser posteriormente transformada em animação. O processo revelou a potencialidade de crianças e adolescentes da escola em produzir desenhos, conhecer e misturar cores e problematizar a sua realidade, evidenciando a importância da arte nos processos pedagógicos e contribuindo para a promoção da saúde e o protagonismo infanto-juvenil (LIMA, 2008).

O ato de sistematizar implica, portanto, olhar para o projeto político-pedagógico que nos orienta e produzir saberes e tecnologias que nos ajudem a olhar a realidade, ampliando a consciência e nos percebendo potentes para protagonizar processos de transformação da realidade, mudanças nas relações de poder no sentido da emancipação dos atores e atrizes envolvidos. Nessa perspectiva, arte e educação popular se articulam nas reflexões produzidas por outro facilitador que também se incluiu no grupo condutor das Cirandas da Vida após esse percurso:

No momento de reconstituição da história as crianças mapearam o território marcando espaços de morte e de vida com o objetivo de perceber que espaços relacionam com a problemática da violência. Trabalhando o corpo como possibilidade de expressão e criação de personagens, as crianças vêm construindo cenas e diálogos teatrais sobre a escola e seu cotidiano, animados por questões geradoras trazidas pela referência aos círculos de cultura. Outras questões foram tematizadas como a discussão sobre as eleições municipais e o papel dos políticos na superação das situações-limite destacadas. Apesar da riqueza do processo e do interesse da direção da escola, questões tais como horário e espaço físico disponíveis para a oficina geraram dificuldades (NOGUEIRA, 2008).

Ainda perspectivando a produção dos educadores-artistas para reflexionar acerca da sistematização, lembramos desse processo como espaço de percepção de contradições e desafios com base nos quais podem ser traçadas estratégias de superação. É o que se apreende dessa produção também apresentada na Mostra do Sistema Municipal de Saúde Escola:

Um deles diz respeito á própria adesão do conjunto de atores da comunidade escolar que tem gerado dificuldades no acesso e manutenção ao espaço para a realização das oficinas, mobilização e sensibilização dos estudantes para se manterem no processo. A falta de interação com os profissionais de saúde tem sido apontada como outro fator desafiante já que a Ciranda é um projeto do setor saúde. Apesar das

dificuldades o teatro tem se revelado para os que persistem um espaço de criação a partir do qual é possível reler a realidade de forma crítica, percebendo as injustiças sociais e que possibilita pensar caminhos de transformação social (RÉGIA, 2008).

Por fim, uma dimensão fundamental dessa perspectiva de sistematização e que vamos apreender, não apenas em Jara Holliday, mas também em Boaventura Santos, está presente na produção desse facilitador cuja interface com as Cirandas e a Escola está além dessa ação. Falamos da necessidade de caminhar no sentido da democracia participativa; de trabalhar a perspectiva da ecologia de saberes (SANTOS, 2005b), traduzida como o diálogo horizontalizado entre saberes diferentes, partindo da compreensão que vivemos em um planeta multicultural, onde existem diferentes maneiras de formulação dos problemas e de lutar pelas suas soluções.

A comunidade do Barroso II identificou como potência o protagonismo da própria comunidade e dos atores juvenis que a constituem e que, no geral, apesar de serem vistos por muitos como a causa da violência, são em verdade vítimas da falta de acesso a políticas que gerem vida cidadã ao invés de, como dizem, “vida loka”. O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua-MNMMR tem tido uma atuação importante na comunidade e na própria escola, através do grupo Nada Consta. O movimento tem construído no bairro, trilhas de protagonismo juvenil e enfrentamento à violência e à exclusão social com base nos quatro elementos do hip hop: o DJ, o grafite, a dança de rua e o rap. O processo de articulação dessa proposta teve a participação de professores, gestores, estudantes e pais. Os encontros foram iniciados com a reconstituição da história de luta e resistência da escola, contada por esses vários atores e discutindo também a história de vida desses meninos e jovens na perspectiva de trabalhar projetos de vida cidadã (CASTRO et al., 2008).

Essas reflexões são reveladoras da importância da sistematização como espaço de pensamento sobre a experiência e parecem evidenciar que a vivência ensejou a esses atores populares a possibilidade de protagonizar uma produção de conhecimento, exercitando assim a “autoralidade”. Recorrendo mais uma vez a Freire (1977, p. 13),

[...] No processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquele que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isso mesmo, re-inventá-lo; aquele que é capaz de aplicar o aprendido-apreendido a situações existenciais completas.

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