• Nenhum resultado encontrado

3 A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E AS MULHERES COMO

3.2 A Idade Moderna e a Concepção dos Direitos Naturais

Historicamente a idade moderna, tem o seu início estabelecido pelos historiadores franceses, em 1453 quando ocorreu a tomada de Constantinopla pelos

29 As corporações de Ofício eram instituições surgidas com a complexificação da sociedade que se

turcos otomanos e o término com a Revolução Francesa, em 1789; compreendendo o período histórico que vai do século XV ao XVIII, tendo como base a gradativa substituição do modo de produção feudal pelo modo de produção capitalista.

Nesse período é possível presenciar o renascimento do comércio, as descobertas marítimas, a difusão de alguns inventos que impulsionaram o progresso técnico e os avanços da ciência tais como: a bússola, que permitia à orientação dos navegadores em alto-mar – consequentemente o encontro de povos- a pólvora que mais tarde revolucionou a arte da guerra e a imprensa que possibilitou a difusão das descobertas e das informações e do conhecimento. Assim, a vida urbana tem início, aumenta a população das cidades, abrem-se estradas, modificando toda a paisagem e surge uma nova classe social, que reunia banqueiros, artesãos, camponeses, mercadores aparecendo com o nome de burguesia. O dinheiro adquiriu valor e o comércio superou a terra, fonte de prestígio e poder na sociedade medieval.

Ao surgimento e fortalecimento de uma nova classe social – a burguesia – conforme Gonçalves & Wyse (1997) corresponde o desenvolvimento de uma nova ordem de valores, que passa a nortear as relações entre os homens. Os interesses dessa nova classe, dependentes do desenvolvimento da produção e da expansão do comércio, exigiam mão-de-obra livre e dedicação ao trabalho, capazes de aumentar a produtividade e de contribuir para a prosperidade dos negócios. A nova classe em ascensão apresenta-se para a sociedade tendo como características as virtudes da laborosidade, honradez, amor à pátria e à liberdade, em contraposição aos vícios da aristocracia – desprezo ao trabalho, ociosidade, libertinagem.

Dessa forma, a sociedade moderna declara o trabalho como uma expressão de liberdade, identificando aquele, tanto com o progresso econômico quanto com a satisfação das necessidades psicológicas da humanidade. Porém, em paralelo, a modernidade também afirma que a igualdade e a liberdade são condições próprias da natureza humana. Evidenciando assim a contradição na qual se fundamenta esse tipo de sociabilidade, tendo em vista que a concepção do direito é enxergada à luz da teoria liberal, que assim busca justificar a sua prática social, a organização econômica e a forma de organização desta sociabilidade.

Nesse sentido, os direitos em geral, na modernidade, são bandeiras de lutas elaboradas quase sempre após uma época de conflitos.

Um desses documentos foi organizado pelos ingleses após a Revolução Gloriosa de 1689 intitulado Lei dos Direitos, tal documento ainda não tratava

especificamente dos direitos humanos fundamentais, mas estabelecia algumas ideias fundamentais na relação entre o cidadão e o governo. São elas:

Art. 1- O pretendido direito de suspender as leis pela autoridade real sem o consentimento do Parlamento é contrário às leis. (...).

Art. 3 – O imposto em dinheiro para uso da Coroa, sob pretexto de prerrogativas reais, sem que haja concordância por parte do Parlamento, é contrário às leis. (...).

Art. 5- É um direito dos súditos apresentar petições ao rei, todo aprisionamento e toda perseguição por esse motivo são contrários às leis. (...).

Art. 7- As eleições dos deputados para o Parlamento serão livres. (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS, INGLATERRA,1689).

Desta feita, a Inglaterra constituiu-se, nessa época, como sendo o berço do pensamento democrático moderno. No entanto, será na França que os ideais sobre os direitos humanos e a democracia irão florescer, a partir do movimento intelectual iluminista, que em seus fundamentos condenava o absolutismo, a intolerância religiosa e as desigualdades.

Os iluministas não aceitavam que o poder do governante vinha de Deus; defendiam um Estado laico e por conseguinte a liberdade religiosa e propunham uma sociedade baseada nas ideias de Igualdade, Liberdade e Fraternidade. O ideal iluminista portanto, foi expresso no lema: Liberdade, Igualdade e Fraternidade, cuja filosofia alicerçou uma nova visão do mundo, da pessoa humana e da sociedade, opondo-se ao poder absolutista e a sociedade feudal.

Neste ínterim, a burguesia revolucionária encontrou um terreno fértil para instaurar uma nova estrutura econômica, baseada na sociedade de mercado e na circulação de mercadorias, institucionalizando, portanto, as relações contratuais como fundamento da vida em sociedade; o que atribuiu o reconhecimento da plena autonomia e liberdade de vontade aos indivíduos. O que conforme Simões (2008, p.68), culminou mais tarde, com as grandes conquistas da Revolução Francesa pelos direitos dos cidadãos, não somente no plano individual, como também, modernamente, entre os povos, pela instituição da cidadania, assegurada pelo

regime republicano30 e pelas monarquias constitucionais.

Referendaremos agora os representantes da doutrina jurídica jusnaturalista31 e seus precursores os filósofos modernos: Hobbes (o princípio do Estado), Locke (o princípio do mercado) e Rousseau (o princípio da comunidade) que já no século XVII, conceituaram os direitos humanos como sendo produtos da civilização humana, nesse sentido evidenciaram: o direito a vida, a defesa do direito à propriedade e o direito a liberdade.

A doutrina jusnaturalista, conhecida como a Escola do direito natural, defende a existência de direitos pertencentes essencialmente ao homem, que são inerentes à natureza ou seja, que ele goza pelo simples fato de ser homem. Para essa doutrina, todos os homens são por natureza livres e têm certos direitos inatos de que não podem ser despojados quando entram em sociedade. Foi essa corrente de pensamento que acabou por inspirar o atual sistema internacional de proteção dos direitos do homem. A evolução dessas correntes veio a dar frutos pela primeira vez na Inglaterra, como já assinalamos e, posteriormente, nos Estados Unidos e na França.

A luta pelo reconhecimento dos direitos não é recente. Há longo tempo o homem se dedica a reivindicá-los. O direito não se faz sem lutas, as quais assumem diferentes formas, tal como a denúncia, o debate, o protesto, a resistência. Em consequência, o direito vai sendo construído em determinado contexto social fruto das transformações da sociedade, podendo significar não só avanços, mas retrocessos.

A luz desse entendimento e das formulações dos jusnaturalistas no século XVIII surgiram as primeiras declarações de direitos documentadas que fizeram a enumeração dos direitos humanos fundamentais que todos os governos deveriam respeitar. O primeiro documento desse tipo foi a Declaração de Direitos do Estado da Virgínia, na América do Norte (1776). Porém, a que mais influenciou o mundo moderno foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Nacional Francesa em 1789, que consagrou, também, o direito à

30

Regime Republicano é uma forma de governo na qual um representante, normalmente chamado presidente, é escolhido pelo povo para ser o chefe de país, podendo ou não acumular o poder executivo. A forma de eleição é geralmente realizada por voto livre e secreto.

31

O jusnaturalismo é uma doutrina que se fundamenta nos conceitos de direitos inatos, estado de natureza e contrato social, reivindicando respeito por parte da autoridade política aos direitos inerentes ao homem e ao contratualismo ao defender que o fundamento do poder político reside no contrato, que assinala o fim do estado natural e o início do estado social (MEDEIROS, 2003).

propriedade, à segurança e à liberdade. Tais declarações marcam profundamente a mudança da centralidade das leis que agora passam a centrar-se no ser humano.

Para melhor apreendermos a inovação trazida pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, faz-se necessário a seguinte reflexão: os direitos do homem correspondem ao homem enquanto um ser genérico e o direito do cidadão diz respeito ao indivíduo enquanto ser sócio-político inserido em uma dada sociedade que pressupõe a existência do Estado e da sociedade civil. Assim:

(...) direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos, (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta (CANOTILHO, 2000, p.387).

Nesse sentido e em conformidade com Bobbio (1992, p.32), “Os direitos do homem são direitos históricos, que emergem gradualmente das lutas que o homem trava por sua própria emancipação e das transformações das condições de vida que essas lutas produzem”.

E é considerando as novas lutas e emancipação em alguns aspectos, que surge um novo ordenamento político intitulado como Estado Moderno: ordenamento político surgido na Europa a partir do século XIII, como forma de organização do poder diferenciando-se, devido à descentralização do poder no âmbito das relações políticas. Tal organização estatal tem como características principais: a descentralização do poder, do monopólio da força legítima; a burocratização; a secularização; a territorialidade; a racionalização e a impessoalidade.

Cabe-nos ressaltar que nesse período, o projeto iluminista serviu de base para a geração dos direitos humanos, precisamente nos séculos XVIII a XIX (tendo os direitos civis e políticos, como sua primeira dimensão32), desconsiderando a distância existente entre as classes e admitindo o Estado como um mal necessário, capaz de garantir as liberdades individuais. Nessa perspectiva os direitos civis são

32

A expressão dimensão dos direitos é aqui utilizada em conformidade com Bonavides (2006), que compreende esse processo como sendo cumulativo de valores que em seu conjunto, se constituem e se complementam em seu significado jurídico.

exercidos pelos homens, individualmente, e têm como princípio opor-se à presença da intermediação do Estado para seu exercício, pois é o homem, fundado na ideia da liberdade, que deve ser o titular dos direitos civis, exercendo-os contra o poder do Estado. Ou, no caso dos direitos políticos, exercê-los na esfera de intervenção do Estado.

A partir de então passam a ser considerados direitos civis: o direito à vida, à liberdade de pensamento e fé, o direito de ir e vir, à propriedade privada, à liberdade de imprensa e à igualdade perante a lei, traduzida pelo direito a um processo legal, ao habeas corpus e de petição. A eles somam-se os direitos políticos, que se traduzem pelo direito de votar e ser votado, o direito à associação e à organização, presentes na sociedade a partir do século XIX.

Nunca é demais reforçar que tais direitos não surgiam como benesse. O crescimento do modo de produção capitalista, consolidado pelas Revoluções Industrial e Francesa, constituiu os dois lados da instalação definitiva da sociedade capitalista dos séculos XVIII e XIX e implicou, ao lado dos aspectos positivos no tocante à geração de riquezas e aumento da produtividade, a exploração do trabalho da classe operária. O quadro social, quando dos primórdios da industrialização pode assim ser descrito: salários aviltados, mulheres precocemente envelhecidas pela opressão do monótono e exaustivo trabalho nas fábricas e crianças submersas nas minas de carvão. Algumas lideranças operárias, na ingênua crença de que as máquinas eram responsáveis pelas suas tristes circunstâncias quebravam-nas com seus tamancos, numa tentativa de sabotagem as fábricas. Outros proletários apelavam para a aparentemente radical solução anarquista, que propunha a eliminação de "tudo o que oprime o ser humano": a família, a religião, a propriedade e o Estado33.

Em conseguinte, durante os séculos XIX e XX, a segunda dimensão dos direitos foi formulada como consequência da luta dos trabalhadores. Os referidos direitos foram então intitulados de direitos sociais, fundamentados pela ideia da extensão da igualdade, como contraposição às desigualdades gestadas na sociedade capitalista, tendo em vista que esta época é marcada pelo desenvolvimento e expansão do capitalismo industrial.

Os direitos sociais como o direito à saúde, à previdência social, as

condições especiais de trabalho para as mulheres, o limite de horário de trabalho, a idade mínima das crianças no trabalho e o horário de descanso e lazer, a serem assegurados pelo Estado, passaram então a ser considerados fundamentais. A questão agora ia além da previsão desses direitos nas constituições, visto que não bastava apenas colocar em evidência a insuficiência dos direitos civis e políticos, e sim buscar estratégias para a reversão das desigualdades, chegando à busca de mecanismos que viabilizassem a igualdade real.

Nesse sentido, contemporaneamente entende-se que os direitos fundamentais como aqueles que, na sua ausência, a pessoa humana não conseguiria existir ou não seria capaz de se desenvolver ou participar plenamente da vida em sociedade, visto que viver pressupõe: nascer, alimentar-se, ter saúde, moradia, acesso a educação, lazer, a satisfação de suas necessidades, etc. (DALLARI, 1998)

Vale ressaltar que essas conquistas tornavam-se incomparáveis às perdas surgidas com a desvalorização do trabalho, a partir da crescente separação entre trabalho manual e intelectual, o que impedia que o trabalhador pudesse ter acesso ao conhecimento retirando-lhe a capacidade de autonomia, afastando-lhe do sentimento de solidariedade e da liberdade, fator indispensável para o exercício da cidadania.

Desta feita, a concepção dos direitos sociais efetivou-se pela instituição da social-democracia34 e do Estado de Bem-Estar social, no bojo da primeira grande crise do sistema capitalista e do acirramento da luta de classes. Dessa forma, a República Soviética, de 1917 e a formação de partidos revolucionários (JAGUARIBE, 1975, p.203, apud SIMÕES, 2008), ao lado do reformismo social- democrata e da doutrina social da Igreja, formulada pelo papa Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum, subsidiaram a iniciativa dos Estados por políticas de reconciliação das classes sociais. Sendo assim, a ação estatal positiva manifestou-se, pelo reconhecimento desses direitos da população operária, caracterizada pela concepção liberal, principalmente, com relação ao direito de propriedade, cuja

34 Social-democracia surge no momento em que se dá por terminada a Segunda Guerra Mundial,

quando explicita-se a barbárie nazi-fascista e com a crescente revelação dos crimes "stalinistas". A social democracia enraizou-se na Europa Ocidental como a única maneira de se implantar um "capitalismo de face mais humana". Desde então, o moderado intervencionismo governamental, visando criar uma sociedade equilibrada através de Estados Previdenciários, define o contemporâneo "modo de ser europeu". http://www.10emtudo.com.br. Acesso em 23. Nov.2009.

função social passou a ser atribuída inicialmente nas constituições nacionais do México (1917) e da URSS (1918).

Portanto, a crise do capitalismo de 1929 e as ideias difundidas por John Keynes35, ofereceram o substrato do sistema de autorregulamentação do mercado e a necessidade de intervenção do Estado como agente ativo na regulação econômico-social. E conforme Rosanvalon (1995) enquanto o sujeito de direitos civis e políticos é o homem genérico, o indivíduo abstrato, o requerente dos direitos sociais é o indivíduo situado, definido por suas características econômicas e sociais.

Assim, no século XX, após as duas guerras mundiais, nas quais milhões de pessoas foram mortas por desrespeito aos Direitos Humanos, por parte dos Estados Nacionais, surge a discussão de que os Estados tinham de prestar contas a outras instâncias a respeito da maneira como tratavam os cidadãos, inclusive nos períodos de guerras e ainda estariam obrigados a ter um compromisso efetivo com as necessidades dos seus cidadãos.

Devido a tal situação, os líderes dos países vencedores acharam necessária a criação de uma associação para mostrar ao mundo que qualquer pessoa, de um grupo social ou de um país, não poderia ter negado o direito e o respeito como seres humanos. Assim, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com os registros históricos a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, e nela estão incluídos trinta artigos, nos quais estão os direitos fundamentais e suas exigências. Tal declaração, no entendimento de Bobbio (1992) traz, de certa forma, a solução para o fundamento dos direitos do homem, atribuindo-lhes o caráter universal, uma vez que se constituem enquanto valores subjetivamente acolhidos pelo universo dos homens.

Assim, a concepção dos direitos humanos aos poucos deixa de assentar- se nos estatutos hierárquicos para apresentar-se de forma predominante nas relações contratuais. Assim instaura-se uma nova forma de se estabelecer relações sociais, focadas em direitos fundamentais do ser humano regulando a vida em sociedade. Contudo, ao mesmo tempo em que expande-se o discurso da Igualdade, realiza-se a sociedade da desigualdade e cria-se um abismo entre o discurso formal

35

Atua no campo econômico suscitando propostas que criticam a crença liberal de autorregulação do mercado, revolucionando o pensamento econômico e obrigando um reposicionamento do referencial teórico do liberalismo em relação à participação do Estado na vida dos cidadãos (MEDEIROS, 2003).

e a realidade efetiva.

Tal afirmação só reforça que na sociedade capitalista convive-se com a farsa da democracia, da liberdade, da igualdade. Tais valores, postos como fundamentais mascaram uma realidade desumana e uma democracia que de fato não se concretiza; uma vez que sustenta a liberdade individual, a igualdade de oportunidades entre os homens, mas considerando-os “naturalmente” diferentes em suas capacidades, traz desigualdade social e a dominação de uma classe sobre a outra (SOLCI, 1999. p.60).

3.3 O Capitalismo e a Contradição entre o discurso do Direito e a realização do