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No mundo moderno, o homem tem buscado meios para conhecer e compreender o fenômeno da violência, para que assim possa desenvolver as modalidades para o seu enfrentamento no convívio social.

Desta feita, cabe ressaltar que a incursão temporal aqui realizada retratará as transformações fundamentais que já vinham sendo preparadas desde a Idade Média, do Renascimento e da Idade Moderna, tendo em vista que as várias teorias políticas já apontavam que a busca da legitimidade do poder nos mais variados âmbitos, sejam econômicos, sociais ou religiosos, indicam o jogo efetivo das forças em circunstâncias concretas.

Neste entendimento surge o liberalismo com o desenvolvimento do capitalismo comercial se expandindo após a Revolução Industrial, no século XVII, cujas bases estão na concepção de um Estado laico, na defesa da economia de mercado, defendendo a propriedade privada dos bens de produção e a garantia de funcionamento da economia a partir do princípio do lucro e da livre iniciativa.

11 Injúria: Ocorre quando alguém usando palavras, gestos, carta, e-mails ou outros meios ofende

diretamente outra pessoa; Calúnia: Ocorre quando alguém divulga que uma pessoa cometeu um crime sem que tenha cometido; Difamação: Ocorre quando alguém divulga algo que ofenda a moral da outra pessoa mesmo que seja verdade (Cartilha da Segurança da Mulher, Natal-RN. Março de 2007).

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- Direitos Humanos aqui concebidos conforme o programa nacional de Direitos Humanos (1996): como normas que asseguram os direitos mais fundamentais aos indivíduos e coletividades e estabelecem obrigações jurídicas concretas aos Estados.

A criação do Estado moderno13, norteado por princípios racionalistas e capitalistas e sob a égide das leis, revelou-se como um importante avanço no controle social, porém, não correspondendo as necessidades de seus súditos nem tão pouco erradicando a violência, pois, o Estado surge como regulador soberano dos conflitos sociais, contudo, desconsidera o poder de resistência da sociedade e, quase sempre, funciona como comitê executivo da burguesia14.

Ainda no século XVIII, propaga-se o liberalismo intitulando-se, como sendo um liberalismo democrático ajustando-se ao que ficou conhecido como o capitalismo de monopólios e convivendo com a instituição das chamadas democracias modernas.

Desta feita, faz-se necessário pontuar algumas das mudanças que ocorridas às portas e no desenrolar do século XX contribuíram decisivamente para o quadro atual de violência.

Fazendo uma retrospectiva destacamos os acontecimentos externos decorrentes das transformações advinda das revoluções Industrial e Francesa que abalaram a economia mundial com reflexos decisivos para as relações sócio- políticas, culturais e trabalhistas vindouras em todo o mundo, introduzindo assim, o triunfo da indústria capitalista. No século XIX, tivemos a exacerbação do contraste entre riqueza e pobreza; a jornada de trabalho entre catorze e dezesseis horas, a exploração da mão-de-obra infantil e feminina; a organização dos trabalhadores Europeus (luta por direitos); a criação dos sistemas de proteção social na Alemanha e outros países, iniciando, posteriormente, a adoção do modelo Keynesiano pelos países capitalistas. Tal modelo baseava-se na necessidade do Estado ampliar suas ações no campo das políticas sociais, econômicas e trabalhistas com vistas ao “pleno emprego” e ao bem-estar social (Welfare State).

Estes e outros acontecimentos ocorridos no século XX tais como a intensificação do movimento dos trabalhadores, a primeira guerra mundial (1914- 1918); e a segunda guerra mundial (1939-1945); culminam com a coalizão de nações formando blocos capitalistas e socialistas15. Ao mesmo tempo, tem-se o

13Em relação ao Estado Moderno, este será detalhado no capítulo seguinte.

14 É importante assinalar que, mesmo ao se adotar a concepção de Estado ampliado Gramsciano, a

nosso ver, o Estado capitalista, em sua essência, permanece um comitê executivo para gerir interesses burgueses, conforme ressalta Marx (MARX & ENGELS, 1998).

15 Ao mesmo tempo em que o capitalismo nasce e se expande, surge um conjunto de ideias que se

retorno à ideologia liberal com a defesa da liberação do mercado e da necessidade de reformas nos sistemas de proteção social; defendendo a adoção de um Estado Mínimo para o social. Esse retorno do liberalismo no século XX foi denominado neoliberalismo.

Cabe ressaltar que na década de 1980, precisamente em 1988 no Brasil, temos a promulgação da constituição federal, que em seu artigo 194, explicita uma aproximação com o modelo de Welfare State que amplia o acesso a direitos sociais expressando ainda que contraditoriamente, o ideal igualitário e a dimensão distributiva e inclusiva da cidadania16.

No entanto, a adoção mundial do modelo econômico neoliberal nos anos 80 do século XX, caracterizou-se conforme Anderson (1995), como sendo uma reação teórica e política veemente contra o estado intervencionista e de bem-estar, se colocando ainda contra a ampliação das funções reguladoras do Estado na vida social visto como a “terceira via” para o desenvolvimento dos países de capitalismo dependente, caracterizando-se como uma total dependência destes países aos interesses do mercado financeiro. Nesse modelo, toda a economia se movimenta em função da sua “saúde econômica” e os países recebem mais ou menos “investimentos” em conformidade com os índices de risco, que, evidentemente, não considera a vida das pessoas, mas a oportunidade de ampliação do capital e dos seus lucros.

Recapitulando sobre as mudanças que aconteceram mundialmente com a implantação do modelo liberal, podemos perceber que, se de um lado houve o desenvolvimento científico e tecnológico inusitado, por outro não foram resolvidos e dificilmente serão, os grandes problemas sociais oriundos do próprio modelo de produção capitalista que torna o trabalho sem sentido, posto que alienado.

Na concepção do capital, o trabalho é, pois, incorporado como atividade natural de produção para a troca, independente de seu contexto histórico, visto que as relações capitalistas em conformidade com Marx (1987) constituem-se em relações de produção de valores de troca (mercadorias) para a acumulação de capital, através da expropriação da mais-valia, extraída do trabalhador a partir do

socialização dos bens e riquezas produzidas. Em 1917, na Rússia, inicia-se a 1ª experiência Socialista no mundo. A partir daí as nações se dividiram em Capitalistas e Socialistas.

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O termo cidadania aqui trabalhado é o oposto da cidadania liberal que apesar de se caracterizar pela afirmação da liberdade, igualdade, universalidade, pressupõe a propriedade privada, tendo como consequência, as desigualdades sociais e suas expressões políticas e sociais (MENDONÇA, 2007).

valor gerado pelo trabalho, condição da produção capitalista e razão pela qual se provoca a separação entre a força de trabalho e a propriedade dos meios de produção.

Desse modo, se torna impossível tratar da concepção do capital, sem tratar da questão social, visto que, subjacente às suas manifestações concretas, está o processo de acumulação do capital, produzido e reproduzido com a operação da lei do valor, tendo como contraface, conforme Behring e Boschetti (2007) a subsunção do trabalho pelo capital, acrescida da desigualdade social e do crescimento relativo da pauperização. Esta é a expressão das contradições inerentes ao capitalismo que, ao constituir o trabalho vivo como única fonte de valor e, ao mesmo tempo, reduzi-lo progressivamente em decorrência da elevação da composição orgânica do capital- o que implica um predomínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo-, promove a expansão do exército industrial de reserva ou superpopulação relativa em larga escala (NETTO e BRAZ, 2008).

Até aqui esta incursão nos permite perceber as múltiplas expressões da questão social que nos aparece, particularmente nos países capitalistas tais como o Brasil, sob as formas de: má distribuição de renda; falta de acesso a bens e serviços sociais pela maioria da população; analfabetismo; desnutrição; mortalidade infantil; problemas de moradia; desemprego; dentre outros que se constituem visivelmente em tipos de violências na sociedade contemporânea.

Em se tratando de violência alguns estudos apontam no sentido de entendê-la nos marcos da questão social como síntese representativa das relações sociais que são produzidas nas sociedades em dados contextos, relações e estruturas. Nesse aspecto, para Cerqueira Filho (1982, p.21) a questão social diz respeito ao “conjunto de problemas políticos, sociais e econômicos [...] impostos no mundo no curso da constituição da sociedade capitalista”. Nessa visão, a questão social tem suas raízes nas relações que são produzidas e reproduzidas pela sociedade capitalista.

Em complementação ao entendimento da questão social traremos agora a visão de Ianni (1992) que compreende a questão social como sendo uma dimensão importante dos processos e movimento da sociedade nacional que envolve aspectos econômicos, políticos e culturais. Relacionando-se às problemáticas sociais dos negros, dos índios, dos trabalhadores, das mulheres, das “minorias” sociais, raciais, étnicas, religiosas, dos portadores de necessidades

especiais, entre outros. Expressando os múltiplos conflitos, lutas, resistências, denúncias e manifestações de indivíduos, grupos e classes sociais.

Enfim, para esse autor, a questão social diz respeito aos antagonismos e desigualdades produzidos por uma dada sociedade em dado contexto econômico, político, social e cultural. Nessa perspectiva a sociedade é perpassada pela questão social e “conforme a época e o lugar, a questão social mescla aspectos raciais, regionais e culturais, juntamente com os econômicos e políticos” (IANNI, 1992, p.92).

A violência é, pois, expressão da questão social que nas últimas décadas as sociedades modernas vêm enfrentando e que se expressa na esfera da produção e reprodução das relações sociais, econômicas e políticas. O debate sobre o crescimento da violência tem se dado a partir da chamada crise de valores no mundo moderno e vem assumindo proporções maiores por conta, sobretudo, das crises e mudanças da cultura.

Em síntese, a violência no mundo atual é a expressão do modo como o capitalismo global se espraia e se reproduz nas sociedades, produzindo e reproduzindo antagonismos e desigualdades que se expressam em diversas problemáticas sociais, que se traduzem dentre outras coisas em injustiças sociais, preconceitos e discriminações. E essas multiplicidades de formas da violência na contemporaneidade se configuram num processo denominado por Santos (1999) de dilaceramento da cidadania, ou melhor, dizendo, de um dilaceramento de uma almejada cidadania.

Nesse contexto, cabe ressaltar que, a violência física encontra-se entre as principais causas de morte em todo o mundo e, especificamente, no Brasil matando mais que muitas das endemias e pandemias tradicionais. Tomando como exemplo as taxas de violência homicida, em 2004, o Brasil ocupa a quarta posição no ranking internacional, com uma taxa total de 27 homicídios em 1.000.000 (um mil habitantes)17. Nesse ínterim, faz-se necessário considerar que a violência pode dirigir-se a interpessoalidade, ao próprio sujeito ou ainda a coletividade.

Ainda com relação ao nosso país, segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo (2004), uma em cada cinco brasileiras, 19% (dezenove por cento), sofreu algum tipo de violência por parte de algum homem. Esse dado equivale a uma

17 Mapa da violência dos municípios brasileiros (Organização dos Estados Ibero-Americanos para a

média de 6,8 (seis vírgula oito milhões) de mulheres violentadas e, calcula-se que, a cada quinze segundos uma mulher é espancada no país, tendo em vista que 16% (dezesseis por cento) relatam ter sofrido violência física, 2% (dois por cento) sofrido violência psíquica e 1% (um por cento) lembra ter sofrido assédio sexual.

Associado a estes dados tem-se ainda, segundo a Organização Mundial de Saúde, o índice alarmante de violência tendo em vista que quase metade das mulheres assassinadas é morta pelo marido ou namorado ou ex-namorado. Dessa forma, a violência física corresponde aproximadamente a 7% (sete por cento) de causa de todas as mortes de mulheres entre 15 e 44 anos no mundo.

Nesse sentido, no Rio Grande do Norte, a DEAM Zona Sul18 tem em seus registros cartoriais de junho de 2008 a cifra de 8 homicídios apurados e 5 tentativas de homicídio, mas ainda não é um dado concreto das zonas de jurisdição da Delegacia, visto que alguns casos são designados para apuração em outras Delegacias de Polícia.

Esses dados são suficientes para explicitar que a violência contra a mulher está longe de ser um problema específico da vida privada dos casais, passa a se constituir como um fenômeno social de grande alcance.

Portanto, no mundo inteiro são muitas as formas de violência de gênero se apresentando em diversas formas: nas desigualdades, no assédio sexual no trabalho, nas diferenças salariais, nas diferenças de escolaridades, dentre outras que se configuram ainda sob os aspectos de violência física, sexual ou psicológica.

Mediante essas primeiras estatísticas aqui explicitadas, torna-se importante pontuar que a frequência e a generalização pelas quais ocorre a violência fazem com que este fenômeno seja considerado um problema social global e epidêmico19 da sociedade contemporânea. Tal fenômeno, pela sua frequência e generalização no mundo moderno, conforme Zaluar (1994) constitui-se como a

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A DEAM Zona Sul é um órgão da Polícia Civil, subordinada em primeira instância ao secretário de segurança pública do Estado e ao delegado responsável pela administração da Delegacia de Polícia da Grande Natal (DPGRAN). Tem a missão de investigar, apurar e tipificar os delitos, e acolher com dignidade as mulheres vítimas dos crimes de lesão corporal, ameaça, violência psicológica, violência moral, violência patrimonial, contra a liberdade sexual e os demais conforme a Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), por meio do registro de ocorrência e da efetivação dos procedimentos de inquérito policial, medidas protetivas de urgência e termo circunstanciado de ocorrência.

19 Devemos destacar que o termo epidêmico quando utilizado aqui para a questão da violência,

chama a atenção para a existência de diversos discursos que cercam o fenômeno e este, em específico, se refere à violência como sendo uma questão de saúde pública, retratando uma sociedade doente e que exige a intervenção de determinados setores, colocando o problema como se fosse externo a esta forma de sociabilidade (SHILLING, 2004).

negação da dignidade humana.

Portanto, tais problemas necessitam ser analisados e entendidos dentro dessa lógica capitalista que engendra todo um ambiente necessário ao seu desenvolvimento. Nesse sentido, para os países desenvolvidos e menos desenvolvidos, são o lócus privilegiado para transações comerciais, tendo em vista a fácil exploração da mão-de-obra, da matéria prima e da exploração do comércio local. Na raiz desses problemas encontramos a violência da desigualdade social decorrente da injusta repartição das tarefas e dos privilégios que levam a irregular apropriação dos bens produzidos pela sociedade.

Dessa forma, a relação de dependência que é estabelecida entre países na lógica do capitalismo e particularmente do neoliberalismo, se faz necessária para a saída das inevitáveis crises deste tipo de sistema, tais como já acontecia nos séculos anteriores, com a colonização da América, o imperialismo na África e na Ásia, a dívida externa e mais recentemente a implantação das multinacionais nos países não-desenvolvidos.

Ressaltamos que, mesmo nos países em que a implantação do neoliberalismo foi bem sucedida, para o êxito do capital, as seguidas crises desse modelo, em que hora predomina a livre iniciativa, ora se faz necessária a intervenção do Estado, demonstra que a democracia é algo que esta longe de ser alcançada neste tipo de sociabilidade, visto que a livre iniciativa, sempre que deixada a cargo da sua própria lógica, fomenta o agravamento das injustiças sociais, que necessitam da intervenção do Estado, constituindo assim, a contradição desse sistema.

Complementando este entendimento a violência que grassa o cotidiano é síntese de dinâmicas e movimentos variados e complexos. A violência de hoje cada vez mais, “é uma forma de dilaceramento do ser social” (FRAGA, 2002, p.47), sendo expressão de uma sociedade, ao mesmo tempo, civilizada e incivilizada, sociedade que desrespeita o ser humano, como ser genérico e social, numa magnitude sem precedente. É síntese representativa da questão social que assola o mundo e o país é que envolve a todos, mas especialmente os mais pobres, as mulheres, as crianças, a juventude e os idosos, apresentando-se multifacetada e agravando-se nas condições neoliberais que serão agora retratadas.