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A ideia do sentido formador

3.1 FORMAÇÃO: TESSITURAS E SENTIDOS

3.1.3 A ideia do sentido formador

O sentido formador vinculado às bases filosóficas e à auto-eco-organização, realizada por meio da construção de autonomia e dependência a partir da interação com o meio, tem de ser reciprocamente considerado no processo que cada sujeito é capaz de produzir ao longo da vida em sua apropriação de saberes.

Nesta perspectiva, à questão sobre o que vem a ser formação, Severino (2002) responde ser o desenvolvimento das pessoas como “pessoas humanas”. E acrescenta: “Nós nos formamos quando nós nos damos conta do sentido de nossa existência, quando tomamos consciência do que viemos fazer no planeta, do porquê vivemos”. (SEVERINO, 2002, p. 185).

Essa formação exige uma produção própria, em que o lugar central é dado ao ser humano, desafiado a assumir seu processo de aprendizagem, voltado para a dimensão subjetiva, pelo desenvolvimento das sensibilidades do senso estético,

ético e político sobre sua atuação. É nesse contexto de reflexibilidade e diálogo intersubjetivo que entram os três níveis da autoformação (DENOYEL, 1999; FABRE, 1994; PINEAU, 2000), apresentados por Pascal Galvani (2002, p. 7):

• O nível das interações simbólicas corresponde a uma razão sensível. Ele é composto pelas formas, pelas imagens e pelos símbolos com os quais entramos em ressonância, que nos colocam em forma e com os quais produzimos sentido.

• O nível das interações práticas corresponde a uma razão experiencial. Ele é composto pelos gestos, pelos esquemas operatórios físicos e mentais que nos estruturam e também nos permitem interagir com o meio ambiente.

• O nível das interações epistêmicas corresponde a uma razão formal. Ele é composto pelos saberes formais e pelos conceitos que nos estruturam nas trocas com o meio ambiente social e cultural.

Essas três dimensões são sempre inseparáveis e estão presentes nas práticas de autoformação, embora nunca em igualdade. Alternadamente dominam o processo de produção de saberes no decurso de seu desenvolvimento, levando em conta os diferentes níveis de realidade e as interações realizadas no processo.

Os diferentes níveis de realidade são compreendidos por Basarab Nicolescu (1999, p. 48):

Entendemos por “Realidade” (com R maiúsculo) primeiramente aquilo que resiste às nossas experiências, representações, descrições, imagens e mesmo às formulações matemáticas. [...] Por “nível de Realidade” – noção que introduzi pela primeira vez em minha obra Nous, la particule et le monde e depois desenvolvi em vários artigos – designo um conjunto de sistemas que são invariáveis sob certas leis: por exemplo, as entidades quânticas estão subordinadas às leis quânticas, que são radicalmente diferentes das leis do mundo físico. Isto é, dois níveis de Realidade são diferentes quando, ao se passar de um para o outro, há uma quebra nas leis e uma quebra nos conceitos fundamentais (como, por exemplo, a causalidade).

O autor reconhece a existência de diferentes níveis de realidade, regidos por lógicas diversificadas, o que corresponde a cada um desses pontos e é percebido por parte do sujeito, pela influência de sua consciência. Ou seja, o ser humano atua levando em conta a articulação competente desses três polos na relação complexa entre sujeito e objeto, de modo a depreender outra possibilidade além das já apresentadas: a presença de um terceiro incluído, em que as relações coexistem e produzem esse termo, que é diferente dos que lhe deram origem.

Para Pineau (2000), esse entendimento de consciência da percepção da realidade implica uma teoria tripolar de formação, que inclui autoformação, heteroformação e ecoformação, o que corresponde a cada nível explicitado e à compreensão de sua multidimensionalidade e multirreferencialidade.

Esses diferentes níveis de realidade são entendidos, ainda, como distintos graus de complexidade correspondentes. Diferenciar complexidade de complexificação e de completude implica considerar todas as possibilidades de relações concernentes aos níveis de organização complexos, que são imprevisíveis, incertos, incompletos e provocados pela ordem e desordem. Nesse contexto, o papel organizador do imprevisível, do incerto, pode compreender a emergência, isto é, as transformações que podem ocorrer dentro de um sistema complexo, inseparável da ideia de criação de uma forma nova (auto-eco-organização), a todas as possibilidades de relações e níveis de realidade que se dão ao mesmo tempo.

Ainda segundo Pineau (2000), nos processos formativos na dinâmica tripolar nenhum polo deve ser priorizado em detrimento do outro, mas há períodos em que uma dimensão prevalece em decorrência do contexto, do momento vivido e das oportunidades oferecidas a cada um.

Esse movimento é caracterizado pela reflexão do sujeito sobre sua ação, na interação consigo mesmo, com os outros e com a cultura na produção do saber. Busca-se o poder do sujeito, a liberdade sobre sua própria aprendizagem.

Como todo processo complexo, a autoformação requer construção e atividade permanentes, e é vista como “função da evolução humana” (PINEAU, 2000, p. 113). Tal tipo de formação demanda uma constante retomada de pensamentos que, somada à transitoriedade do conhecimento e à sua constante evolução, exige dos sujeitos docentes a apropriação de saberes e conhecimentos como um todo.

Desse modo, torna-se de fundamental importância o pensamento de Morin (1998, p. 187) que diz: “tudo que isola um objeto, destrói sua realidade”. A essa formação deve estar associada a ideia global do processo de desenvolvimento do ser humano, ou seja, o entendimento de um processo com a finalidade de fornecer um conjunto de conhecimentos necessários ao desenvolvimento do sujeito em seus aspectos cognitivo, social, afetivo, político.

Desse modo, o processo de aprendizagem do sujeito tem o sentido de capacitar para autogerir suas potencialidades, numa dinâmica de construção do seu projeto de vida e da profissão em relação ao seu meio, para enfrentar os dilemas

sociais, ou seja, as contradições da sociedade complexa e em constante mudança. Assim, o sujeito deve ser consciente da necessidade de buscar por si próprio sua aprendizagem, e é esse aprendizado construído nas inter-relações que o levará a detectar, avaliar e decidir de que apropriação de saber necessita e onde e como poderá desenvolvê-lo.

Essa perspectiva de formação busca romper com o ideário dos modelos prontos e estanques de conteúdos descontextualizados, os quais desconsideram as multifacetas humanas e a complexidade dos fenômenos.

Nesse exercício de pensamento, encontro o questionamento: se um processo formativo-educacional procura circunscrever-se ao indivíduo na sua autoformação, como as marcas que as sensações internalizadas, reelaboradas subjetivamente e vividas em certo meio cultural e ambiental transformam-se em um saber próprio, autorreferenciado?

Esta reflexão revela a ampliação de sentidos complexos e amplos na maneira de conceber a autoformação: como sensação, como significação e como direção (PINEAU, 2000; GALVANI, 2002), e como imprinting cultural (MORIN, 2007a), entendido como uma marca, uma inscrição imposta à mente humana pela cultura.

Por conseguinte, podemos identificar três principais dimensões do sentido da autoformação, apontadas por Galvani (2002, p. 4):

• a dimensão didática dos saberes formais: o sentido como significação22;

• a dimensão prática dos saberes da ação: o sentido como orientação no agir, sendo aí compreendido o agir intelectual;

• a dimensão simbólica dos saberes existenciais: o sentido como sensibilidade.

Essas três dimensões são indissociáveis e podem ser identificadas a partir da dimensão do sentido que privilegiam (GALVANI, 2002). A dimensão do sentido como orientação (direção) também é vista como movimento que revela os saberes da interação, que são formais, e das experiências, produzidos na interação com o meio ambiente físico e social. Os saberes que permanecem impregnados de sentido e significado apontam para uma direção autoformativa (PINEAU, 2000).

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Segundo Galvani (2002), significação (signos), sensação (vida) e direção (ação) é que levam à construção de si mesmo.

A dimensão do sentido como significação é a busca heteroformativa no processo de autoformação, na qual o sujeito revela o que aprendeu com os outros e as escolhas aparecem como resultado de experiências pessoais, objetivas e subjetivas, em meio a uma teia de relações sociais.

A dimensão do sentido como sensibilidade é desvelada como o olhar de autorreferência, como modo de exploração e validação da ação do sujeito (PINEAU, 2000). É o movimento ecoformativo marcado pelos saberes existenciais e pela construção de uma maneira pessoal e de produção de sentido (PINEAU, 2000) na autoformação do sujeito. Isto se dá nas trocas com o meio ambiente físico e social. Esta produção de sentido é operada na multidimensionalidade humana.

Desse modo, os sentidos como sensação, significado e direção são vistos subliminarmente e armazenados na cultura, o que significa que a primeira impressão do sujeito sobre o objeto é revelada pelas marcas deixadas pelo mundo exterior. A sensação do sujeito sobre o objeto passa pelas emoções do ser humano e fica aquilo que tem um significado; este aponta para uma direção, uma escolha. Nessas dimensões, os fios se tecem na trama da subjetividade e da cultura, inseridos no sujeito, construindo um tecido com base em suas escolhas, que aparecem em suas ações.

Podem-se observar desde as ações humanas mais naturais, biológicas, como o nascimento, o sexo e a morte, até as mais complexas, que se constituem, concomitantemente, em fenômenos impregnados pelas representações e simbologias da cultura. “Nossas atividades biológicas mais elementares, comer, dormir, defecar, acasalar-se, estão estreitamente ligadas a normas, interdições, valores, mitos, ou seja, ao que há de mais estritamente cultural” (MORIN, 2007a, p. 53). Trata-se do imprinting cultural (MORIN, 2000), que, como já dito, pode ser compreendido como as marcas da cultura, marcas indeléveis e, ao mesmo tempo, a herança genética que passa a fazer parte da constituição do sujeito, de sua individualidade, e com ele permanece continuamente.

O imprinting é “[...], uma marca matricial que inscreve o conformismo a fundo e a normalização que elimina o que poderia contestá-lo” (MORIN, 2000, p. 28, grifo do autor). Isso quer dizer que ele “[...] nos impõe o que se precisa conhecer, como se deve conhecer, o que não se pode conhecer. Comanda, proíbe, traça os rumos, estabelece os limites [...]” (MORIN, 2000, p. 28). Notamos o imprinting na autoformação, como reprodução da cultura, em cada sujeito, por intermédio da

cultura familiar e, posteriormente, da cultura social; em concepções, paradigmas e na disseminação das ideias. Desde o nascimento, essa marca faz parte da constituição do sujeito, e com ela o espírito humano se envolve e é envolvido, influencia e é influenciado, produz e reproduz a cultura e, de maneira complexa, emerge o poder de suas ideias, suas crenças e referências. Assim, mostra Morin (1997a, p. 43): “[...] sem minha cultura das ruas, não teria podido desenvolver minha cultura. Sem minhas experiências de vida, não teria podido alimentar minha cultura”.

O imprinting cultural é uma força formadora no desenvolvimento complexo do sujeito. Alimenta a singularidade, que se afirma por meio das ideias, das influências no pensamento e na visão de mundo e na apropriação das liberdades existenciais, e age igualmente em outra direção, quando “impede de aprender e de conhecer fora dos seus imperativos e das suas normas, havendo, então, antagonismo entre o espírito autônomo e sua cultura” (MORIN, 2007a, p. 36).

Desse modo, para Morin, a cultura passa a fazer parte do sujeito e vice-versa; não imprime apenas suas marcas, mas traz também a consignação de como deve o sujeito organizar, conceber, lidar com o mundo ao seu redor e com os demais seres humanos, e também como fazer o rompimento com os determinismos impostos.

[...] o todo está na parte que está no todo [...] e a sociedade, enquanto todo, está presente na nossa mente via a cultura que nos formou e informou. [...] o mundo está na nossa mente, a qual está no nosso “mundo”. Nosso cérebro-mente produz o mundo que produziu o cérebro-mente. Nós produzimos a sociedade que nos produz. [...] O campo do conhecimento não é mais o campo do objeto puro, mas o do objeto visto, percebido, coproduzido por nós, observadores- conceptores. O mundo que conhecemos, sem nós, não é mundo, conosco é mundo. [...] O conhecimento não pode ser o reflexo do mundo, é um diálogo em devir entre nós e o universo. (MORIN, 1999c, p. 223)

Uma nova concepção de conhecimento/formação requer outro desafio ao processo, uma ampliação do processo de autogerir. Para isso, há sempre espaços de autonomia: “há multiplicação das brechas e rupturas no interior das determinações culturais, possibilidade de ligar a reflexão com o confronto, possibilidade de expressão de uma ideia, mesmo desviante” (MORIN, 2008b, p. 27).

Nesse contexto, destaca-se a atribuição, ao sujeito, de um papel central em seu processo de aprendizagem: ele se torna autor da produção de si próprio pela autoformação. Assim, torna-se mister provocar nesse sujeito a descoberta de sua condição humana e seu desenvolvimento ao longo do tempo.