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A trindade humana e a autoformação

2.1 TECENDO A NOÇÃO DE SUJEITO

2.1.2 A trindade humana e a autoformação

A autoformação oscila entre esses três pontos ao longo do percurso de aprendizagem do sujeito, pois a dimensão do indivíduo não deixa nunca de se relacionar com a espécie e com a sociedade, carregando em si a relação direta com

a realidade na qual está inserido, ao representar isso em seus níveis de consciência e ao trazer em si pré-conceitos na observação de sua própria existencialidade.

Provisoriamente, pode-se considerar que os aspectos humanos e existenciais abordados por Morin fazem parte da autoformação do educador, quando o autor deixa transparecer, em seus textos, evidências de que a vida, as redes de interações, a complexidade, as dimensões indivíduo/espécie/sociedade e indivíduo/sujeito são partes do ser integral.

Petraglia (2008b, p. 33) aponta as vicissitudes do sujeito “que ora acredita, ora não, no que é visível e no que é invisível. Ser complexo é poder oscilar entre tudo e nada; entre o todo e o fragmento; entre ordem e desordem; entre o pulsar da vida e a paradoxal estranheza diante da morte”. E, desse modo, oscilar entre uma maneira de fazer e outra de entender indica a ideia de algo que não pode jamais ser, integralmente.

Mas, o sujeito é também indivíduo:

[...] é produto de um ciclo de reprodução, mas este produto é, ele próprio, reprodutor em seu ciclo [...]. Assim também, quando se considera o fenômeno social, são as interações entre os indivíduos que produzem a sociedade, com sua cultura, suas normas, e esta retroage sobre os indivíduos humanos e os produz enquanto indivíduos sociais dotados de uma cultura (MORIN, 2007a, p. 119).

A noção de sujeito surge imbricada à de indivíduo. Isso passa pela ideia que o sujeito vai adquirindo de si mesmo, o indivíduo, a parte da sociedade e espécie. E implica conceber o sujeito como uma comunidade composta de indivíduos que vivem seus processos sociais emancipatórios, em razão das relações estabelecidas como consequência da compreensão do eu de cada um.

Para a compreensão do problema da presente pesquisa é relevante a noção de sujeito, na medida em que o sentido de sua autonomia parece sinalizar uma auto- organização, que ocorre quando ele se relaciona com outros e com o mundo. Essa relação do ser com o meio ambiente o impacta e possibilita transformar os processos de organização de sua formação para dar sentido à vida.

Segundo Morin (2005a), o ser humano é autônomo em suas potencialidades cognitivas e o meio social está em seu interior; por isso,

[...] ao mesmo tempo em que o sistema auto-organizador se destaca do meio e se distingue dele, pela sua autonomia e individualidade, liga-se tanto mais a ele pelo crescimento da abertura e da troca que

acompanham qualquer processo de complexidade: ele é auto-eco- organizador (MORIN, 2005a, p. 33).

Assim, em situações complexas, em que as escolhas parecem emergir, o sujeito desenvolve estratégias auto-organizadoras para auxiliarem na compreensão de si e do mundo. Esse processo, que envolve a liberdade de escolher e tomar decisões, é tratado por Morin como algo que nos distingue como seres humanos e que nos permite formar nossa consciência. Assegura Morin (1999c, p. 326): “Quanto a nós, humanos, dotados de consciência, de linguagem e de cultura, somos indivíduos-sujeitos computantes/cogitantes capazes de decisão, de escolha, de estratégia, de liberdade, de invenção, de criação [...]”.

De acordo com o autor, a consciência aparece no mundo com o papel de inspirar a capacidade de autorreflexão do sujeito. Ele se coloca no centro do mundo e age como ser único, para si mesmo.

Essa capacidade reflexiva permite ao sujeito agir ao mesmo tempo sobre si e sobre o meio ambiente e sociocultural que o formam. Ele auto-eco-organiza reflexivamente a si mesmo, à própria experiência de sua ação e do seu conhecer, implicando, aí, a possibilidade de se conhecer e até da tomada de consciência e retroação sobre as influências indissociáveis que tem com os outros e com o ambiente. Essa dinâmica distingue o ser humano de outros sistemas abertos9 e organismos vivos e o constitui como sujeito.

Para Petraglia (2008a, p. 71):

Associada à ideia de morte, a consciência surge no mundo inspirando inclusive a autorreflexão. O sujeito é único para si mesmo e age como centro de referência. Sua autotranscendência, que lhe permite ir além de si mesmo e questionar-se, determina seus princípios de lógica e ética, fazendo-o agir considerando sua afetividade e suas verdades.

O que importa nessa referência é o fato de como o sujeito é capaz de transformar-se continuamente, de auto-organizar-se e de estabelecer relações com o outro. Nesse processo ele se supera, toma consciência do mundo e do ser inacabado que é e se propõe a uma autorreflexão, interferindo e modificando seu meio numa auto-eco-organização, com base em sua dimensão ética. Em outras palavras, é fazer-se consciente da complexidade que distingue a sua individualidade

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Segundo Morin (1999c, p. 282), “um sistema aberto é um sistema que pode alimentar sua autonomia, mas mediante a dependência em relação ao meio externo”.

e a singularidade dos outros seres de seu meio, como também da necessidade de organizar suas ideias, suas ações refletidas em escolhas, percepções, valores e ideais a serviço da humanidade.

Outra ideia apresentada por Morin (2005a, p. 78) é a diferenciação entre as concepções de indivíduo e sujeito:“[...] há algo mais do que a singularidade ou que a diferença de indivíduo para indivíduo, é o facto que cada indivíduo é um sujeito”. Se o indivíduo singulariza, em suas ações, a universalidade da sociedade e da espécie, é possível ser sujeito quando lê uma comunidade por meio de uma característica, conhece o social partindo da especificidade irredutível e comunica-se com a vida pessoal. Decorrem daí reflexões conscientes e subjetivas a favor de ações solidárias10.

Por conseguinte, sujeito e indivíduo já não se encontram em face um do outro, mas em total interpenetração. Objetivamente, a condição de um indivíduo de uma espécie está sujeita às circunstâncias herdadas, mas a do sujeito não está determinada, pois depende sempre das emergências11 vividas.

As emergências, segundo Morin, se dão na dimensão computacional, a qual existe em função da capacidade efetiva de resolver problemas e realiza “o que bem indica a origem latina de computare: analisar em conjunto, com-parar, con-frontar, com-preender” (MORIN, 2008b, p. 47) Com efeito, “a computação viva deve incessantemente resolver os problemas do viver que são os do sobreviver” (MORIN, 2008a, p. 49). De acordo com Morin (2008b, p. 51-52),

Computação viva e auto-organização viva estão fundamentalmente ligadas. A originalidade da computação viva é ao mesmo tempo a originalidade da auto-organização viva. Além disso, as categorias claras e distintas que aplicamos ao universo das máquinas artificiais deixam de ser pertinentes face às máquinas vivas. Assim, as noções de computador, de máquina e de ser são confundidas. A bactéria é ao mesmo tempo um ser, uma máquina, um computador. O       

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A ação que Morin propõe ajuda-nos a entender que somente com uma postura ética voltada para a solidariedade entre povos, nações e espécie é que se vai conseguir intervir num destino comum para a comunidade terrena, em contraposição à ideia de um destino individual. Uma ação solidária que nos ligue a uma identidade compartilhada para um futuro comum, incerto, mas que se delineia no espaço de nossa humanidade e que emergirá como resultado da ecologia de nossas ações. 11

“As emergências são propriedades ou qualidades oriundas da organização de elementos ou componentes diversos associados num todo, que não podem ser deduzidas a partir das qualidades ou propriedades dos componentes isolados nem reduzidas a esses componentes. As emergências não são epifenômenos nem superestruturas, mas qualidades superiores da complexidade organizadora. Podem retroagir sobre os componentes conferindo-lhes as qualidades do todo.” (MORIN, 2007a, p. 301)

computador não é um aparelho distinto na máquina, e a máquina não é distinta no ser. A dimensão cognitiva da computação está indiferenciada da do ser vivo. A organização da máquina viva é ao mesmo tempo o produto e o produtor da sua organização: a computação produz a organização que produz a computação. A máquina produz o ser que produz a máquina. O ser produz o seu próprio processo e o processo produz o seu próprio ser.

Observa-se a compreensão de que todo ser vivo é um ser computante, pois trata informalmente, por conta própria, por si mesmo e para si mesmo, seus dados internos e externos para produzir seu próprio processo de vida. Isso se dá por meio do caráter auto-organizador e também de uma dimensão cognitiva e reflexiva. Para Morin (2008b, p. 57),

[...] em termos biológicos, a cognição é constitutivamente um processo dependente do sujeito [...] enquanto processo, a cognição é constitutiva da organização do sujeito cognoscente [...] Em outras palavras, a fonte de todo conhecimento encontra-se no cômputo do ser, celular, indissociável da qualidade do ser vivo e do indivíduo- sujeito.

Sobre a dimensão cognitiva, entende-se que é a capacidade de discriminação do que é si e do que não é si, presente nos impulsos de autoconservação, os quais permitem ao indivíduo agir no meio em que vive. Para tanto, o ser vivo percebe o que é fundamental para resolver os problemas que dizem respeito à própria vida. Essa atividade, que é aprendizado, intercruza o conhecimento do meio e o de si mesmo, com vistas à elaboração de estratégias e ações. Desse jeito, não se separa o modo de viver do conhecer.

Não é somente o ser que condiciona o conhecer, mas também o conhecer condiciona o ser; essas duas proposições geram uma a outra num circuito retroativo. Dito de outra maneira: a vida só pode auto-organizar-se com o conhecimento. A vida só é viável e passível de ser vivida com conhecimento. Nascer é conhecer. (MORIN, 2008b, p. 58)

Isso corresponde à observação de que o conhecer e o aprender implicam processos auto-organizadores. A auto-eco-organização do ser humano envolve mecanismos de percepção, interpretação, construção, reflexão, de maneira a interferir e modificar seu meio e, a partir daí, ser capaz de identificar as múltiplas relações existentes na vida. Esse conhecimento é definido por Morin (2008b, p. 58) como:

• tradução em signos/símbolos e em sistemas de signos/símbolos (depois, com os desenvolvimentos cerebrais, em representações, idéias, teorias...);

• construção, ou seja, tradução construtora a partir de princípios/regras (“programas”) que permitem constituir sistemas cognitivos articulando informações/signos/símbolos;

• solução de problemas, a começar pelo problema cognitivo da adequação da construção tradutora à realidade que se trata de conhecer.

O conhecimento pressupõe uma construção dinâmica que emerge da condição reflexiva necessária às intervenções na realidade. É a interpretação seguida de uma reconstrução e, qualquer que seja o saber, ele está sujeito ao erro e a ilusões. Esse ato de abstrair determinada ideia surge no processo de percepção e decodificação do mundo, da informação e dos fenômenos da realidade e é produzido pelo sujeito, consequentemente retroagindo a ele. Trata-se da reconstrução e tradução de uma hipótese por um sujeito contextualizado, numa cultura e num tempo determinados.

Para que ocorra uma melhor compreensão da noção de sujeito, é necessário congregar as ideias apontadas por Morin, que incluem egocentrismo, autorreferência, exclusão, inclusão e incerteza, além de uma profunda e intrínseca relação com a afetividade e a liberdade.