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A IDENTIDADE DA MULHER GESTANTE USUÁRIA DE CRACK E

Cabe ressaltar que, é importante não culpabilizar ou responsabilizar unicamente as famílias pela dependência química de seus membros. Deve-se considerar que a dependência de drogas é um reflexo da sociedade contemporânea, que transparece na vivência dos indivíduos carentes de recursos pessoais internos para lidar com os fatores estressores da vida cotidiana (STEMPLIUK; BURSZTEIN, 1999). Carreteiro e Cardoso (2003) criticam a responsabilização exclusiva da família. Para as autoras o fenômeno da drogadição no Brasil e no mundo é uma questão complexa e que tem suas origens não apenas no núcleo familiar, mas também no social, que exclui e penaliza uma grande parte da nossa população.

Para Kehl (2004) a declaração dos direitos humanos criou um patamar desejável para se existir no mundo e um conceito de homem universal, que visaria expressar o melhor que a modernidade poderia produzir. Porém, para a autora, esse homem da Declaração Universal dos Direitos Humanos está a serviço de uma minoria dominante, e então no Brasil assim

como em muitos outros países, temos os excluídos da condição humana. “Estar vivendo em um estado de necessidade, é estar excluído da condição humana, tal como ela é proclamada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos” (KEHL, 2004, p.34). A mulher gestante usuária de drogas se enquadra dentro deste perfil da exclusão da condição humana, como veremos a seguir.

O pediatra Corradine (1998), em seu artigo, lista uma série de características das gestantes usuárias de drogas. Entre os achados, estão que essas mulheres são de nível sócio- econômico mais baixo, que fazem uso de mais de um tipo de drogas, possuem histórico de infrações como, por exemplo, roubo e prostituição e, geralmente, são provenientes de famílias que também possuem um histórico de abuso de substâncias químicas. Muitas apresentam quadros de transtornos mentais mais graves. O autor afirma ainda que as gestantes usuárias de drogas dificilmente se submetem ao acompanhamento pré-natal, apresentam baixo peso e seus bebês se não abortados, nascem prematuros e com baixo peso.

Em termos mais atuais, essa discussão da mulher usuária de droga não se altera muito da visão de Corradine (1998). Para Moreira, Mitshuhiro e Ribeiro (2012) o uso de cocaína e seus sub-produtos por mulheres durante a gestação está associado a uma série de comportamentos de risco como a falta do uso de preservativos, múltiplos parceiros sexuais e a troca do sexo por dinheiro para a compra da droga ou pela própria pedra do crack.

Para Silva et al. (2013) a gravidez, no caso de mulheres usuárias de drogas, geralmente é descoberta tardiamente. Isto aumenta os sentimentos de insegurança da gestante dependente química, e faz com que a mesma tenha dificuldade em se adaptar física e psicologicamente a essa nova situação, influenciando diretamente na falta de acompanhamento pré-natal. Então como pensar na maternidade em um contexto de exclusão e vulnerabilidade como aquela das usuárias de drogas?

Em uma pesquisa com 394 gestantes Kassada et al. (2013) encontraram um percentual de 18,28% de gestantes que faziam abuso de algum tipo de substância durante a gestação, ou seja, uma a cada cinco gestante faz o uso de algum tipo de droga. Dentre essas mulheres, o perfil predominante foi o de mulheres pardas com idade entre 19 e 30 anos, baixa escolaridade e baixa renda familiar. Para os autores muitas mulheres fazem o uso de substâncias lícitas ou ilícitas durante a gestação, entretanto não chegam nem a ser diagnosticadas devido ao sentimento de vergonha, isto quer dizer que, os dados quantitativos

não são totalmente fidedignos à realidade vigente no Brasil. Como já foi mencionado na introdução deste trabalho um terço da população diagnosticada como dependente química, são mulheres em idade reprodutiva (OMS, 2008). Assim, para buscar compreender esta mulher usuária de drogas e sua “invisibilidade” estatística e política, faz-se necessário discutir a situação de exclusão e a questão do gênero na sua construção identitária.

Sawaia (2001) conceitua exclusão como um processo complexo, sócio-histórico, que é vivido por meio dos sentimentos e ações, porém, não é construído de maneira unilateral, ou seja, é um fenômeno dialético, onde a sociedade exclui para incluir, e o sujeito vivencia a subjetividade relativa a essa experiência.

A exclusão é um processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é um processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros. (SAWAIA, 2001, p.9)

Corroborando com as idéias de Sawaia (2001), Faleiros (2006) compreende o processo de exclusão como também não estando dissociado do processo de inclusão. Para o autor a inclusão e a exclusão se estabelecem dentro de uma relação de forças, onde aquele que se encontra excluído acaba por perder seu direito a cidadania, principalmente no que tange a efetividade de direitos, sejam eles políticos, civis e sociais, incluindo a equidade de gênero.

A exclusão é um processo dialético e histórico, decorrente da exploração e da dominação, com vantagens para uns e desvantagens para outros, estruturante da vida das pessoas e coletividades, diversificada, relacional, multidimensional, e com impactos de disparidade, desigualdade, distanciamento, inferiorização, perda de laços sociais, políticos e familiares, com desqualificação, sofrimento, inacessibilidade a serviços, insustentabilidade e insegurança quanto ao futuro, carência e carenciamentos quanto às necessidades, com invisibilidade social, configurando um distanciamento da vida digna, da identidade desejada e da justiça (FALEIROS, 2006, p.4).

Para Gaulejac e Taboada-Leonetti (1994) a exclusão é evidenciada por meio do processo de ruptura social e desinserção, que pode ser iniciado pelos mais diversos eventos. Porém, em situações de grande pobreza, desemprego, privações materiais o peso se torna ainda maior pela rejeição e o menosprezo de que esses sujeitos tornam-se objetos, ou seja, as condições materiais são interpretadas pelo sujeito através do olhar da sociedade e da avaliação que a mesma faz deles. Ao estabelecer a relação entre identidade e processo de exclusão e discriminação social, estes autores afirmam que a identidade está ligada primeiramente ao sistema de normas sociais e ao status que o Estado concede aos seus cidadãos. Castilla e Lorenzo (2012) acreditam que no caso das mães-usuárias a exclusão é tripla, pois além de

dependentes químicas, muitas são pobres e mães que abandonam seus filhos em função da droga.

Erikson (1976) compreende a identidade como um processo que ocorre em todos os níveis do funcionamento mental, sendo que por meio da observação reflexiva, o sujeito julga a si próprio a partir do olhar do outro, olhar esse que também é interpretado como munido de um julgamento. Esse olhar é devolvido ao outro e também é constituído de julgamentos criando assim um movimento dialético. Esse processo é contínuo, sempre muda e evolui e no melhor dos cenários permite a diferenciação. Ampliando esta questão,Pedro (2005) diz que identidade é um processo contínuo no qual o sujeito toma consciência de si mesmo e de sua percepção de lugar histórico-social. O autor concorda com as idéias de Ciampa (1987) de que a identidade é uma construção contínua de constantes mudanças (metamorfoses), que constituem a sociedade e por ela são constituídas torando-se uma questão social e política.

Ampliando a discussão de identidade, Gaulejac (1999) afirma que a identidade se constrói a partir dos eixos do inconsciente, meio social, cultural e político, além do campo individual/familiar. Ou seja, é dentro das relações familiares e sociais inseridas em determinado contexto cultural, econômico e histórico que o sujeito por meio de sua história produz a noção da sua identidade e lugar social.

Ao pensarmos na definição de Kalina (1988) sobre o dependente químico, que é alguém que por meio do uso de drogas busca a alteração da percepção interna de sua realidade social, por meio da alteração pontual ou prolongada da neuroquímica do cérebro, “os adictos procuram os “paraísos artificiais”. Para não morrer, procura a morte, triste paradoxo” (p.15) esse sujeito na realidade está negando também parte de sua identidade pautada neste contexto aversivo.

A partir desta ótica torna-se importante discorrer sobre como se constitui a identidade desta mulher triplamente excluída e em vulnerabilidade social. Gaulejac e Taboada-Leonetti (1994) compreendem que as condições da situação social e materiais são interpretadas pelo sujeito por meio do olhar refletido da sociedade e de sua própria avaliação interna. A pobreza, por exemplo, pode não ser sentida como uma questão de cunho negativo, caso os sujeitos que a vivenciam participem de um grupo cuja identidade tanto grupal quanto individual é preservada. Porém, se há um social que invalida essa situação, e normalmente há, e o sujeito não possui recursos internos para lidar com esse lugar, ele irá recorrer a formas para suportar

a inferiorização, sendo uma delas a negação da realidade comumente feita por meio do uso de drogas.

A dependência química vem então como uma resposta ao olhar social que posiciona o sujeito à margem. É uma via de fuga da realidade quando o individuo não consegue lidar com a situação ou a percepção desse lugar de exclusão, e opta pelo esquecimento do sofrimento, recaindo no uso de substâncias químicas como forma de fuga, tal comportamento faz, muitas vezes, com que o sujeito entre cada vez mais fundo na condição de isolamento e exclusão social (GAULEJAC; TABOADA-LEONETTI, 1994).

O movimento dialético de construção identitária individual e social é nomeado por Barus-Michel (2004) como Intersubjetividade, que se apresenta como um nível da realidade que transcende o intra-subjetivo do sujeito individual e cria uma subjetividade compartilhada que constituem os olhares sociais. Este conceito dialoga com aquele colocado por Kehl (2004) quando a autora diz que:

A degradação do outro degrada a minha dimensão humana. Então, a idéia do espírito fraterno que deve nortear a relação entre os homens é uma idéia que não necessariamente de uma consideração do outro como estranho – também isso é importante – mas do outro como uma dimensão da qual depende minha própria humanidade. (KEHL, 2004, p. 31).

Desta forma a mulher gestante e usuária de drogas vivência tanto situação de exclusão social como tem a sua construção identitária pautada neste lugar. Entretanto, a situação social da mulher não é igual à do homem e por este motivo faz-se importante evocar o conceito de gênero que é diretamente atravessado pelo conceito de intersubjetividade proposto por Barus- Michel (2004). Este conceito é amplamente discutido devido a sua formulação se pautar em contextos históricos o que produzem diferentes olhares para a relação e o lugar que homens e mulheres ocupam no mundo. Para Scott (1989) gênero é um termo utilizado na história política feminista, e tem como objetivo ser um referencial para além da mera divisão de sexos masculino e feminino definindo todo um espectro conceitual que fala de um universo relacional.

Ao tratar do tema gênero, Macedo (2002) traz à luz a questão do universo conceitual relacional, ou seja, essa mulher não deve ser apenas um sinônimo de um gênero, mas sim compreendida dentro das diversas relações que ela estabelece. “Refletir sobre relações de gênero implica realizar uma releitura de todo o nosso entorno” (MACEDO, 2002, p. 58). Isto significa para Swain (2010) compreender que a mulher historicamente sempre participou da

dinâmica social dos grupos minoritários, justificada pela crença de diversas culturas, de que são seres inferiores, mesmo no Brasil, onde segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, as mulheres são quase 4 milhões a mais que os homens (IBGE, 2013). Para Swain (2010) a mulher sempre esteve a serviço de um imaginário masculino patriarcal, onde deve ser subserviente, objeto de prazer erótico, mãe imaculada. Tal lugar é validado pelo discurso naturalizado da diferença sexual, excluindo essa mulher do social e do poder político, criando uma hierarquização, estabelecendo assim uma relação de poder, que convalida o uso da violência para a manutenção deste status quo. Desta forma, a mulher gestante e usuária de drogas vivencia esta experiência de violência de gênero que também irá constituir sua identidade e seu lugar social, triplamente excluída.

Arrais (2005), em seu trabalho, buscou compreender como ainda hoje a maternidade é atravessada por discursos ideológicos dominantes que convencem a mulher da existência de um instinto materno que é de ordem biológica, e que deve existir independente das circunstâncias externas, acabando por “monstrificar” aquela que não cumpra bem a sua função materna. A mulher usuária de droga passa então a participar de uma dinâmica ainda mais perversa, onde, por exemplo, no contexto da rua, mais uma vez se vê a serviço dessa relação de gênero, principalmente ao utilizar de seu corpo como meio para obtenção a droga (Nappo et. Al., 2004) além de encontrar-se inserida em uma realidade de invisibilidade social, compartilhada por aqueles que habitam as ruas (MATTOS; FERREIRA, 2004). Essa mulher gestante usuária de drogas passa a ser a personificação de um monstro que nega seu instinto materno, negando sua humanidade e lesando um incapaz que é o bebê em seu ventre.

Em resumo a vivência da exclusão pela mulher gestante usuária de droga é geradora de uma subjetividade singular, associando a exclusão social, cultural e política, à inclusão no contexto das drogas e às relações de poder que se estabelecem (muitas vezes em um contexto de rua) a partir do gênero, tudo isso encapsulado na invisibilidade social e no alijamento dos seus diferentes direitos.

2.4. AS POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO AO CRACK E OUTRAS DROGAS NO