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A igualdade pela diferença: universalistas e comunitaristas

CAPÍTULO IV Os Desdobramentos da Implantação das Cotas nas

5.2 A igualdade pela diferença: universalistas e comunitaristas

O discurso da diferença, que se afirma através do questionamento da igualdade liberal moderna e de seus limites é discutida por alguns autores pelo que nos trás de novo e por outros pelo risco de experimentarmos políticas que consideram as diferenças entre os indivíduos. Flávio Pierucci (1999) chama atenção aos aspectos conservadores das reivindicações baseadas na diferença que, mesmo sob bandeiras de esquerda, podem fazer ressurgir anseios exatamente opostos aos almejados, e levarem mais às desigualdades e naturalizações de diferenças que ao respeito, tolerância e reconhecimento. A essencialização das diferenças, mesmo sob uma positivação, parece ser a preocupação maior por trás desse debate.

John Rawls e Charles Taylor, no âmbito da filosofia política discutem, sob as perspectivas universalista e comunitarista, respectivamente, a igualdade pela diferença. Rawls tem como desafio formular uma teoria da justiça que represente um avanço em termos igualitários ao que existia à época, ainda que se mantendo dentro da tradição liberal. Escreveu “Uma

Teoria da Justiça” em 1971 num momento em que os Estados Unidos viviam uma série de manifestações e tensões sociais decorrentes do movimento pelos direitos civis e, por sua vez, contribuiu com os debates e políticas que se seguiram, como a ação afirmativa. Charles Taylor, duas décadas depois, traz como questão central a intensa diversidade existente na sociedade canadense e as reivindicações por políticas de reconhecimento de diferentes identidades culturais e étnicas, que podem ser vistas como o desdobramento dos movimentos sociais dos anos 60 e 70. Ambos debatem, a seu modo, a igualdade pela diferença de modo a explicar algumas posições e embates existentes entre essas duas posições.

No presente texto, iremos nos ater a discussão de Charles Taylor que através da visão da igualdade pela diferença, tratada por ele como política de reconhecimento, se afirma por oposição e questionamento a algumas das premissas do universalismo liberal ao qual Rawls se filia, ou seja, para esse autor a distribuição natural ou de posição social não é de certa forma justa ou injusta, pois os que as torna justas ou não é a maneira pela qual as instituições as utilizam (Rawls, 2002). Os questionamentos que se seguem a essa premissa tratam de criticar na teoria liberal especialmente sua suposta neutralidade em termos de concepções de bem-estar e de autonomia individual, além de criar uma sociedade cega às diferenças dos indivíduos.

Taylor utiliza uma linha de reflexão acentuada pelo que se chamou

Culture Studies, que faz a crítica ao etnocentrismo e ao colonialismo

europeus e questiona a possibilidade de falarmos em direitos humanos universais que não sejam eles mesmos a expressão da tradição cultural ocidental. Compreende que o reconhecimento das diferenças culturais valoriza os indivíduos e é condição primordial para se adquirir dignidade humana (Taylor, 1998).

A exigência pelo reconhecimento, segundo Taylor, se faz em dois níveis: na esfera íntima “donde comprendemos que la formación de la

identidad y del yo tiene lugar em um diálogo sostenido y en pugna con los otros significantes” (Taylor, 1998: 59) e na esfera pública “donde la política del reconocimiento igualitário há llegado a desempeñar un papel cada vez mayor” (Taylor, 1998: 59). O autor estabelece uma relação direta com a

formação da identidade e a sua valorização no âmbito público, ou seja, quais características são atribuídas ao indivíduo como ser humano, já que nossa identidade se forma a partir da relação com os outros,

“La tesis es que nuestra identidad se moldea en parte por el reconocimiento o por la falta de este; a menudo, también, por el falso reconocimiento de otros, y así, un individuo o un grupo de personas puede sufrir un verdadero daño, una auténtica deformación si la gente o la sociedad que lo rodean le muestran, como reflejo, um cuadro limitativo, o degradante o depreciable de si mismo” (Taylor, 1998: 43; 44).

A crítica ao liberalismo universalista, destaca seu caráter impeditivo da própria constituição de algumas identidades ao propor que os indivíduos devem se adequar homogeneamente a culturas e valores dominantes. Para Taylor, uma sociedade desse tipo não seria apenas desumana, por suprimir a possibilidade de constituição de uma identidade, mas também seria altamente discriminatória ao vincular imagens depreciativas e inferiores de determinados grupos como as mulheres, os negros e os indígenas (Taylor, 1998).

No Antigo Regime empregava-se o conceito de honra para classificar as pessoas. As hierarquias sociais outorgavam o reconhecimento público aos cidadãos divididos em “ciudadanos de primera clase y de segunda clase” e, portanto, nem todos eram merecedores dos títulos. Taylor atribui ao que chama “del concepto moderno de identidad” o surgimento da política de reconhecimento ou também política da diferença “que se fundamenta en un

potencial universal, a saber el potencial de moldear y definir nuestra propia identidad, como individuos e como cultura” (Taylor, 1998: 65).

Em sociedades cada vez mais abertas e em contato umas com as outras, o desafio em termos de reconhecimento não é apenas que as diferentes culturas possam defender a si próprias e sobreviver, mas que todos atestem seu igual valor e direito de existir e participar politicamente da sociedade. Como importante meio de difusão da cultura, a educação é uma das principais áreas desse debate. Propostas de uma educação multicultural surgem como alternativa ao eurocentrismo e a ação afirmativa, tratada como

“Las medidas de discriminación a la inversa, permiten a las personas

de los grupos antes desfavorecidos obtener uma ventaja competitiva por los empleos o lugares em las universidades. Esta práctica se há justificado aduciendo que la dicriminación histórica creó uma pauta conforme a la cual los menos favorecidos luchan em posición de desventaja. La discriminación a la inversa es defendida como uma medida temporal que gradualmente nivelará el campo de juego y permitirá que las viejas reglas ciegas retornen com todo su vigor, em tal forma que no dicriminen a nadie” (Taylor, 1998:

63).

As análises de Taylor estão focadas na experiência aborígene do Canadá, que em 1972, criou o primeiro Ministério de Estado Multicultural no intuito de promover a diversidade cultural e combater o racismo, e que em 1982 adotou a Carta de Direitos Canadenses, dentro dos marcos liberais. Em Quebec, na região do Canadá que se falava francês, reivindicava-se certa autonomia de governo e capacidade para aprovação de legislação própria. As políticas de reconhecimento das diferenças culturais implantadas no Canadá geraram uma série de objeções do lado inglês, que viam numa sociedade como a do Quebec a violação do modelo liberal na sua organização (Taylor, 1998).

Nos países em que já foram implantadas, as ações afirmativas incorporaram algumas das reivindicações de reconhecimento e diferença e trazem a tona a maneira como tradicionalmente concebemos a idéia de igualdade. No embrionário debate instaurado em nosso país, se comparado a outras experiências internacionais, essas controvérsias também se fazem presentes como veremos através de dois manifestos que chamaram a atenção pública.