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O movimento pelas reparações já!

CAPÍTULO II A Construção das Ações Afirmativas no Brasil

3.2 O movimento pelas reparações já!

O dia 19 de novembro de 1993, em São Paulo, não foi uma data qualquer para a história contemporânea de combate ao racismo. Na véspera do dia nacional da consciência negra daquele ano, dez pessoas resolveram promover um protesto para denunciar a exclusão social da população negra e foram almoçar no Maksoud Plaza,

“Chegando a um dos mais nobres restaurantes da cidade pediram

pratos requintados, conversaram, comeram, beberam fartamente. Ao final, pediram e receberam a conta. Esta como já esperavam era de um valor estratosférico, daí ocorreu algo inédito na história do país: as dez pessoas disseram em alto e bom som ao gerente do estabelecimento que a conta deveria ser creditada na dívida secular que a sociedade brasileira tem com todos os negros brasileiros, logo, não seria paga. O transtorno estava então instalado a polícia e a grande imprensa foram acionados, porém, ao término de tanta polêmica, a conta não foi paga” (Entrevistado A).

Mas afinal a pergunta que se fazia era a seguinte: quem eram aqueles pessoas e o que buscavam com aquele gesto? Todos eram ativistas ou aliados do movimento negro vinculados ao Núcleo de Consciência Negra da USP (NCN-USP),

“Fundado em 1987, o NCN organizado em torno da temática da

questão racial visa, sobretudo a ampliação do espaço acadêmico, como também uma maior influência e ocupação da estrutura de poder da Universidade. Desde sua formação, no que pese os vários obstáculos enfrentados, o NCN-USP tem realizado inúmeras atividades acadêmicas e culturais, consolidando-se como um centro de referência para as questões

que envolvem a negritude e assumindo um papel efetivo de grupo de pressão contra as ações discriminatórias e racistas oriundas da própria USP e da sociedade em geral” (Entrevistado A).

Na ocasião, os componentes do grupo que realizaram o protesto se dividiam entre homens e mulheres,

“No momento, não me recordo com precisão de todas as pessoas

que estavam envolvidas no protesto, mas, eram seis mulheres negras entre as quais Kelly Oliveira e Fernanda Lopes, um homem branco e cinco negros entre os quais Luis Carlos dos Santos, Fernando Conceição e Arnaldo Lopes, todos amigos e militantes da nossa causa negra”

(Entrevistado A).

A partir do relato de nosso entrevistado, é possível observar que o gesto daquela noite de “dar o calote” no restaurante Maksoud Plaza não foi obra do acaso. Previamente planejada, foi uma ação com dupla intenção,

“Produzir um fato político e, principalmente, lançar a campanha

nacional “Reparações Já! Eu Também Quero o Meu”. Ambos os intentos foram alcançados. No dia seguinte, 20 de novembro de 1993, grandes jornais como a Folha de São Paulo, repercutiram o protesto. Da mesma forma a campanha passou a ser conhecida e debatida. Seu slogan Reparações Já! , fazia alusão aos quase 400 anos de cativeiro no Brasil, quando os africanos e seus descendentes escravizados não foram pagos pelo trabalho de construção de toda riqueza material do país”

(Entrevistado A).

Os ativistas que promoveram aquele protesto colocaram em xeque a política racial predominante do movimento negro. Talvez por isso foram taxados de irresponsáveis, personalistas e inconseqüentes,

“Embora sem o apoio da maior parte do movimento negro, eles não

desistiram e levaram a diante o movimento pelas reparações, que reivindicava do Estado brasileiro o pagamento de 102 mil dólares para cada um dos afrodescendentes. Argumentava-se que devido aos crimes e

aos danos caudados pela escravidão, o Estado brasileiro teria uma dívida não só moral, mas também material com todo descendente de escravo. O trabalho não remunerado por quase quatro séculos teria significado uma expropriação do africano e seus descendentes escravizados, os quais precisavam ser compensados para se começar a fazer justiça no país”

(Entrevistado A).

O NCN-USP contribuiu para que o movimento das reparações se expandisse e ganhasse notoriedade pública,

“Adquirindo uma dimensão interestadual, e promovendo uma série

de atividades, como panfletagens, atos públicos, plenárias e seminários. Constituiu-se um comitê executivo, publicou-se um jornal e articulou-se uma aliança com as forças políticas progressistas. O auge do movimento ocorreu em 1995, quando se comemorou o tricentenário da morte do líder Zumbi dos Palmares. Na marcha que reuniu milhares de ativistas negros em Brasília, era possível ver a bandeira do movimento Reparações Já. Na ocasião o então deputado federal Paulo Paim (PT) apresentou o projeto de lei nº 1239, que em um dos seus artigos reivindicava da União a indenização de 102 mil reais para cada descendente de escravo no Brasil: “A União pagará, a título de reparação, a cada um dos descendentes de africano escravizados no Brasil o valor equivalente a R$102.000,00 (cento e dois mil reais)” (Entrevistado A).

Ainda no ano de 1995, uma data importante para o movimento negro, a USP, através de sua Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária organizou uma agenda cobrindo todo aquele ano para rememorar os 300 anos da morte de Zumbi,

“Esse evento busco priorizar não as manifestações de caráter

festivo, mas sim a conscientização e os debates de reflexão e análise em busca de soluções. Uma comissão especial com essa finalidade foi nomeada pelo reitor da universidade e dentro dela um grupo de trabalho incumbido da elaboração das propostas ou pistas de políticas públicas em benefício da população negra, vítima da discriminação racial. Questões

espinhosas como o ingresso de negros na universidade, a introdução das disciplinas de História da África e do Negro Brasileiro no currículo do curso de História foram colocadas com muita força e emoção. Uma cartilha dirigida aos alunos de 1º e 2º graus foi editada. Foram promovidos cursos de difusão em algumas faculdades sobre o racismo e a cultura negra, sem esquecer seminários nacionais e internacionais. (...) A publicação, em julho de 1995, pela Folha de S. Paulo, de uma pesquisa de opinião sobre a existência do preconceito racial anti-negro no Brasil e toda polêmica no mesmo jornal sobre a sexualidade de Zumbi, etc, toda efervescência deve ter mudado algo na cabeça de alguns cidadãos sensíveis” (Munanga,

1996: 89).

Em relação ao movimento pelas reparações, muitos setores do movimento negro, entretanto, continuaram a se opor aquela campanha e, em algumas ocasiões a tratavam com chacota. Diziam que o negro brasileiro não precisava de “migalhas”. Outros falavam que jamais se sujeitariam a receber algum tipo de indenização do Estado brasileiro,

“É interessante notar, que até aquele momento, o setor hegemônico

do movimento negro brasileiro insistia em não se inspirar no movimento pelas reparações, que em escala internacional obtinham conquistas. A exemplo dos judeus, que depois da Segunda Guerra Mundial foram indenizados por conta do nazismo” (Entrevistado A).

Com o isolamento cada vez mais crescente, o movimento pelas reparações foi se esvaziando, perdendo respaldo político e sendo pouco a pouco esquecido no final da década de 1990, contudo,

“Eu entendo que podemos concluir dizendo que depois de mais de

uma década, é preciso considerar a importância do movimento pelas reparações dentro do movimento negro, pois se a proposta que triunfou como eixo da luta desse movimento foi a das cotas, ironicamente, tal proposta foi gestada no bojo do princípio que rege o das reparações”

Em outros termos, o almoço de protesto no Maksoud Plaza foi um marco nas lutas anti-racistas. Independente das divergências que causou o método de contestação, o episódio pressagiou um novo momento do movimento negro, na medida em que desencadeou em São Paulo, e mais tarde, no resto do país, o polêmico debate em torno das políticas de reparação ou como ficaram conhecidas, as ações afirmativas.