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O princípio da igualdade e a ação afirmativa

CAPÍTULO IV Os Desdobramentos da Implantação das Cotas nas

5.1 O princípio da igualdade e a ação afirmativa

As políticas de ações afirmativas, ao incorporarem algumas das reivindicações de reconhecimento e diferença, trazem ao debate um conjunto de questões que desafiam a maneira como tradicionalmente concebemos a idéia de igualdade na nossa sociedade.

A noção de igualdade, como categoria jurídica de primeira grandeza, teve sua emergência como princípio jurídico nos documentos constitucionais após as revoluções do final do século XVIII (Gomes, 2003). As declarações de direito do mundo moderno nasceram a partir das teorias filosóficas nas quais estavam imersos os intelectuais europeus do século XVIII. Caracterizado como Iluminismo, esse período simbolizou o triunfo do racionalismo através de pensadores como John Locke, Voltaire, Diderot, Montesquieu, Kant, Rousseau.

Essa importante corrente sustentou a idéia de que o homem enquanto tal era detentor de direitos naturais,

“Segundo Locke, o verdadeiro estado do homem não é o estado civil, mas o natural, ou seja, o estado de natureza no qual os homens são livres e iguais, sendo o estado civil uma criação artificial, que não tem outra meta além da de permitir a mais ampla explicitação da igualdade e da liberdade naturais” (Bobbio, 1992, 29).

Centrado no indivíduo, o direito natural consagrado pelas declarações modernas foi o direito de liberdade, pensado no sentido de garantir ao

indivíduo, dotado de razão, liberdade em relação ao Estado. A nova ordem igualou todos os homens no momento do seu nascimento e estabeleceu o mérito e o esforço individual como medida para repartição de bens, recursos e mobilidade social.

“A partir das experiências revolucionárias pioneiras dos EUA e da França que se edificou o conceito de igualdade perante a lei, uma construção jurídico-formal segundo a qual a lei, genérica e abstrata, deve ser igual para todos, sem qualquer distinção ou privilégio, devendo o aplicador fazê-la incidir de forma neutra sobre as situações jurídicas concretas e sobre os conflitos interindividuais” (Gomes, 2003: 17; 18).

Concebida para o fim específico de abolir os privilégios, distinções e discriminações baseadas na linhagem e na hierarquização das classes sociais, essa clássica concepção de igualdade jurídica, meramente formal, firmou-se como idéia-chave do constitucionalismo que floresceu no século XIX e prosseguiu sua trajetória por boa parte do século XX.

Por definição,

“O princípio da igualdade perante a lei consistiria na simples criação de um espaço neutro, onde as virtudes e as capacidades dos indivíduos livremente se poderiam desenvolver. Os privilégios, em sentido inverso, representavam nesta perspectiva a criação pelo homem de espaços e de zonas delimitadas, suscetíveis de criarem desigualdades artificiais e nessa medida intoleráveis” (Gomes, 2003: 18).

O princípio da igualdade perante a lei foi tido, durante muito tempo, como a garantia da concretização da liberdade. Para os teóricos da escola liberal, bastaria a simples inclusão da igualdade no rol dos direitos fundamentais para se ter esta como efetivamente assegurada no sistema constitucional.

A experiência e os estudos de direito tem demonstrado que a igualdade jurídica à luz do pensamento liberal não é suficiente para criar oportunidades iguais aos cidadãos. Gomes sustenta que,

“A concepção de uma igualdade puramente formal, assente no princípio geral da igualdade perante a lei, começou a ser questionada,

para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo nível de partida. Em vez de igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições” (Gomes, 2003: 18; 19).

Imperiosa, portanto, seria a adoção de uma concepção de igualdade que levasse em conta em sua operacionalização comportamentos da convivência humana, como é o caso da discriminação racial. Assim, assinala Gomes,

“Concluiu-se, então, que proibir a discriminação não era bastante para se ter a efetividade do princípio da igualdade jurídica. O que naquele modelo se tinha e se tem é tão-somente o princípio da vedação da desigualdade, ou da invalidade do comportamento motivado por preconceito manifesto ou comprovado (ou comprovável), o que não pode ser considerado o mesmo que garantir a igualdade jurídica” (Gomes, 2003: 19).

Da transição da ultrapassada noção de igualdade formal ou estática ao novo conceito de igualdade substancial surge a idéia de igualdade de oportunidades, pautada na necessidade de extinguir ou de pelo menos mitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais, a igualdade substancial recomenda uma noção mais dinâmica de igualdade, de sorte que as situações desiguais sejam tratadas de forma diferente, evitando-se o aprofundamento das desigualdades (Gomes, 2003).

“Dessa nova visão resultou o surgimento, em diversos ordenamentos jurídicos nacionais e na esfera do Direito Internacional dos Direitos Humanos, de políticas sociais de apoio e de promoção de determinados grupos socialmente fragilizados. Vale dizer, da concepção liberal de igualdade que capta o ser humano em sua conformação abstrata, genérica, o Direito passa a percebê-lo e a tratá-lo em sua especificidade, como ser dotado de características singularizantes. O “indivíduo especificado” , portanto, será o alvo dessas novas políticas sociais. A essas políticas sociais, que mais nada são do que tentativas de concretização da igualdade substancial ou material, dá-se a denominação de ação afirmativa” (Gomes, 2003: 20).

No plano internacional, a ação afirmativa foi experimentada como forma de garantir direitos aos grupos que deles estavam historicamente excluídos, como os membros de castas inferiores na Índia, os negros norte- americanos e os imigrantes em países europeus. No Brasil, essa discussão se dá a partir da implantação das cotas para negros e indígenas nas universidades públicas.

A reivindicação da ação afirmativa freqüentemente opõe defensores de uma posição universalista ou liberal àqueles que sustentam uma postura de relativismo cultural, onde o reconhecimento das necessidades particulares dos indivíduos enquanto membros de grupos culturais específicos são considerados imprescindíveis para pensar políticas.

No caldo de discussões que se instauraram no país, assistimos a manifestações públicas que ilustraram e demarcaram esses posicionamentos distintos.

5.2 A igualdade pela diferença: universalistas e