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A proposta das cotas para estudantes negros

governamental para o ensino superior

4.4 A Universidade de Brasília (Unb)

4.4.1 A proposta das cotas para estudantes negros

Para entender o caminho percorrido pela universidade, não só em números, mas do ponto de vista dos atores que acompanharam o processo de implantação das cotas, realizamos visita na UNB no ano de 2007 e fomos recebidos por representantes do EnegreSer – Coletivo Negro no Distrito

Federal e Entorno. Dois dos seus representantes nos contaram um pouco da

história de formação do grupo e da trajetória de aprovação das cotas na universidade,

“O EnegreSer foi criado em 2001como resposta a um ato de violência

policial no Centro Comunitário da Unb, me lembro como se fosse hoje eu e mais uns amigos começamos a nos perguntar quando será que nós negros

deixaremos de ser alvo da polícia. Aquele ato de violência nos incomodou de tal forma que resolvemos nos juntar e criamos o EnegreSer, um espaço apartidário que desenvolve ações que visam pautar a luta negra tanto fora quanto dentro do campus da universidade intervindo nos processos que tocam de perto os interesses da população negra. O Coletivo prima pela valorização da cultura negra e a construção de uma identidade que tem como pilar a valorização de mulheres e homens negros e entre nossas principais lutas está as cotas raciais na Unb, acho que em poucas palavras é isso” (entrevistado B).

A Unb é considerada uma das universidades pioneiras na discussão das ações afirmativas no ensino superior e esse coletivo de estudantes negros desempenhou um papel importante nas fases iniciais do debate,

Na Unb, os debates vêm acontecendo desde 1985, mas ganharam força logo depois da Conferência de Durban. A primeira reunião ainda em 2001teve a presença da representante brasileira nesse encontro na África do Sul, a Edna Roland. A partir daí, movimentos negros, como o EnegreSer e o pessoal do Neab, que é o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da universidade se articularam. Daí em diante, com base nas discussões que todos nós realizamos, no dia 8 de março de 2002, os professores José Jorge Carvalho e Rita Segato, do Departamento de Antropologia da Unb, apresentaram na época o Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial da Unb ao Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão. Ah! já ia me esquecendo, foi em 1999 que esses mesmos professores haviam apresentado o primeiro projeto de cotas após um caso concreto de discriminação na universidade. Depois voltamos nesse fato, bom, a proposta do Plano incluía a reserva de 20% das vagas no vestibular para negros. A gente já sabia, e quando eu digo a gente são os negros e as pessoas favoráveis as cotas, que isso ia esquentar o campus. Bom continuando, mais de um ano depois, no dia 6 de junho de 2003 a adoção da ação afirmativa foi aprovada e me lembro que foram 24 votos favoráveis, um contrário e uma abstenção, o conselho criou uma comissão formada por cinco professores e uma aluna, além de nós do EnegreSer, esse grupo ficou então responsável por estudar a melhor forma

de implementar o sistema. Posso te dizer que houve uma certa disputa pra integrar esse conselho, na época era novidade as ações afirmativas e interessava muitas pessoas. Retomando, ao final de nove meses de estudo da proposta a comissão formulou dois documentos que resumem os mecanismos de aplicação do plano de metas e integração que também foram aprovados pelo Cepe. Um deles é o convênio entre a Unb e a Funai, assinado em 12 de março de 2004. O Convênio previa que os indígenas aprovados em um teste de seleção começariam a estudar na universidade no semestre de 2004. Eu posso te dizer que esses foram os primeiros passos na universidade” (Entrevistado C).

O Plano de Metas para a Integração Étnica, Racial e Social citado pelo nosso entrevistado possui três objetivos fundamentais,

“a) uma cota de 20% das vagas para candidatos negros em todos os cursos de graduação; b) admissão de estudantes indígenas, por meio de cooperação com a Fundação Nacional do Índio (Funai); c) intensificação de atividades de apoio ao sistemas de escolas públicas local” (Mulholland, 2006: 183).

Como relatado por nosso entrevistado o primeiro projeto de cotas na universidade foi apresentado por dois professores do Departamento de Antropologia entre outro fatores, os autores teriam sido motivados a elaborar a proposta depois de uma denúncia de racismo no programa de pós- graduação em Antropologia Social,

“Como eu disse no começo da entrevista houve um caso de

discriminação que impulsionou dois professores a criar o projeto das cotas. Foi em 1998, iniciou-se o que ficou conhecido como “caso Ari” na Unb. Um doutorando negro, homossexual e baiano, da pós-graduação da Antropologia Social, ao que tudo indica, foi discriminado ao cursar uma disciplina obrigatória do programa. O drama do Ari começou no primeiro semestre do ano letivo de 1998, quando, recém-aprovado no programa cursou uma disciplina ministrada por um professor, na época se não me engano era o professor Dr Klaas Woortmann, a disciplina não vou arriscar dizer porque não me lembro qual era. Enfim, no final do semestre o Ari foi sumariamente

três instâncias administrativas da Unb, todas elas indeferiram o recurso. Finalmente, em 19 de maio de 2000, uma quarta instância, o Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão (Cepe) discutiu o caso pela segunda vez e reconheceu que o Ari tinha sido reprovado injustamente e lhes concederam o crédito devido foram 22 votos a favor e 4 contra. Posso dizer por nós acreditamos que havia fortes indícios de crime de racismo, houve quem discordasse mas nós apoiamos o Ari até o fim do caso” (Entrevistado B).

Esse acontecimento relatado por nosso entrevistado deixa claro que os professores citados reagiram ao fato criando em 1999 a primeira versão do projeto de implementação de um sistema de cotas raciais na universidade. No ano de 2002, os mesmos professores apresentaram uma nova versão revisada e ampliada dessa proposta, aprovada no ano de 2003 pelo Conselho Universitário através da Resolução nº 38/2003 que prevê 20% das vagas reservadas para estudantes autodeclarados negros.

A decisão pelo projeto das cotas raciais não se baseou em imperativos legais ou legislações, como pudemos observar, antes, amadureceu no curso do debate em torno das questões relacionadas à discriminação racial e étnica, à oportunidade e a necessidade de implantar ação afirmativa no ensino superior e o papel da universidade pública na promoção da mudança do quadro social no Brasil.

4.4.2 O vestibular 2004

As cotas para estudantes negros foram implantadas no vestibular do segundo semestre de 2004 por meio de adaptações do procedimento tradicional, o qual envolveu um conjunto de mudanças administrativas. Com base nas discussões preliminares, as cotas foram especificadas como reservas a candidatos negros, a partir da escala de autoclassificação do IBGE: preto, pardo, branco, amarelo e indígena.

Os candidatos indicavam suas preferências de curso e era-lhes oferecida a escolha entre o sistema de cotas ou o sistema universal, ou seja, o tradicional,

“Os que escolhiam o sistema de cotas (4.194 de um total de 27.397) eram solicitados a indicar sua cor e o quanto se consideravam negros. Uma fotografia padronizada de cada candidato às cotas foi parte dos procedimentos de sua inscrição” (Unb Notícias, 1: 2004).

No que diz respeito à distribuição das opções de curso dos candidatos do sistema de cotas diferenciava-se ligeiramente daquela dos candidatos fora do sistema, mostrando que,

“Entre as 61 alternativas, houve uma maior concentração nos cursos de ciências humanas e sociais e uma concentração menor em profissões da área da saúde, um resultado observado também em outras universidades. Isso provavelmente reflete as representações que os estudantes negros brasileiros têm de si mesmos e da sociedade na qual vivem e constitui um tópico de pesquisa dentro das nossas avaliações. A demanda média (candidato por vaga) foi de 11 no sistema de cotas e de 15 no sistema universal” (Unb Notícias, 2: 2004).

Em relação à metodologia de seleção adotada pela universidade, cada inscrição no sistema de cotas foi submetida a um processo de triagem inicial designado para limitar a lista final a candidatos que se enquadrassem nos critérios anteriores, usando a fotografia como controle,

“Em outras universidades o método de seleção no sistema de cotas mostrou um alto grau de abuso, ou seja, os chamados “fraudadores raciais” condenados por alguns alunos, principalmente aqueles ligados a movimentos sociais, que se utilizam das cotas para ingressar na universidade, portanto, com base nos fatos que já haviam ocorrido, optamos por associar a autoclassificação com outro método de controle, optamos então pelo uso da fotografia” (Unb Notícias, 3: 2004).

Utilizando essa lógica, a Unb criou uma comissão avaliadora da identidade racial dos candidatos com base em fotografias que revelassem seus traços fenotípicos, ao que se somou posteriormente a uma entrevista. Para além da problemática avaliação da eficácia dessa medida, cabe lembrar as questões éticas que ela suscita. Os nomes dos candidatos que não são considerados negros pela comissão julgadora são divulgados pela

comissão são mantidos em segredo, talvez pelo fato do reconhecimento do caráter problemático de avaliação e julgamento. Além disso, os critérios de identificação racial e o conteúdo das entrevistas também são mantidos em segredo, o que por vezes levanta a questão da sua possível arbitrariedade33.

A comissão que avaliou os candidatos às cotas era composta por, “Representantes do corpo docente, funcionários, estudantes e membros externos. Concluiu-se que 212 (4,7%) candidatos ao sistema de cotas não cumpriam os critérios estabelecidos. Eles podiam, entretanto, apelar contra a decisão da comissão. Trinta e quatro deles o fizeram, apresentando seus argumentos. Todos foram submetidos a entrevistas gravadas. Uma comissão revisou as apelações e readmitiu 21 deles ao sistema de cotas. Os outros 13 foram transferidos para o sistema universal” (Unb Notícias, 3: 2004).

Todos os candidatos prestaram os mesmos exames na mesma data, independentemente do sistema de admissão escolhido. Não houve distinção entre os candidatos, todos os exames foram corrigidos da mesma forma. Notas mínimas para cada exame e para a nota final foram observadas,

“Essas notas mínimas eliminaram 40% dos candidatos do sistema universal e 57% dos candidatos do sistema de cotas. Os candidatos do sistema de cotas foram então classificados para preencher as vagas do sistema e os demais foram transferidos para o sistema universal, no qual competem pelas vagas com os candidatos deste último. Por fim, as vagas do sistema universal foram preenchidas com candidatos de ambos os sistemas, classificados conjuntamente segundo sua nota final. Dessa maneira, os candidatos ao sistema de cotas tinham duas chances de admissão, e as cotas de 20% vieram a definir uma participação mínima, mais do que máxima, dos estudantes negros no processo de admissão” (Unb Notícias, 3: 2004).

Em relação ao quadro geral dos números,

“Os candidatos do sistema de cotas preencheram 378 das 392 vagas a eles destinadas. Sobraram apenas algumas vagas em música e

engenharia civil, por falta de candidatos com um desempenho suficiente nos exames. Essas vagas foram preenchidas por candidatos dos sistema universal. Em 6 dos 61 cursos, estudantes do sistema de cotas teriam sido aprovados independentemente do sistema. Em 15 cursos, nenhum estudante do sistema de cotas teria sido aprovado fora dele. No todo, 60% dos candidatos do sistema de cotas beneficiaram-se; 40% teria sido aprovado sem ele” (Unb Notícias, 3: 2004).

A Unb também se preocupou em levantar os números em relação as diferenças socioeconômicas entre os estudantes aprovados por cada um dos dois sistemas e revelou que,

“A renda familiar mensal dos estudantes do sistema universal era de R$ 5.000,00 ou mais (24% dos casos). Para os estudantes do sistema de cotas, a renda modal ficava na casa dos R$ 750,00 a R$ 1.500,00 (21% dos casos), ou seja, consideravelmente inferior. Enquanto 33% dos estudantes do sistema universal vinham de escolas públicas, esse era o caso para 56% dos estudantes do sistema de cotas” (Unb Notícias, 4: 2004).

No momento da publicação desses dados do vestibular de 2004 estava em curso o processo de admissão para o primeiro semestre de 2005,

“Havia 4.913 candidatos no sistema de cotas e 23.384 no sistema universal, o que mostra um certo grau de estabilidade na demanda. O total de alunos cotistas matriculados em 2005 foi de 949 de um total de 19.636” (Unb Notícias, 3: 2004).

Depois da primeira experiência do vestibular com o processo de admissão das cotas, chegou-se a conclusão de que houve uma grande procura pela inscrição no novo sistema e que era preciso refinar a metodologia de candidatura e seleção dado o alto grau de discordâncias que gerou, mas, no geral, o fato de adotar algum tipo de reserva de vagas para estudantes negros comprova que tem se mostrada acertada essa iniciativa por associar-se às demandas contemporâneas a favor da igualdade de oportunidades.