• Nenhum resultado encontrado

A importância da autoridade para a formação do indivíduo

CAPÍTULO I A AUTORIDADE NA SOCIEDADE MODERNA

1 A TENSÃO ENTRE INDIVÍDUO E SOCIEDADE

1.5 AUTORIDADE E EDUCAÇÃO

1.5.1 A importância da autoridade para a formação do indivíduo

Os autores da teoria crítica da sociedade, com base no pensamento de Freud, reconhecem a autoridade como um elemento essencial na formação do indivíduo. De acordo com Freud (2011), no processo civilizatório, que possibilitou a vida em comunidade, a autoridade foi responsável por reprimir a tendência do homem em tentar satisfazer de forma irrestrita todas as suas necessidades instintuais que colocavam em risco a civilização e o próprio homem. Nesse processo, a autoridade e o amor estavam relacionados.

Segundo Freud (1972), no desenvolvimento da humanidade, Eros foi o elemento responsável pela união de indivíduos isolados em famílias, etnias, povos e nações, uma vez que o pendor à agressão, como disposição de instinto original e autônoma do ser humano, teria sido contido pelo desenvolvimento de laços libidinosos entre os homens. Dessa forma, o reconhecimento da necessidade e das vantagens do trabalho comum, por meio da razão, não seria suficiente para manter os homens unidos, posto que, para o autor, “só o amor atua como fator civilizador, no sentido de ocasionar a modificação do egoísmo em altruísmo” (FREUD, 1972, p. 41). Para Freud (2011), no processo de formação, a definição do que é o bem e o mal não é realizada pelo indivíduo de uma forma “natural” ou pela sensibilidade, mas por uma

influência externa. A submissão do indivíduo a essa influência está relacionada ao desamparo e à dependência que se tem do outro, ao medo da perda do amor. Essa perda significa que, além de deixar de “ser protegido contra perigos diversos, sobretudo expõe-se [o indivíduo] ao perigo de que esse alguém tão poderoso lhe demonstre a superioridade em forma de castigo” (FREUD, 2011, p. 70). Assim, é o medo da autoridade e de perda do amor do outro aquilo que impede os indivíduos de se permitirem realizar o mal.

A autoridade, a princípio, é externa à criança e é representada pela figura do pai. Sendo externa, a criança realiza o mal que lhe parecer agradável se tiver a certeza de que a autoridade não saberá ou não poderá fazer nada contra ela. A formação é esse processo em que a autoridade é internalizada na criança a partir da repressão do complexo de Édipo e do estabelecimento do superego (Freud, 2011). Segundo o autor:

Os pais da criança, e especialmente o pai, eram percebidos como obstáculo a uma realização dos desejos edipianos, de maneira que o ego infantil fortificou-se para a execução da repressão erguendo esse mesmo obstáculo dentro de si próprio. Para realizar isso, tomou emprestado, por assim dizer, força ao pai, e este empréstimo constituiu um ato extraordinariamente momentoso (FREUD, 2007, p. 36).

Dessa maneira, o superego, cuja função é vigiar os atos e intenções do Eu e de julgar, é instituído pela identificação com o pai e assume a função de inibir internamente os instintos, dando continuidade ao rigor da autoridade externa, com a diferença de que, segundo Freud (2011), dele nada se pode esconder. Essa internalização da autoridade mostra-se necessária à integração da criança a uma ordem social estabelecida e, portanto, ao processo de socialização.

Nesse sentido, Horkheimer (2008) afirma que a subordinação a uma autoridade pode ser do interesse do próprio subordinado quando ela se apresenta como uma condição para o desenvolvimento das faculdades humanas. Sendo assim, a submissão da criança a uma boa educação é do próprio interesse dela. Segundo o autor ainda, a educação, como um processo civilizatório milenar, é responsável pelo desenvolvimento de cada ser humano, desde o homem primitivo, e nesse processo não foi possível prescindir da coerção, uma vez que por mais racional que seja o comportamento subjetivo do pai, “sua posição social diante da criança implica que cada medida educativa, por mais racional que ela seja, deve lembrar pão doce ou chicote” (HORKHEIMER, 2008, p. 223).

A concepção da autoridade como mecanismo essencial da ação educativa também foi defendida por Durkheim (2011). Segundo o autor, ao nascer a criança traz apenas a sua natureza de indivíduo, o chamado ser individual, composto de todos os estados mentais e acontecimentos da vida pessoal. Contudo, cada indivíduo também é um ser social, constituído

por um sistema de ideias, sentimentos e hábitos que exprimem o grupo ou diferentes grupos aos quais pertence. Esse ser social não se encontra pronto na constituição primitiva do homem, tampouco resulta de um desenvolvimento espontâneo, mas é o objetivo da educação. Durkheim (2011, p. 53) define educação da seguinte maneira:

A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão maduras para a vida social. Ela tem como objetivo suscitar e desenvolver na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e morais exigidos tantos pelo conjunto da sociedade política quanto pelo meio específico ao qual ela está destinada.

Assim, para o autor, não é possível educarmos nossos filhos da forma que queremos, pois existem costumes aos quais todos são obrigados a se conformar, caso contrário, eles não poderiam viver em meio aos seus contemporâneos. O fato de a sociedade modelar os indivíduos, no entanto, não deve ser entendido como uma insuportável tirania, na medida em que “eles próprios têm interesse na submissão, pois o novo ser que a ação coletiva edifica em cada um de nós através da educação representa o que há de melhor em nós, o que há de propriamente humano em nós” (DURKHEIM, 2011, p. 58). Segundo o autor, para substituir o ser individualista e associal (que a criança é ao nascer) por um ser novo, é necessário que ela consiga domar o seu egoísmo natural e subordinar-se a fins mais elevados por meio de um exercício de forte repressão sobre si mesma. O autocontrole necessário, decorrente da consciência do dever, no entanto, só será aprendido pela criança por meio de seus professores ou pais. Para tal, é necessário que estes personifiquem o dever, pois “é através desta autoridade contida neles que o dever é dever” (DURKHEIM, 2011, p. 71). Essa autoridade moral, como a principal qualidade do educador, conforme o autor, não pode ser entendida como violência ou repressão, pois ela consiste na primazia da moral.

Horkheimer (2008), embora não discorde da ideia apresentada por Durkheim (2011) quanto à responsabilidade da família de, por meio da coerção, formar o indivíduo para vida em sociedade, aponta que “faz diferença se esta coerção representa a reprodução cega das contradições sociais vigentes na relação pai-filho, ou se ela se apresenta no decurso de cada existência individual como relação dominada na sociedade” (HORKHEIMER, 2008, p. 224). Além disso, o autor afirma que a formação do caráter infantil se constitui muito mais pela própria estrutura da família do que pelas intenções e métodos do pai. A concepção de uma formação voltada apenas para a adaptação social, conforme parece sugerir Durkheim (2011), também não é compartilhada por Adorno. Para o autor, embora a autoridade seja necessária ao processo de formação do indivíduo, não é qualquer forma de autoridade exercida sobre a criança que deve ser aceita tampouco se a finalidade do seu exercício se limitar à adaptação a

sociedade tal como ela é. O objetivo da educação, segundo Adorno (1995a), seria educar o indivíduo contra a barbárie. O conceito de barbárie é definido, pelo autor, da seguinte forma:

Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização – e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza (ADORNO, 1995a, p. 155).

A formação, para Adorno (1995b), portanto, deve ser direcionada para a autorreflexão crítica, que desenvolva no indivíduo a capacidade de pensar criticamente sobre si próprio e suas ações, e para o esclarecimento geral, capaz de produzir um clima intelectual, cultural e social que não permita a barbárie ou o retorno e desenvolvimento do fascismo e do totalitarismo. Dessa forma, a educação, para o autor, não significa a modelagem de pessoas a partir do exterior, tampouco a mera transmissão de conhecimentos, mas o desenvolvimento de uma consciência verdadeira que possibilite ao indivíduo superar a heteronomia e a dependência às normas e mandamentos que não são assumidas pela sua própria razão, mas que lhe são impostas.

A conquista da autonomia pelo indivíduo, decorrente da superação da heteronomia, no entanto, não ocorre por meio da ausência da autoridade, mas depende de uma autoridade esclarecida. Segundo Adorno (1995a), sobretudo na primeira infância – momento no qual, de acordo com os conhecimentos da psicologia profunda, se forma o caráter do indivíduo – é necessário o contato da criança com manifestações de uma autoridade esclarecida, ao mesmo tempo em que é indispensável que se dissolva qualquer tipo de autoridade não esclarecida, cuja característica é a reprodução da barbárie. Para Adorno (1995a, p. 167), tal contato é necessário enquanto:

Determinadas manifestações de autoridade, que assumem um outro significado, na medida em que já não são cegas, não se originam do princípio da violência, mas são conscientes e sobretudo, que tenham um momento de transparência inclusive para a própria criança; quando os pais “dão uma palmada” na criança porque ela arranca as asas de uma mosca, trata-se de um momento de autoridade que contribui para a desbarbarização.

Assim, conforme Adorno (1995a), não existe contraposição entre a autonomia e a autoridade, uma vez que a autoridade é condição para a existência de autonomia. Sobre isso, Davis e Luna (1991) afirmam que no processo educativo a “autoridade é condição essencial para a formação tanto da autorregulação (comumente chamada de disciplina) como da própria consciência” (DAVIS; LUNA, 1991, p. 69) do indivíduo. Portanto, para os autores, quando na

educação se abre mão da autoridade, nega-se aos educandos o apoio e o amparo que requerem para se tornarem autônomos. Nesse sentido, Adorno (1995a) aponta ainda que, de acordo com pesquisas empíricas, tais como as realizadas por Else Frenkel-Brunswik, nos EUA, a autonomia não reside no simples protesto contra qualquer tipo de autoridade. Ao contrário, constatou-se que “as crianças chamadas comportadas tornaram-se pessoas autônomas e com opiniões próprias antes das crianças refratárias [...]” (ADORNO, 1995a, p. 177). Nesse processo de formação, a educação formal, realizada na escola, desempenha um papel fundamental uma vez que, de acordo com o autor, “no âmbito do existente somente ela pode apontar para a “desbarbarização” da humanidade, na medida em que se conscientiza disso” (ADORNO, 1995e, p. 117).