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CAPÍTULO I A AUTORIDADE NA SOCIEDADE MODERNA

1 A TENSÃO ENTRE INDIVÍDUO E SOCIEDADE

1.4 AUTORIDADE E LIBERDADE SOB A RACIONALIDADE

A filosofia burguesa, ao considerar o indivíduo como um ser perfeito em si, dependente apenas da sua vontade e razão, dissociado das condições de existência na sociedade, e, portanto, também da natureza, admitiu a possibilidade de realização, mesmo que interior, da sua liberdade por meio da oposição à autoridade. No entanto, essa concepção é questionada pela teoria crítica da sociedade na medida em que:

Justamente neste fato filosófico, de que o indivíduo não é compreendido na sua interligação com a sociedade e natureza, mas abstratamente e é alçado a um ser puramente espiritual, um ser que agora deve pensar e aceitar o mundo como princípio eterno, mesmo que seja como expressão de sua própria essência verdadeira, reflete-se a imperfeição de sua liberdade: a impotência do indivíduo numa realidade anárquica, dilacerada por contradições e desumana (HORKHEIMER, 2008, p. 199-200).

Segundo Horkheimer (2008), as autoridades foram derrubadas, tal como defendido pela filosofia burguesa, apenas aparentemente, pois o lugar do despotismo não foi ocupado pela liberdade, mas pela autoridade econômica. A liberdade no âmbito do processo de produção capitalista significou, em primeiro lugar, que os homens foram abandonados aos mecanismos de exploração, pois a liberdade que ambas as partes da relação trabalhista (patrão e empregado) parecem ter não se confirma, posto que as condições para entrar nessa relação não são as mesmas. Assim, ao se sujeitar à vontade particular do empresário, o trabalhador está admitindo a autoridade dos fatos econômicos. Contudo, essa autoridade econômica é mascarada na medida em que a “diferença entre rico e pobre é condicionada socialmente, imposta e mantida pelos homens e mesmo assim apresenta-se como se fosse necessária por natureza, como se os homens em nada pudessem modificá-la” (HORKHEIMER, 2008, p. 205).

Dessa forma, embora os indivíduos acreditem que são independentes e que, por isso, podem agir livremente, suas relações, segundo Horkheimer (2008), se caracterizam como relações de dependência pautadas na diferença de propriedade. Nessa relação, a autoridade afirmada na dependência econômica aparece como natural e não como resultado da própria ordem social, ou seja, determinada pelo modo de produção e pela existência das classes sociais. A autoridade, que numa sociedade justa se constituiria a partir do esforço, na sociedade burguesa é alcançada por meio do dinheiro, do poder ou de relações capazes de elevar o indivíduo acima de outras pessoas. Nessa sociedade, aponta Horkheimer (2008), a ordem hierárquica não é reconhecida como justa, mas como necessária, e, consequentemente, assim é justificada. Dessa forma, não se reconhece na existência da subordinação à verdadeira

autoridade, baseada em dados econômicos, mas apenas que deve haver uma autoridade “qualquer”, identificada como a autoridade pública, que força os indivíduos à subordinação ao Estado e lhes tira o poder de decisão. Portanto, para o autor:

Na era burguesa, a história não parece uma luta conscientemente travada da humanidade com a natureza e o desenvolvimento permanente de todas as suas faculdades e potencialidades, mas um destino sem sentido, perante o qual o indivíduo pode comportar-se com maior ou menor habilidade, de acordo com sua situação de classe (HORKHEIMER, 2008, p. 201).

A relação que os indivíduos estabelecem com a autoridade na sociedade, segundo os autores da teoria crítica da sociedade, é mediada pela família. Horkheimer (2008) aponta que no curso da evolução, a família, como instituição mediadora, tem influenciado de forma decisiva na formação psíquica da maior parte dos indivíduos e desempenhado a função de reproduzir entre os seus membros os caracteres humanos exigidos pela vida social como, por exemplo, o comportamento autoritário do qual depende amplamente a sobrevivência da ordem burguesa. A influência exercida pela família sobre os impulsos e paixões, as disposições do caráter e os modos de reação são condicionadas pelas relações de poder que nela se estabelecem e pelas relações com toda a estrutura da sociedade. Segundo Horkheimer (2008), a família, ao demarcar a diferença entre pai e filho, antecipa para a criança a estrutura de autoridade presente na realidade externa ao ambiente familiar. Assim, as diferenças que os indivíduos encontram no mundo, como a pobreza e a riqueza, passam a ser naturalizadas. O poder e o respeito ao pai na família burguesa deve-se a sua força física natural e a sua qualidade aparentemente inata de provedor. Nesse sentido, a autoridade do pai não está relacionada à realidade concreta, as suas possíveis características, como o senso de trabalho, a disciplina, a perseverança, o uso da razão, entre outras, mas é sustentada por aspectos religiosos e metafísicos. “Na consciência da atualidade, a autoridade também não aparece absolutamente como uma relação, mas como uma qualidade inevitável do superior, como uma diferença qualitativa” (HORKHEIMER, 2008, p. 217). A autoridade é compreendida como uma qualidade fixa e dessa concepção decorre o fato de que em muitas famílias as condições para a educação e formação dos filhos são miseráveis e mesmo assim, a autoridade do pai é preservada. O autor afirma ainda que a aparente naturalidade do poder patriarcal pautado na força física e na posição econômica, em que os bens materiais também são transformados em qualidades naturais, contribui para naturalizar o comportamento autoritário na sociedade, impedindo que as novas gerações questionem e critiquem a estrutura do sistema econômico e social.

Todavia, embora a família como instituição mediadora seja constituída por uma estabilidade relativamente permanente, conforme aponta Horkheimer (2008), ela também sofre transformações em decorrência das mudanças sociais, uma vez que se mostra, em todos os momentos, dependente da dinâmica de toda a sociedade. Na família são refletidas todas as contradições e crises da sociedade, e isso implica na execução cada vez pior de suas funções, consideradas em si necessárias, como a educação, ou na extinção de algumas delas ao longo da história, como, por exemplo, a função de se constituir como a entidade principal de produção. Horkheimer (2008) aponta ainda que o desenvolvimento industrial influenciou de forma decisiva a família; essas mudanças decorrem da tendência originária da própria economia para a dissolução de valores e instituições culturais que se apresentam em contradição com a estrutura econômica.

Segundo Horkheimer e Adorno (1973), a família na sociedade burguesa, cujo ordenamento total é baseado no sistema de troca e no racionalismo individual dos homens no trabalho, é anacrônica. Sua condição, como instituição anacrônica, decorre do elemento irracional presente na família, o princípio do sangue, do parentesco natural, dentro de uma sociedade industrial, orientada por uma ordem racionalista, em que todas as relações estão baseadas no principio calculista da oferta e da procura.

Horkheimer e Adorno (1973) afirmam ainda que a família está submetida a uma dinâmica de caráter duplamente social, pois ao mesmo tempo em que integra e adapta o indivíduo à sociedade, também pode atuar como uma espécie de refúgio, um espaço de resistência, de autonomia, se colocando numa posição de antagonismo frente ao ordenamento social. De acordo com Horkheimer (2008), diferente do que ocorre na vida pública, na família os indivíduos não estão submetidos à lógica do mercado, lugar onde se enfrentam como concorrentes, mas podem atuar também como pessoas. Assim, se, por um lado, somente a família foi capaz de cumprir a função de “causar nos indivíduos uma identificação com a autoridade, idealizada como ética do trabalho” (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 137), necessária à adaptação dos homens a condição de assalariados separados do poder de controle dos meios de produção, por outro lado, ela própria foi atingida por essa dinâmica social, deixando de garantir de forma segura a vida material de seus membros e de proteger suficientemente o indivíduo contra o mundo externo. Segundo os autores, portanto, “a crise da família é de origem social e não é possível negá-la ou liquidá-la como simples sintoma de degeneração ou decadência. Enquanto a família assegurou proteção e conforto aos seus membros, a autoridade familiar encontrou uma justificação” (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 140). Sobre a função da família na sociedade, os autores apontam que:

Quando a pressão não era demasiado severa e, sobretudo, quando se fazia acompanhar pela doçura materna, desenvolviam-se homens capazes de, quando necessário, procurar os defeitos – mesmo neles próprios; homens que haviam formado, segundo o modelo paterno, um espírito de independência, de amor à livre escolha e à disciplina interior; homens que sabiam manifestar e praticar tanto a liberdade como a autoridade (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 145).

Com a crise na família, segundo Horkheimer e Adorno (1973), a autoridade paterna foi transferida para autoridades externas, o que contribuiu para a atomização dos indivíduos na sociedade. No entanto, essa sociedade não foi capaz de substituir satisfatoriamente a ação econômica e educativa do pai e tampouco de garantir a liberdade do indivíduo que poderia, em certas condições, ser cultivada pela família. A busca do indivíduo pela liberdade, por meio da luta contra as autoridades tradicionais, portanto, não se concretizou na realidade objetiva, posto que continuou subordinado a verdadeira autoridade, baseada no poder econômico perpetuado pelas relações de dominação presentes na sociedade. A autoridade verdadeira, segundo os autores, é invisível, “tornou-se [...] mais abstrata e, portanto, cada vez mais implacável e desumana” (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 145-46).

De outra parte, nessa sociedade, contudo, de acordo com Marcuse (1999), a falta de liberdade é confortável, visto que a racionalidade tecnológica, desenvolvida na civilização industrial, permitiu uma organização racional da vida, garantindo padronização, previsibilidade e segurança de tal forma que protestar contra ela pareceria, além de inútil, irracional. Dessa forma, sob a racionalidade tecnológica “o homem não sente esta perda de liberdade como o trabalho de alguma força hostil e externa; ele renuncia à sua liberdade sob os ditames da própria razão” (MARCUSE, 1999, p. 82). O homem por meio da própria razão admite que a submissão é voluntária e inerente ao processo da vida social. Assim, a autonomia antes valorizada pela racionalidade individualista aparece, agora sob a racionalidade tecnológica, segundo Marcuse (1999), como um obstáculo. Ao invés de estímulo a ação racional e a liberdade do indivíduo, o agir autônomo limitou-se apenas à seleção dos meios mais adequados para alcançar uma meta que ele próprio não determinou. Nesse sentido, a “independência de pensamento, autonomia e direito à oposição política estão perdendo sua função crítica básica numa sociedade que parece cada vez mais capaz de atender as necessidades dos indivíduos através da forma pela qual é organizada” (MARCUSE, 1982, p. 23). Em decorrência disso, na civilização industrial contemporânea as formas de liberdade tradicionais como a econômica, a política e a intelectual foram substituídas por novas modalidades de liberdade, correspondendo às possibilidades dessa sociedade. Segundo o autor:

Essas novas modalidades só podem ser indicadas em termos negativos porque importariam a negação das modalidades comuns. Assim, liberdade econômica significaria liberdade de economia – de ser controlado pelas forças e relações econômicas; liberdade de luta cotidiana pela existência, de ganhar a vida. Liberdade política significaria a libertação do indivíduo da política sobre a qual ele não tem controle eficaz algum. Do mesmo modo, liberdade intelectual significaria a restauração do pensamento individual, ora absorvido pela comunicação e doutrinação em massa, abolição da “opinião pública” juntamente com os seus forjadores (MARCUSE, 1982, p. 25).

Para Marcuse (1999), portanto, a civilização industrializada contém em sua própria racionalidade a irracionalidade. Assim, ao mesmo tempo em que a racionalidade possibilitaria aos homens, por meio do desenvolvimento tecnológico, o fim da escassez, a autonomia e, assim, o livre desenvolvimento das potencialidades humanas, também é responsável por tornar o destino material das massas cada vez mais dependente do funcionamento contínuo e correto da crescente ordem burocrática das organizações capitalistas privadas. O progresso tecnológico, contudo, não é em si a dominação das coisas e dos homens sobre os homens, uma vez que em outra forma de organização social ele seria condição fundamental para a livre realização humana, conforme aponta Marcuse (1999). No entanto, quanto mais racional, produtiva e técnica se torna a administração da sociedade repressiva, mais difícil torna-se para o indivíduo submetido à administração totalitária romper com a sua servidão, uma vez que toda libertação depende da consciência da não liberdade (MARCUSE, 1982). A autodeterminação e autonomia, de acordo com Marcuse (1970), entendida como a capacidade do indivíduo de determinar o que fazer ou não, o que tolerar ou não, ainda não foi possível nem mesmo nas mais livres das sociedades existentes. E a liberdade, ao contrário do que defende a filosofia burguesa, não seria realizada pelo indivíduo privado, mas em conjunto com todos os demais indivíduos. Nesse sentido, sinaliza o autor:

O problema de tornar possível a harmonia entre cada liberdade individual não consiste em encontrar uma acomodação entre concorrentes, ou entre liberdade e lei, entre o interesse geral e individual, entre o bem-estar comum e o privado numa sociedade tradicional, mas de criar uma sociedade em que o homem não seja mais escravizado pelas instituições que, desde o início, viciam a autodeterminação (MARCUSE, 1970, p. 92).

Para os autores da teoria crítica da sociedade, na civilização industrializada e racionalizada e, portanto, administrada, a independência do indivíduo, tal como defendida pela filosofia burguesa, em relação à sociedade é apenas aparência. No entanto, essa aparência acaba por converte-se em realidade na medida em que o indivíduo passou a desconhecer o mundo do qual intimamente depende (HORKHEIMER; ADORNO, 1973). Esse desconhecimento, por sua vez, mantém os indivíduos presos à aparência, conforme pode ser observado nas relações de autoridade.

Em defesa de uma falsa liberdade, visto que, segundo Marcuse (1970), a liberdade de fato ainda não se concretizou, embora já houvesse condições objetivas para isso, prevalece a ideia de que é necessária a oposição dos indivíduos a qualquer forma de autoridade. Tal oposição se dirige, no entanto, não à autoridade econômica, invisível, mas a outras formas de autoridade, como aquelas presentes nas relações entre pais e filhos ou entre professores e alunos, necessárias para a formação do indivíduo. Conforme discutido no início deste trabalho, a autoridade, muitas vezes, é associada à ideia de autoritarismo, o que dificulta a discussão acerca da importância da autoridade que, como relação de dependência, pode atender aos interesses do indivíduo. Essa ideia de contraposição entre a liberdade do indivíduo e a autoridade atingiu também o âmbito privado da vida e está dada, portanto, tanto no que se refere à educação oferecida pela família quanto na educação formal oferecida pela escola, conforme será discutido a seguir.