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CAPÍTULO II A AUTORIDADE SEGUNDO OS ADOLESCENTES

2.3 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

2.3.2 Responsabilização

A família e a escola são as principais instituições capazes de garantir a socialização das novas gerações. De acordo com Adorno (1995e), faz parte do processo civilizatório, proporcionado por estas instituições, impor aos indivíduos determinadas privações, visando o processo de adaptação. Essa concepção também está presente nas ideias de Freud (2011). Segundo o autor, para que os homens possam viver coletivamente é necessário a renúncia da satisfação das necessidades instintuais. No processo civilizatório, portanto, é exigido dos agentes socializadores oferecer uma formação que possibilite aos indivíduos o esclarecimento quanto aos riscos gerados por determinados comportamentos que são prejudiciais não apenas o indivíduo, mas também a sociedade, conforme aponta Adorno (1995b).

A tomada de consciência, no entanto, segundo o autor, não ocorre por meio do apelo aos vínculos de compromisso, mas se desenvolve na experiência. Sendo assim, na categoria ‘responsabilização’ são descritos os dados coletados referentes às ações dos adultos na escola e na família perante determinados comportamentos manifestados pelos adolescentes que contrariam as expectativas dessas instituições. São analisados, portanto, se os adolescentes estão ou não sujeitos as consequências de seus atos.

a) Família

Quando questionado nos grupos focais se o descumprimento de determinadas regras estipuladas pela família acarretavam consequências, os adolescentes apresentaram as seguintes respostas:

Escola A:

Mediadora: E quando vocês descumprem esses comportamentos previstos, quando vocês não se comportam da maneira como a família exige? Há consequências?

Paulo (escola A): Ô! Castigo, ficar sem Internet, sem jogar futebol, assistir TV...

Andréia (escola A): Ela fala que eu tenho que aprender a ter responsabilidade de fazer as coisas... Beatriz (escola A): Minha mãe só briga, não faz nada...

Ana (escola A): (imitando a mãe) E essa casa, se vier uma visita, não tem ninguém pra cuidar...? Mediadora: Mas, e se vocês não cumprem o combinado, o que acontece?

Ana (escola A): Fica sem Internet por alguns meses, fica sem celular, sem sair de casa... Tomas (escola A): Sem pipa...

Beatriz (escola A): Sem bicicleta... Tomas (escola A): Sem skate...

Andréia (escola A): A minha mãe só não deixa sair. De resto, ela não tira nada, não... Paulo (escola A): Ela só fala pra ser mais responsável da próxima vez...

Mediadora: As regras são claras na casa de vocês? Vocês sabem que se não fizer isso, vai acontecer aquilo?

(todos dizem sim)

Mediadora: Acontece de vocês aprontarem alguma coisa, não responderem à expectativa da família, e não acontecer nada?

(todos dizem que é raro...)

Mediadora: Vocês costumam ser responsabilizados pela postura de vocês? (todos dizem que sim...)

Andréia (escola A): É, mas quando passa um pouco do limite, ela já fala: não vem me pedir dinheiro pra sair, que eu não vou deixar, e blá, blá, blá...

Ana (escola A): É assim: (imitando a mãe) Deixa, que quando você precisar de mim, você vai ver... Andréia (escola A): Ela fala que eu só lembro dela quando quero alguma coisa...

Escola B:

Mediadora: Caso vocês não cumpram as exigências da família há punições? Flávia (escola B): Fica de castigo.

Camila (escola B): Fica de castigo, não pode sair na rua, fica sem o celular. Tiago (escola B): Não posso assistir televisão.

Felipe (escola B): Minha mãe me deixa sem meus gibis, não deixa sair de casa, não deixa eu desenhar, não deixa eu ficar na rua nem no videogame.

Flávia (escola B): Eu fico sem o celular.

Mediadora: E é frequente isso? Se vocês descumprem o combinado há punições? Felipe (escola B): Já aconteceu de um ficar de um a dois meses.

Daniela (escola B): Eu fico uma semana.

Mediadora: E as regras são claras? Vocês já sabem o que vocês têm que fazer?

Felipe (escola B): É... a minha mãe já me deixa ciente das regras que eu tenho que cumprir. Mediadora: Ah! Já sabem. E a Flávia e a Daniela?

(as alunas gesticulam que sim)

Camila (escola B): Ah! Um dia ela fala e no outro dia ela já esquece. Mediadora: Ela não cobra depois?

Camila (escola B): Não, né?

Mediadora: E acontece de vocês não serem responsabilizados pelos atos de vocês? Tiago (escola B): Não.

Camila (escola B): Não.

Pedro (escola B): Uma vez ou outra, pode acontecer. Felipe (escola B): Normalmente já tem a ameaça.

Flávia (escola B): É... quando eu faço coisas assim... ela briga.

As informações apresentadas apontam que a família tende a responsabilizar os adolescentes por seus atos e que estes possuem um conhecimento prévio sobre quais serão as possíveis consequências decorrentes de tais atitudes. A responsabilização se expressa na aplicação de punições, como privá-los de objetos de lazer e prazer como celular, skate, computador, de assistir TV ou da convivência com amigos, mas também na presença de diálogos que apelam para o compromisso. Verificou-se, portanto, que os dados coletados contrariam o discurso recorrente no “senso comum” de que as famílias são negligentes ou permissivas com relação ao comportamento dos adolescentes.

b) Escola

Nas discussões realizadas nos grupos focais os adolescentes também foram questionados se eles são responsabilizados pelos seus atos também na escola e de que forma isso ocorre. Diante dessa questão apareceram os seguintes comentários:

Escola A:

Mediadora: E como é que funciona? Como são as punições aqui na escola, se há desrespeito com as regras?

Caio (escola A): Eles vão pegando no pé, até tomar jeito. Se não tomar jeito, eles chamam o pai... Ana (escola A): Se tem algum problema (na escola), chama a mãe, que está perto... A mãe sempre comparece...

Caio (escola A): Expulsar, ocorrência... Mediadora: Mas chega a expulsar?

Paulo (escola A): O primeiro nível seria convocação... Não, é... ocorrência. Mediadora: Tem o livro de ocorrência?

Beatriz (escola A): Tem!

Caio (escola A): Quando completa a folha, e se ele não for muito quietinho, aí tem a convocação, aí chama os pais... Aí, se não resolve, ele é expulso mesmo...

Ana (escola A): Tem gente que tem duas folhas... Mediadora: E então, como é que é?

Paulo (escola A): Então... Ocorrência, convocação, advertência, e... Ana (escola A): Nunca ouvi falar de ninguém que foi expulso na escola. Andréia (escola A): Ah, eu já. Mas faz tempo.

(todos os outros concordam).

Paulo (escola A): Eles falam que, se tiver três convocações, aí é tipo um alerta. Aí chamam os pais. Se não der certo, te expulsam...

Ana (escola A): Ah, e eles chamam o Conselho Tutelar também. Mediadora: Chamam o Conselho Tutelar?

Ana (escola A): Assim... Se a pessoa for muito zoeira. Caio (escola A): Vida louca...

Ana (escola A): E se o pai não puder ir na escola, os professores vão... Tem professor que vai na casa...

Mediadora: E já aconteceu isso aqui? (todos dizem que já)

Mediadora: Os professores vão nas casas dos alunos aqui? Ana (escola A): Sim, já foram na casa da minha prima. Mediadora: E o que aconteceu?

Ana (escola A): Não sei. Ela era muito barraqueira, ficava brigando com as meninas na escola, e outras “cositas” mais... Aí a mãe dela tinha problema de hérnia de disco, não podia ir pra escola. Aí o Professor Cláudio, que manda na escola praticamente, ele foi lá falar com a minha tia.

Escola B:

Mediadora: Vocês me disseram que há regras, mas o que acontece quando elas são descumpridas? Há punição?

Daniela (escola B): Sim.

(Tiago gesticula negativamente com a cabeça)

Pedro (escola B): Punição? Punição existe, eles dizem que há punição, só que eu nunca vi a punição ser aplicada nesse caso.

Camila (escola B): É, eu também nunca vi. Felipe (escola B): Nada acontece.

Camila (escola B): No máximo uma convocaçãozinha e chama a mãe e pronto.

Mediadora: E quando destroem o patrimônio, quebram carteiras, vidros... O que acontece? Daniela (escola B): Tem que pagar.

Camila (escola B): Nada, não acontece nada... ele tem que ser expulso. Mediadora: O aluno tem que pagar?

Flávia (escola B): É, o Caique e o Diego. Mediadora: Eles pagam?

Flávia (escola B): Não.

Felipe (escola B): Eles quebram e eles fogem.

Daniela (escola B): Mas eu acho que eles têm que pagar... algumas coisas que eles destroem eles tem que pagar.

Mediadora: E no caso de briga? Tem que tipo de punição?

Daniela (escola B): Dar convocação e chamar a mãe dos dois adolescentes.

Pedro (escola B): E eles ficam... eles continuam se estranhando, eles deveriam ter uma punição maior pra que eles não voltassem a brigar.

Flávia (escola B): É mesmo, quase a menina me bateu no rosto. (...)

Mediadora: E se vem sem o uniforme o que acontece? Entra sem o uniforme? Flávia (escola B): Não. Leva convocação.

Camila (escola B): Tem que voltar para a casa.

Daniela (escola B): Se você entra sem o uniforme você leva convocação.

Pedro (escola B): Agora, eles estão dando um aviso, se você entrar sem o uniforme, na primeira vez eles vão anotar o seu nome, na segunda vez eles vão chamar o seu responsável...

Felipe (escola B): E na terceira vez, eles vão te dar suspensão. (rindo) Camila (escola B): Na quarta vai ser expulso da escola. (rindo)

Daniela (escola B): Na quarta tem que vir vestido com todo o uniforme. (rindo)

Mediadora: O Pedro falou: “agora eles estão cobrando o uniforme”. Mas a escola não cobrava? (todos responderam que não)

Pedro (escola B): Eles começaram cobrar no ano passado... porque dois indivíduos do bairro entraram na escola, mas não são da escola...

Felipe (escola B): Eles entraram na escola, ficaram o tempo da aula todo e saíram como alunos. Mediadora: E ninguém percebeu?

(todos responderam: “ninguém percebeu”)

Pedro (escola B): Depois foi duas semanas... e aí que eles perceberam isso.

Constatou-se que a responsabilização dos alunos adolescentes ocorre de forma distinta nas escolas A e B. Segundo os alunos da Escola A, a instituição utiliza vários recursos como meio para responsabilizá-los por seus atos, como reprimi-los verbalmente, registrar o problema formalmente em livro oficial, convocar os responsáveis, visitar a casa dos alunos, caso os responsáveis não compareçam à escola para discutir o ocorrido e até mesmo comunicar o Conselho Tutelar sobre a questão. O critério para o uso de um ou outro recurso pauta-se na gravidade da transgressão tal como considerada pela escola. Além disso, os alunos da Escola A demonstram confiar na existência de consequências aplicadas pela escola diante das transgressões das regras impostas.

No que se refere à Escola B, os alunos consideram que a instituição não os responsabiliza pelos seus atos, embora afirmem que nas situações em que estes comparecem à escola sem uniforme, se envolvem em brigas ou praticam a destruição do patrimônio os responsáveis são convocados. A fala dos alunos da Escola B expressa descrédito quanto à possibilidade de haver consequências diante de determinados comportamentos que contrariem as expectativas da instituição, indicando que esta apenas ameaça, mas não cumpre o que foi prometido. Conforme apresentado anteriormente, os alunos tampouco parecem ter clareza sobre o comportamento exigido pela escola, uma vez que, segundo os participantes, as regras não são permanentes ou legitimadas por todos os adultos. Nesse sentido, os dados sugerem que a Escola A assume posturas que se aproximam das expressões de autoridade presentes nas famílias, conforme apontado pelos participantes, apresentando maior coerência no que se refere à responsabilização e, consequentemente, à formação dos adolescentes, do que a Escola B.

É importante observar, ainda, que ambas as escolas, para evitar ou garantir que os alunos ajam de determinada maneira, limitam-se a apelar para os vínculos de compromisso, a comunicar a família quanto aos comportamentos considerados inadequados ou até mesmo a recorrer à instâncias alheias a formação do indivíduo como o Conselho Tutelar. Esse fato chama a atenção não porque se defenda neste trabalho a necessidade de condutas autoritárias

por parte da escola, uma vez que, de acordo com Adorno (1995e), estas prejudicam o objetivo educacional, mas, sim, porque percebe-se que a escola apresenta poucas condições para oferecer uma formação que possibilite aos indivíduos a consciência sobre os riscos sociais de determinados comportamentos. Além disso, Horkheimer e Adorno (1979) afirmam ainda ser difícil aplicar o conceito de responsabilidade aos jovens estudantes, uma vez que poucos possuem condições objetivas e subjetivas para que surja a responsabilidade.

De outra parte, conforme Marcuse (1970), na sociedade industrial, a tolerância como prática libertadora e humanizadora foi substituída pela tolerância repressiva, expressa na admissão “de políticas, condições e modos de conduta que não deviam ser admitidos porque impedem, se é que não destroem, as oportunidades de criação de uma vida sem medo e sem miséria” (MARCUSE, 1970, p. 88). Essa forma de tolerância, que é obstáculo à pacificação da existência e a própria liberdade e felicidade dos homens, também está presente na educação e influencia as práticas dessa instituição, conforme aponta o autor:

A partir da permissividade de todos os tipos à criança, à constante preocupação psicológica com os problemas pessoais do estudante, está em andamento um movimento em grande escala contra os males da repressão e a necessidade de ser o indivíduo ele mesmo. Frequentemente, afasta-se para o lado a questão de que deve ser reprimido antes que o homem possa tornar-se um ser, um ego (MARCUSE, 1970, p. 117).

Nesse sentido, Marcuse (1970), tendo como referência o pensamento de Freud, aponta para a necessidade de se distinguir a repressão libertadora da repressão destrutiva. Para o autor, a primeira é necessária, uma vez que “o potencial individual é, de início, negativo, parte do potencial da sociedade: agressão, sentimentos de culpa, ignorância, ressentimentos, crueldade que lhe viciam todos os instintos vitais”(MARCUSE, 1970, p. 117). Sendo assim, afirma o autor ainda que “se queremos que a identidade do ego seja mais do que a realização imediata desse potencial (indesejável para o indivíduo como ser humano) é preciso repressão, sublimação, transformação consciente” (MARCUSE, 1970, p. 117). Para que isso ocorra, agora de acordo com Adorno (1995a), é necessária a presença de manifestações de uma autoridade esclarecida que garanta a autorreflexão crítica do indivíduo e promova a luta contra a barbárie.