• Nenhum resultado encontrado

PARTE 3: SENTIDOS DO TRABALHO INFORMACIONAL CORPORATIVO

III. A inanição de Midas

A utilização de mitos, em diversos momentos deste estudo, teve o intuito de ilustrar alguns pontos da argumentação, de sintetizar idéias e de provocar novas reflexões sobre o tema. Entretanto, os mitos podem ser, também, eficientes catalisadores para um diálogo intersaberes. Ao término das considerações pós-tese, propomos uma análise do mito de Midas para que, além dos objetivos citados, possa também se constituir em uma última proposta dialógica.

O ‘toque de Midas’ é um termo de uso relativamente comum para se referir, metaforicamente, à capacidade de produzir riqueza. Contudo, esse mito apresenta desdobramentos menos conhecidos em tal uso cotidiano.

“Sileno, perdido, adormecera longe do cortejo de Dioniso, nas montanhas da Frigia. Foi encontrado por camponeses que não o reconheceram e o levaram acorrentado à presença de seu rei. Midas, que outrora fora iniciado nos Mistérios, viu imediatamente de quem se tratava. Soltou-o, recebeu-o com grandes honras e partiu em sua companhia para se reunir a Dioniso. Este agradeceu amavelmente ao rei e, para o recompensar, concedeu-lhe a realização do desejo que formulasse. Midas pediu imediatamente que tudo aquilo em que tocasse se transformasse em ouro. Em seguida, como o deus lhe concedeu o que queria, voltou para casa, contente, e resolveu experimentar o dom recém- adquirido. Tudo correu bem até a hora do almoço. Quando Midas quis levar um pedaço de pão à boca, apenas encontrou um bocado de ouro. E também o vinho se transformou em metal. Esfomeado, a morrer de sede, Midas implorou a Dioniso que lhe retirasse esse dom pernicioso.” (GRIMAL, 2000: 310)

Atribui-se a Sileno o papel de preceptor de Dioniso. Este, por sua vez, era o deus do vinho e da inspiração – também conhecido como Baco, na mitologia romana. A primeira e, provavelmente, mais óbvia analogia a se estabelecer entre Midas e o trabalhador informacional corporativo seja sua capacidade de enriquecer aquilo que toca: sua produtividade. Um segundo elemento a se verificar é a origem dionisíaca desse dom contemporâneo – que poderíamos comparar a uma origem e a uma finalidade hedonistas. Não é um dom de Apolo, deus da poesia e também da inspiração, visto que a inspiração apolínea é mais ‘equilibrada’ que a de Dioniso (GRIMAL, 2000). Prosseguindo na analogia, Midas acolhe o sábio Sileno e recebe, em retribuição, o toque de ouro; o trabalhador informacional corporativo acolhe o conhecimento e se torna, em conseqüência, um produtor de riquezas.

Mas algo inesperado transmuda essa bem-aventurança em infortúnio. Por não ter previsto os efeitos de seu desejo, Midas é confrontado com a inanição. Mesmo sendo rei e já possuindo riquezas, Midas almejou ainda mais. Para, ao final, repudiar em desespero o dom recém-adquirido. Nesse ponto, podemos estabelecer novas analogias com esse aspecto menos conhecido do mito: o trabalhador (Midas) de classe-média (posição social respeitável) através de seu capital intelectual (Sileno) capacita-se a produzir riqueza em bases contínuas (toque de ouro) e deseja, com seu trabalho, ampliar seu padrão socioeconômico e de consumo (mais riquezas). Mas e a inanição? A que se refere nessa analogia? Que tipo de inanição poderia esse trabalhador-Midas experimentar em sua vida tão produtiva e dinâmica?

Essa análise final tem, como as anteriores, um caráter propositivo e provocador. Adicionalmente, tem um caráter especulativo sobre as possibilidades de vivência do indivíduo contemporâneo em seu trabalho paradoxal. Para fundamentar esse diálogo, iniciamos com uma afirmação de Viktor Frankl (1991: 92): “A busca do indivíduo por um sentido [significado] é a motivação primária em sua vida, e não uma ‘racionalização secundária’ de impulsos instintivos.” Portanto, a busca de sentido (significado) seria uma preocupação central do indivíduo em suas vivências. E os sentidos, nessa acepção frankliana, são sempre específicos: referem-se a um indivíduo e a um dado momento de sua existência.

Voltando à analogia, podemos dizer que uma das possibilidades do trabalhador- Midas frente ao trabalho paradoxal seria a da inanição de sentidos (significados). Algumas características descritas ao longo do estudo parecem subsidiar tal proposição: o trabalho paradoxal é um labor servil, com estruturas coletivas de significado declinantes e com um marcante propósito de subsistência e de habilitação ao consumo. Ademais, seu ambiente (as organizações) não seria propício à auto-realização e à construção de um legado aos moldes da cidadania grega. Ainda que inúmeros significados sejam atribuíveis, individualmente, ao trabalho paradoxal, os indícios disponíveis sugerem que seriam, em grande parte, significados instrumentais.

Frankl (1991) acrescenta, ainda, que a felicidade estaria no êxito dessa busca de sentidos. A felicidade, portanto, não deveria ser um objetivo em-si, mas o resultado de uma vida plena de significado, visto que “o ser humano não é alguém em busca da felicidade, mas sim alguém em busca de uma razão para ser feliz.” (FRANKL, 1991: 119) Tais considerações apontariam o caráter ‘dionisíaco’ do ideal contemporâneo de felicidade –

ideal também descrito como hedonismo imperativo no capítulo 10. Uma felicidade compulsória e compulsiva que termina se inviabilizando por ser indevidamente buscada.

Uma perspectiva final sobre a questão do sentido pode ser verificada em uma das observações de Viktor Frankl como prisioneiro em Auschwitz: a análise do comportamento dos ‘desistentes’. Desistentes eram os indivíduos que se recusavam ao trabalho e aos cuidados pessoais, mesmo sob ameaças. Se limitavam a fumar os últimos cigarros disponíveis, sem qualquer preocupação com seu destino. Tal comportamento sinalizava e representava a desistência de viver – o que, freqüentemente, ocorria logo em seguida. A conclusão de Frankl (1991), a partir dessas observações, seria aplicável a contextos ‘normais’ de vida: na ausência de percepção de sentidos (significados), a busca do prazer imediato assume o controle da existência.

Analisar a inanição de Midas sob esse enfoque pode levar a ilações inusitadas. Como, por exemplo, a inversão de uma possível relação causal entre hedonismo e ausência de sentidos. O imediatismo hedonista da atualidade resulta num empobrecimento dos significados ou é esse empobrecimento que provoca tal imediatismo? Abdicando, mais uma vez, do aprisionamento a esquemas de causalidade simples, preferimos descrever esse fenômeno como duplamente implicado. Independentemente da origem, pode-se observar uma dinâmica em que a busca do prazer imediato leva a uma erosão de sentidos e esta, por sua vez, acentua a demanda por tal prazer. Ingressar nessa dinâmica eventualmente lançaria o indivíduo em um ‘funcionamento de subsistência’: um modo automático de vida paradoxalmente análogo à luta pela sobrevivência dos primórdios da civilização. A ancestral luta diária por alimento e segurança se transforma na batalha cotidiana pelo consumo e pela melhoria econômica. A hostilidade do meio-ambiente, por sua vez, é substituída pela imprevisibilidade do mercado de trabalho e do contexto organizacional. Provavelmente, o impacto contínuo do conhecimento, a relação litigiosa com o tempo, os múltiplos enredamentos e as contradições do trabalho corporativo terminam por lançar muitos indivíduos nesse ‘funcionamento de subsistência’. Ou, na terminologia deste estudo, aprisionando-os numa reflexividade operativa que, por definição, resulta numa apreensão de significados meramente instrumentais no trabalho. A inanição de Midas seria, então, uma carência de sentidos e, ainda pior, uma carência da possibilidade de apreendê- los em profundidade. O trabalhador-Midas adquire um dom prodigioso, mas, em contrapartida, pode perder uma possibilidade humana insubstituível: a possibilidade de

refletir sobre sua existência, de perceber significados autênticos e, fundamentalmente, de escolher quem ele é.