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PARTE 3: SENTIDOS DO TRABALHO INFORMACIONAL CORPORATIVO

8. O TRABALHO IMPERMANENTE

9.2. Enredamento anômico

O ponto de partida escolhido para esse percurso analítico é um conceito clássico da Sociologia: a anomia. Na perspectiva de Durkheim (1999), a divisão do trabalho não seria meramente uma resposta da engenhosidade humana às suas necessidades produtivas. Tampouco se restringiria a uma determinação de um novo sistema socioeconômico que alterou os modos tradicionais de produção. A divisão do trabalho seria, fundamentalmente, um arranjo social que promove um tipo especial de solidariedade, denominada solidariedade orgânica. Diante da crítica a essa forma de organização do trabalho, que supostamente reduziria o homem à condição de máquina, Durkheim afirma que não se pode julgar a divisão do trabalho pelas suas formas anormais de aplicação. Ela seria, em princípio, positiva; casos de desajuste e inadequação seriam excepcionais. Na analogia biológica de Durkheim, a anomia seria um estado de desagregação em que um determinado órgão estaria fora de sintonia com os demais, não participando de um esquema regulatório geral. A anomia no trabalho seria, por extensão, o isolamento e a ausência de sentido (significado e propósito) experimentados por um trabalhador submetido a uma tarefa excessivamente fragmentada e distanciada dos demais atores do processo produtivo. Esse trabalhador não apenas experimentaria a ausência de uma comunhão orgânica com os demais setores de sua organização produtiva, como também não perceberia a interação desta com a sociedade, ou seja, seu papel social e econômico. Em suma, a anomia seria o resultado de uma disfunção da divisão social do trabalho que impediria a solidariedade orgânica e a percepção de sentido no trabalho realizado.

À primeira vista, poderia parecer que discussão sobre anomia e solidariedade não se aplica à investigação do trabalho informacional corporativo. No máximo, seria aplicável aos remanescentes do trabalho taylorizado, seja na indústria, seja nos serviços. Contudo, uma análise mais cuidadosa pode revelar alguns indícios de sua utilidade. Certamente, o trabalho informacional corporativo não apresenta, como princípios, a fragmentação de tarefas e o isolamento de seus executores. Pelo contrário, o enriquecimento de tarefas e o estímulo à interação se tornaram lugar comum há décadas no discurso corporativo. Como, então, utilizar os conceitos durkheimianos para tal empreendimento investigativo?

Uma possibilidade seria analisar a questão da solidariedade no trabalho. Pesquisas relatadas por Dejours (2004), apontam uma persistente erosão dessa solidariedade, não limitada ao trabalho industrial típico. O declínio do poder sindical seria uma expressão

mais visível da desestruturação das formas clássicas de solidariedade - mas não a única. O que se observa em diversas organizações, segundo relatos de entrevistados, é um descompasso entre o discurso de colaboração e as práticas de reconhecimento ao esforço individual. As próprias técnicas gerenciais criariam um clima de competição que inviabiliza o estabelecimento de alianças cooperativas, com isso vulnerabilizando o indivíduo e deteriorando sua relação com o trabalho (DEJOURS, 2004). Assim como o esgarçamento do tecido social, característico da transição à modernidade, explica o declínio da solidariedade no âmbito da sociedade, a operacionalização da lógica produtiva através de técnicas administrativas explicaria tal declínio no universo organizacional.

A popularização do networking na década de 1990 é mais um dado relevante para essa linha de investigação. O networking pode ser definido como um processo de criação e de utilização de uma rede de relacionamentos pessoais visando ao compartilhamento de recursos para a gestão individual de carreira, como conhecimento, referências, idéias e indicações. Esse processo estruturado conta, inclusive, com softwares específicos que facilitam sua implementação e seu gerenciamento. É, também, largamente utilizado em empresas de recolocação profissional para a prospecção de oportunidades.

O que se observa nessa popularização do networking é mais um indício do impacto das técnicas de gestão e da lógica produtiva na interação humana. Ou em termos heideggerianos, o networking seria um desvelamento técnico-calculante dos relacionamentos, configurando o que poderíamos denominar solidariedade instrumental.

Outra característica da interação organizacional contemporânea é a sua crescente virtualização. A utilização de e-mail e de recursos de videoconferência, viabilizam a comunicação síncrona e multipessoal sem limitações espaciais. As vantagens da utilização desses recursos são facilmente enumeráveis por qualquer usuário, além de contarem com amplo patrocínio organizacional.

Contudo, o uso em larga escala de comunicação via e-mail, por exemplo, não se dá sem efeitos colaterais. A interação não-presencial restringe a comunicação a determinados canais, como o visual-verbal no caso do e-mail. E essa restrição limita as possibilidades comunicacionais pela perda dos componentes não-verbais da interação direta, como entonação de voz e expressões faciais. Outro efeito colateral mais evidente se refere ao dispêndio de tempo na seleção e leitura de mensagens, em meio à multiplicidade de informação irrelevante. Provavelmente menos visível seja o tempo gasto nessa comunicação que tem uma materialidade e uma permanência inexistentes na comunicação

telefônica, à qual costuma substituir. Além disso, o texto escrito pode assumir status de documento, assim requerendo maior precisão e formalidade no conteúdo.

Essa virtualização das interações se soma à solidariedade instrumental e aos impactos das técnicas de gestão configurando o que passaremos a denominar tecnomediação dos relacionamentos intra-organizacionais: mediação dos relacionamentos humanos através da tecnologia, representada por recursos de telemática e por técnicas administrativas de uso individual ou organizacional.

Analisando a dinâmica do trabalho numa perspectiva psiquiátrica e psicológica, Dejours (2004) afirma que as patologias laborais contemporâneas são, caracteristicamente, “patologias da solidão” (p.17). Na transição que faz da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho, evidencia que mesmo uma experiência laboral supostamente normal pode ocultar um sofrimento não-compartilhado – seja devido a uma estratégia coletiva de defesa (como a negação do risco, por exemplo), seja devido à impossibilidade de conquistar apoio entre os pares (DEJOURS, 2004).

A erosão da solidariedade, a tecnomediação dos relacionamentos e as patologias da solidão sugerem que o conceito de anomia pode ser útil à compreensão do trabalho contemporâneo – ainda que se entendam as limitações da perspectiva funcionalista que subjaz a esse conceito. Mesmo não se adotando tal perspectiva, o conceito de anomia pode suscitar uma reflexão adicional às considerações aqui realizadas: até que ponto o trabalho corporativo, na forma como é socialmente dividido e tecnologicamente administrado, pode comportar um nível de solidariedade suficiente para reduzir a presente vulnerabilidade individual? Ou, alternativamente, como o trabalho corporativo poderia ser distribuído e administrado de maneira a possibilitar uma restauração da solidariedade profissional?