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PARTE 3: SENTIDOS DO TRABALHO INFORMACIONAL CORPORATIVO

8. O TRABALHO IMPERMANENTE

9.4. Enredamento na lógica empresarial

Inicialmente, faz-se necessário definir lógica na acepção a ser utilizada nesse capítulo. Remontar à sua etimologia pouco esclarece sobre esse conceito utilizado na Filosofia desde Aristóteles (ABBAGNANO, 2000). Tampouco esse exercício seria útil à caracterização aqui desejada. De maneira sucinta e direta, e sem prejuízo às suas inumeráveis acepções, lógica deve ser entendida como um modo de raciocínio (NASCENTES, 1988), uma maneira de raciocinar característica de um indivíduo ou grupo social. Deve-se, ainda, acrescentar que essa maneira de raciocinar é automática, não- consciente.

A lógica é portadora de pressupostos condicionadores do raciocínio – logo, de decisões e ações. E tais pressupostos não estão, normalmente, disponíveis à reflexão cotidiana. Ou, utilizando-se da terminologia deste estudo, esses pressupostos não são problematizáveis a partir de uma reflexividade operativa. Lógica não é, portanto, equivalente a racionalidade, visto que esta última normalmente oferece à apreciação os fins ou os valores sobre as quais se fundamenta.

A lógica empresarial é, portanto, uma forma automática de raciocínio característica do ambiente corporativo. O que vamos apresentar, em seguida, são algumas de suas manifestações e as conseqüências para indivíduos e organizações. Iniciamos pela lógica cliente-fornecedor – lógica esta que, como tantas outras, tem uma racionalidade explicitável em seus primórdios mas que, com o passar do tempo, se internaliza a ponto de se tornar tácita e automática.

A popularização da gestão da qualidade, nas décadas de 1980 e 90, foi um provável catalisador do primado da clientela no mundo corporativo. A hegemonia da indústria americana no pós-guerra, com plena produção e mercado em crescimento constante, encontra sua mais relevante ameaça nos anos 70. A indústria japonesa, reconstruída e modernizada, apresenta suas armas: qualidade, produtividade, preços baixos. E, mais do que isso, termina por influenciar decisivamente a gestão ocidental com técnicas como o CCQ (Círculos de Controle da Qualidade), o Kanban (precursor do just-in-time) e diversas outras que compuseram a denominada Gestão da Qualidade Total. Junto com essas técnicas, vieram princípios de gestão que enfatizavam a satisfação do cliente como critério último de aferição da qualidade. Seja externo, seja interno, o cliente se torna ‘o rei’.

O que era um princípio racional de gestão se transforma, gradativamente, em uma lógica que ultrapassa as fronteiras originais da gestão empresarial. Um primeiro exemplo dessa transposição – no caso, indevida – é a que se estabelece na gestão pública. Ainda que pareça muito sedutora a lógica cliente-fornecedor no serviço público, ela é, por princípio, reducionista. Muito mais que cliente, o usuário do serviço público é um cidadão. Muito mais que qualidade e produtividade, eficiência e eficácia, a gestão pública deve ter como princípio a efetividade. Ou seja, por mais que a lógica cliente-fornecedor pareça um avanço – e em muitos casos o é, dada a precariedade de alguns serviços públicos – esta não dá conta da especificidade da gestão pública, tanto em seus meios quanto em seus fins.

A lógica cliente-fornecedor se implanta definitivamente na contemporaneidade e ganha, inclusive, amparo legal. O código de defesa do consumidor se torna a concretização dessa lógica em um aparato jurídico, possibilitando a justa reivindicação de direitos na relação comercial cliente-fornecedor. Com a legitimação social e o amparo das leis, o ‘cliente rei’ não raro se transforma em ‘cliente tirano’. Com seus requisitos de satisfação cada vez mais desafiadores, em termos de qualidade intrínseca, tempo, conveniências de atendimento, entre outros, o cliente impõe às organizações (fornecedores) um ritmo incessante de mudanças e melhorias (MIGUELES, 1997). A ironia dessa relação, por vezes despótica, é que muitos dos clientes-tiranos são, ao mesmo tempo, fornecedores- tiranizados. Em um único dia, o mesmo profissional pressionado pode se tornar, em outro contexto, um cliente opressor. A lógica cliente-fornecedor, em que pese sua origem na racionalidade administrativa e estratégica, tende a gerar enredamentos para as organizações e para o próprio indivíduo – seja como cidadão, seja como cliente ou fornecedor.

Saindo da lógica cliente-fornecedor, outro caso que merece investigação é o transbordamento da lógica empresarial para o âmbito pessoal e familiar. Esta se manifesta em questões como organização doméstica, otimização de tempo, controle de recursos e, até mesmo, ações educacionais em família. Como, em alguns casos, esse transbordamento é positivo – por exemplo, no planejamento financeiro e no controle do orçamento doméstico – pode-se chegar a uma falsa generalização de que a lógica empresarial seja sempre aplicável a esses âmbitos. Deve-se observar, contudo, que mesmo nesses casos supostamente positivos, a transposição apresenta restrições. Os objetivos da instituição família não podem ser comparados (reduzidos) aos objetivos de uma empresa. Ainda que a gestão financeira seja uma necessidade de ambas, os princípios que a regem em cada caso são, não-raro, incompatíveis. Um exemplo emblemático desse transbordamento pode ser

percebido na narrativa de Welch (2001), quando se refere aos raros momentos de pausa do trabalho, durante as férias, em que se divertia com os filhos: “Tentava tornar aquelas atividades tão agradáveis e competitivas quanto possível, estimulando ao máximo as crianças. Quando voltávamos para casa, sempre fazia placas de madeira para o ‘Melhor Esportista’, o ‘Melhor Minigolfista’ e o ‘Melhor jogador’, e dava prêmios aos vencedores.” (p. 65) Sem qualquer pretensão valorativa desse caso em particular, o que se pretende destacar é a clara transposição, da empresa para a família, de uma lógica de competição, de diferenciação e de premiação. Até que ponto essa lógica é mais adequada que a da cooperação? Até que ponto a educação familiar deve se nortear pelas demandas do mercado de trabalho? Até que ponto os valores subjacentes à lógica empresarial devem se sobrepor aos demais valores humanos, como a solidariedade e o altruísmo? Outro exemplo freqüente na mídia é a matematização da prole: pesquisas que informam o custo aproximado de se criar um filho até a graduação. A informação, em si, nada tem de impróprio nem de inusitado. Qualquer família de mediana formação intelectual é capaz de estimar tal custo. O ponto a ser ressaltado é que tais reportagens tendem a reduzir uma decisão familiar da maior relevância a uma mera análise de investimentos. Em alguns casos isso é explícito, quando, por exemplo, se compara o ‘investimento’ em um filho com o investimento em um imóvel. Mais uma vez, a transposição da lógica empresarial para outros contextos tende a ser reducionista e inadequada, se conduzida de maneira acrítica.

Outro tipo de transposição parece estar se popularizando no Brasil nos últimos anos, a partir de sua disseminação no mundo empresarial norte-americano: a cidadania corporativa ou organizacional. O peculiar dessa transposição é se dar do mundo social para as organizações; e não ao contrário, como nos exemplos anteriores. Mas a mesma impropriedade e a mesma aplicação reducionista é verificável. Cidadania corporativa é definida, na literatura técnica de Administração, como o “comportamento discricionário que não faz parte das exigências funcionais, mas que ajuda a promover o funcionamento eficaz da organização.” (ROBBINS, 2004:2) Dentre esses comportamentos voluntários, não reconhecidos nem recompensados formalmente, estão a ajuda mútua, a prevenção de conflitos desnecessários, o elogio às realizações da equipe ou da organização e a disposição em se oferecer para serviços extraordinários.

Tal utilização do termo cidadania, por mais positiva e razoável que possa parecer, constitui-se em apropriação e redução de um conceito complexo a uma instrumentalização administrativa. O enredamento na lógica empresarial, nesse caso, é por demais sutil. A

própria declaração da impropriedade dessa transposição pode ser facilmente interpretada como uma rejeição aos comportamentos positivos que o conceito abrange. Muito provavelmente, uma reflexividade operativa não alcança a sutileza dessa transposição semântica de aparência tão benigna. Deve-se, ainda, ressaltar, que tal afirmação nada tem de persecutória. Não estão sendo denunciados quaisquer grupos de interesse ou agentes mal-intencionados. Numa perspectiva foucaultiana e heideggeriana, o que se observa, nesse caso, é a reprodução de uma relação de poder através de uma lógica que privilegia o desvelamento técnico-calculante de conceitos muito mais amplos e complexos. Um desvelamento instrumental que tende a enfatizar, nas práticas corporativas, o status das organizações como instituição dominante da contemporaneidade. Somente através de uma reflexividade essencial complexa é possível se problematizar essa indevida redução do mundo da vida ao mundo corporativo; essa indevida apropriação da autodeterminação humana como instrumento para uma finalidade econômica – mesmo que legítima e aparentemente consensual.