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PARTE 3: SENTIDOS DO TRABALHO INFORMACIONAL CORPORATIVO

II. Dialogando com possibilidades

Qualquer atividade humana é naturalmente portadora de possibilidades. O trabalho paradoxal, contudo, por sua própria dinâmica reflexiva, interação humana e processo decisório, provavelmente constitui-se em um âmbito privilegiado de possibilidades.

Entretanto, como qualquer atividade humana, o trabalho paradoxal também impõe limites. Restrições de toda ordem são verificáveis no ambiente organizacional - desde as intencionalmente formuladas pela gestão até as que decorrem, como efeito colateral, das tentativas de racionalização administrativa.

Falar de limites e possibilidades é falar de liberdade. De uma liberdade sócio- historicamente situada, sob o domínio do pensamento técnico-calculante e contingenciada pelas necessidades individuais. Uma liberdade que teria sua mais ampla possibilidade de expressão no exercício da reflexividade essencial complexa, do pensamento meditante e da escolha autêntica.

Hannah Arendt amplia esse diálogo ao afirmar que “o homem que ignora ser sujeito à necessidade não pode ser livre” (ARENDT, 2004: 133). Retoma, com essa assertiva, uma concepção clássica do pensamento grego: o indivíduo sob domínio da necessidade não pode ser cidadão. Pensamento para o qual a cidadania era a ação na vida pública (bios

politikos), livre das constrições do trabalho e do labor. Ação em que indivíduos, sob

condição de igualdade, expressavam sua excelência (arete) individual, buscavam auto- realização e construíam um legado. A vida privada, por seu turno, representava o espaço da desigualdade, da assimetria de poder; um espaço privado (=com privação) das possibilidades humanas mais amplas, só realizáveis na cidadania (ARENDT, 2004).

Transpor essa concepção grega ao espaço público predominante do trabalhador corporativo – a organização – pode proporcionar outro interessante caminho reflexivo. Seria a ‘família’ organizacional uma reprodução da desigualdade da vida familiar na hierarquia corporativa? A vida pública, espaço de iguais no mundo grego, teria se transmudado na comunidade de desiguais das organizações produtivas? E a busca de auto- expressão e de auto-realização teria se transferido para esse novo espaço público? Considerações a respeito já foram feitas na ‘primazia do presente esvaziado’. O que se pode acrescentar é que, na estrita acepção grega, o ‘laborador’ corporativo não atenderia aos requisitos da cidadania – nem na vida pública nacional, tampouco na organizacional. Conjecturamos se o engajamento no chamado Terceiro Setor não representaria, entre

outras possibilidades, uma tentativa não-intencional de retomada da bios politikos. Estaria o indivíduo contemporâneo carente de um espaço de iguais em que pudesse realizar-se e deixar um legado? Devemos lembrar que a ‘cidadania corporativa’, desconstruída em outro momento deste estudo, constitui-se em impossibilidade conceitual também nesse horizonte de compreensão.

A cidadania, em sua acepção atual, foi mencionada por um dos entrevistados quando questionado sobre os papéis que mais lhe traziam satisfação e auto-realização. Após enumerar os papéis de pai, cônjuge e profissional, foi espontâneo e enfático em se qualificar como um “péssimo cidadão”. Na linha de raciocínio aqui desenvolvida, esse autojulgamento se assemelha a um anseio inarticulado pela transcendência da bios

politikos. Se assim o for, seria também um indício de que a busca de auto-realização no

contexto organizacional não estaria sendo bem-sucedida.

A auto-realização do trabalhador corporativo tem como uma de suas acepções o sucesso psicológico – termo utilizado na literatura de gestão de carreiras. Sucesso psicológico é o êxito definido por critérios individuais, singulares; não necessariamente coincidentes com padrões socialmente estabelecidos (HALL, 1998; MARTINS, 2001). E os critérios individuais, por seu turno, provêm do autoconhecimento. O ‘conhece-te a ti mesmo’ da tradição grega sobrevive aos milênios e à própria modernidade, mantendo-se como um dos fundamentos da sabedoria humana. Fundamento transcultural, visto que também presente em tradições orientais, e transdisciplinar, por sua relevância na Psicologia e mesmo na Administração. No mundo do trabalho, por exemplo, o autoconhecimento é apontado como essencial para a gestão de carreira (GREENHAUS et al., 1999; HALL, 1998; MARTINS, 2001). Entretanto, esse provável consenso sobre sua importância não implica consenso quanto a seu significado. Quais seriam as possibilidades do autoconhecimento? Que reflexões ainda podem ser feitas sobre esse tema tão antigo e tão amplamente disseminado? Na figura C.2 está representada nossa proposta a respeito: autoconhecimento em três níveis de abrangência e com foco no trabalho corporativo.

O primeiro nível – autoconhecimento episódico – é o que se alcança por meio de testes psicológicos. Tem caráter estático e rotulador, como um veredito sobre o que um indivíduo é ou pode ser. Presta-se a situações como seleção de pessoas, mas é bastante limitado em sua capacidade descritiva da personalidade e em sua capacidade preditiva dos comportamentos.

O segundo nível – autoconhecimento processual – é o utilizado na abordagem relacional de carreira (HALL, 1998), que entende o autoconhecimento como um processo contínuo e dependente da experiência prática. Subjaz, nessa perspectiva, a pressuposição da existência de determinantes individuais que se revelam no tempo17. Sua contribuição é inegável, assim como sua superioridade à abordagem anterior.

A concepção existencial-fenomenológica de ser humano, por seu turno, permite a proposição de um nível ainda mais abrangente de autoconhecimento. Mais abrangente posto que não limitado a determinantes como potencialidades e traços de personalidade. Ambas passam a ser possibilidades – não mais determinantes. Ademais, a dinâmica dessa abordagem não é de descoberta de uma verdade (veritas) interior predeterminada. É de desvelamento (aletheia) de possibilidades individuais só verificáveis a posteriori, na exterioridade do existir18.

17 Não é possível afirmar que essa seja a concepção original de Hall; no entanto, é certamente sua leitura mais usual pelo grande público, considerando-se o predomínio da noção de sujeito originário e constituidor. Ver mais detalhes sobre o conceito de sujeito no capítulo 6.

18 A diferença entre a abordagem relacional e a existencial é aparentemente tênue. No entanto, são tão dessemelhantes quanto as condições de fechamento e de abertura apresentadas no capítulo 6.

Bateria de testes e laudo. Criação de um ‘rótulo’.

Permanente, relacional.

Descoberta de determinantes na experiência concreta.

Em abertura.

Desvelamento de possibilidades de ser ao longo da existência. Autoconhecimento episódico Estático Autoconhecimento Processual Em descoberta Autoconhecimento existencial Em devir

O terceiro nível – autoconhecimento existencial – é, portanto, uma ampliação do conhecer-se a si mesmo. Uma concepção que considera o modo de ser humano em devir; indeterminável previamente e sujeito à dinâmica das escolhas individuais entre seus possíveis e seus necessários.

Retomando a análise da auto-realização, e considerando as reflexões feitas sobre o autoconhecimento, propomos uma compreensão ampliada do conceito de sucesso psicológico. Denominaremos sucesso autêntico ao êxito definido pelos critérios próprios de um indivíduo capaz de exercer o autoconhecimento existencial. Ou, ainda, de um indivíduo no pleno exercício de sua reflexividade essencial.

No entanto, o diálogo com possibilidades não se circunscreve ao âmbito individual. Mesmo que o sucesso autêntico seja auto-referenciado, não implica que possa prescindir de um ambiente coletivo saudável. Poderíamos, inclusive, supor que essa experiência de êxito seja impossível em um contexto organizacional desfavorável. Fatores como competição interpessoal predatória, estresse elevado, ausência de ética nas relações, alto nível de insegurança, entre outros, tenderiam a dificultar uma experiência autêntica de sucesso no papel profissional. Essas questões já fazem parte da agenda de pesquisas da Administração, bem como de outras disciplinas, como a Economia, a Sociologia, a Psicologia e a Medicina. É digno de nota, no entanto, a existência de diálogos que se ocupam não apenas do contexto organizacional, mas do próprio impacto que as organizações causam à coletividade. Algumas organizações do terceiro setor vêm empreendendo tais diálogos sobre questões como sustentabilidade e ética, de maneira não apenas interdisciplinar, como também ‘intersaberes’. Conscientes do papel das corporações no mundo atual, como instituições dominantes, buscam utilizar essa influência para promover a transformação da sociedade.

Não seriam essas organizações uma recriação do espaço público grego? O exercício do diálogo entre iguais e o caráter voluntário da atuação de seus participantes são similaridades notáveis entre esses dois mundos. E a própria ação voluntária poderia ser interpretada como restituição do status de indivíduos livres, visto que não se mobilizam sob o império da necessidade. Poderíamos aí também identificar a busca de auto-realização e a construção de um legado para as gerações futuras – características fundamentais da bios

politikos. Certamente, nem todas as organizações do Terceiro Setor têm tais propósitos e

tal dinâmica. Isso, contudo, não invalidaria a suposição de que possam estar sendo instrumentos de ampliação da cidadania.

A promoção do diálogo, no entanto, não se restringe a essas iniciativas. No próprio ambiente corporativo, algumas técnicas baseadas na construção compartilhada de significados e soluções vêm sendo disseminadas recentemente. Se, no passado, as dinâmicas de grupo e os times da qualidade dominavam a cena corporativa, atualmente duas novas técnicas vem sendo popularizadas: a Investigação Apreciativa e o Coaching.

Investigação Apreciativa (Appreciative Inquiry), sucintamente descrita no capítulo 5, é uma metodologia dialógica para trabalho em grupos (COOPERRIDER e WHITNEY, 1999) utilizada em empresas americanas e brasileiras, aparentemente com resultados favoráveis e com participação motivada dos trabalhadores. O coaching, por seu turno, é uma técnica cujo principal objetivo é o desenvolvimento de competências humanas para o alcance de metas específicas. Trata-se de um processo dialógico não-diretivo em que um

coach atua como facilitador da busca de soluções presentes no repertório do próprio

cliente. Por essas características, o coaching é propiciador da reflexividade essencial simples, visto que tematiza, ao longo do processo, não apenas as ações e estratégias individuais, mas também os pressupostos e valores que subjazem no comportamento. Essa metodologia vem se popularizando no Brasil, em anos recentes, sendo utilizada principalmente para o desenvolvimento de executivos em grandes empresas. Nessas duas técnicas, pode-se observar, ainda que parcial e temporariamente, a promoção do diálogo em uma relação não-hierárquica e visando à construção compartilhada de significados e de soluções.

As possibilidades do trabalho paradoxal, conforme estamos pressupondo, são amplas e indetermináveis. Entendemos que o diálogo nas organizações, assim como o realizado no Terceiro Setor e na comunidade científica, pode desvelar inúmeras alternativas de ação, inúmeras escolhas coletivas autênticas. Se os problemas atuais são imensos, imenso é também o acervo de possibilidades de lidar com eles. A mesma dinâmica complexa que provoca tais problemas, eventualmente pode também gerar soluções. Mesmo colocando em dúvida o poder da ciência em resolver todos os seus ‘efeitos colaterais’, há outras possibilidades a considerar. A reflexividade essencial complexa, exercida em um diálogo interdisciplinar, intercultural e intersaberes, poderia contribuir para a construção de alternativas à rota de insustentabilidade do trabalho paradoxal. Diálogo em que a Filosofia – a forma mais antiga de reflexividade essencial do Ocidente – tem um papel fundamental a desempenhar como instância crítica da Ciência e como saber rigoroso a nortear os demais. Entendemos que as questões contemporâneas não

encontrarão resposta no ceticismo cínico, tampouco no ufanismo ingênuo. A dificuldade adicional é que o meio-termo da sensatez não é nem um pouco evidente, e a realidade parece nos incitar às posições extremas.

Sem a pretensão de apontar um caminho intermediário, entendemos que alguns princípios consensuais poderiam fundamentar um diálogo com tal objetivo. Lipovestsky (2004a) afirma que a sociedade atual se caracteriza pela coexistência de contrários, mas que teríamos, na ideologia dos direitos humanos, uma nova ética a ser compartilhada. Sucedendo a era da moral teológica (dever para com Deus) e a laica moralista (dever de humanidade), estaríamos agora numa terceira era – pós-moralista –, em que predominam os direitos do indivíduo e perdem legitimidade os imperativos sacrificiais. Contrariamente ao que se imagina, o individualismo pós-moralista seria muito menos relativista e desorientado do que normalmente se supõe (LIPOVETSKY, 2004a). Os princípios dessa ética dos direitos humanos seriam consistentes o suficiente para permitir a construção de consensos sobre o que é ou não aceitável.

Entendemos, portanto, que um diálogo baseado em tais concordâncias ampliaria, consideravelmente, sua probabilidade de êxito; sua possibilidade de construir novas compreensões da realidade e, conseqüentemente, soluções mais adequadas para as complexas questões atuais – sejam elas direta ou indiretamente relacionadas ao trabalho paradoxal.