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PARTE 3: SENTIDOS DO TRABALHO INFORMACIONAL CORPORATIVO

8. O TRABALHO IMPERMANENTE

10.4. A primazia do presente esvaziado

A experiência social e individual do tempo talvez tenha sido um dos aspectos mais impactados com as mudanças socioeconômicas dos últimos séculos. Para o filósofo Gilles Lipovestsky, as sociedades modernas têm como um de seus fundamentos uma radical inversão do tempo, com o futuro substituindo o passado como principal referência temporal. Ao domínio das tradições sucede a crença no progresso como destino coletivamente assegurado. E uma temporalidade própria gradativamente emerge no cotidiano atual, instituindo a consagração do presente e a primazia do aqui e agora (LIPOVETSKY, 2004b).

Considerando-se o presente o único tempo que realmente ‘existe’, onde estaria o problema dessa temporalidade singular? Não estaríamos privilegiando corretamente o tempo ‘verdadeiro’ ao focar a mente no agora?

O relato de um entrevistado pode nos dar pistas para a compreensão desse paradoxo: “Todo dia saio do trabalho com a impressão de que não fiz nada.” Explica que isso se deve ao constante uso do telefone, caixas de correio eletrônico abarrotadas, “incêndios a apagar” e uma impressão de caos. É fundamental destacar, nesse depoimento, que o entrevistado havia definido trabalho como “satisfação” e declarado que gosta do ambiente corporativo e de resolver problemas. Ou seja, apesar de gostar do que faz, tem a impressão de nada ter feito.

Para o sociólogo Richard Sennett (2004), a hegemonia do presente seria o resultado de um encurtamento de perspectivas face aos dilemas e às incertezas do cotidiano. O foco estaria no imediato em lugar do longo prazo por ser o presente repleto de demandas e o futuro, demasiadamente imprevisível. A aparente suspensão do tempo daí decorrente teria o efeito de tornar esse presente ao mesmo tempo hegemônico e aprisionante.

Um elemento a destacar no relato do entrevistado é que o caráter desafiador do presente não tem que ser, necessariamente, experimentado como sofrimento – ainda que, para muitos indivíduos, agenda lotada e problemas a resolver sejam motivos de grande insatisfação. Contudo, independentemente da maneira como é experimentado, esse presente intenso é, ao mesmo tempo, esvaziado. A sensação de ‘nada ter feito’ é uma forte evidência desse esvaziamento. E se torna ainda mais emblemática nesse relato em que a experiência ocupacional, como um todo, é considerada prazerosa pelo entrevistado.

Quais seriam as características desse esvaziamento? O que está sendo retirado da experiência cotidiana para motivar tal percepção?

A compreensão desse esvaziamento demanda, naturalmente, a análise da qualidade do tempo presente ao qual o fenômeno se refere. Ressaltamos que essa análise não se restringe ao caso relatado, mas busca os fundamentos desse fenômeno paradoxal vivenciado nas organizações.

Conforme visto anteriormente, a experiência individual e coletiva do tempo é sócio- historicamente determinada. Não apenas nas ênfases com que passado, futuro e presente se sucedem, mas na própria experiência subjetiva da temporalidade. O tempo em geral e, ainda mais fortemente, o tempo corporativo, apresentam um marcante caráter instrumental. Em lugar de um tempo cíclico, natural, singular, temos um tempo linear, reificado, padronizado. O antigo axioma “tempo é dinheiro” (RIFKIN, 2005) tem sua lógica atualizada no que poderia se caracterizar como ‘financeirização’ temporal. Investe-se tempo, gasta-se tempo, economiza-se tempo (CIULLA, 2000). E este se torna um ‘recurso’ de tal modo escasso que as queixas de falta de tempo são mais freqüentes que as de falta de dinheiro (LIPOVETSKY, 2004b).

A utilização desse tempo reificado é marcada pelo caráter multitarefa. São freqüentes, por exemplo, reclamações sobre a impossibilidade de se dedicar integralmente a uma única atividade a cada vez – por mais relevante que ela seja. Há sempre uma multiplicidade de demandas, pré-agendadas ou não, a reclamar uma parcela desse ‘recurso’. Uma coach entrevistada relata uma sensação generalizada, entre seus clientes, de

que “o trabalho nunca acaba”, de que “nunca estão em dia”. Essa queixa não representa um anseio de ociosidade, mas uma vivência de inconclusão. Provavelmente, o caráter multitarefa do cotidiano compromete a apreciação legítima de cada realização. O término de uma atividade significaria apenas a disponibilidade para uma próxima.

Essas são algumas evidências da relação conflituosa do profissional corporativo com seu tempo. A esse respeito, uma psicóloga clínica é enfática ao afirmar que essa é a angústia mais freqüente entre seus clientes. Não importando a razão que os leva (profissionais corporativos) à terapia, um traço comum é a dificuldade em lidar com o tempo.

Não é mais novidade o fato de que a tecnologia (p. ex., celulares, laptops, e-mails) aumenta a permeabilidade das fronteiras entre o tempo de trabalho e o tempo pessoal. Também já é de percepção corrente que essa permeabilidade se dá, preferencialmente, no sentido do tempo de trabalho avançar sobre o tempo pessoal. Talvez menos evidente seja o fato de o próprio lazer estar sendo afetado por essa experiência de trabalho multitarefa. Para Aristóteles, o lazer faria emergir o que há de melhor no homem e seria fundamental para se desenvolver a sabedoria (CIULLA, 2000). O lazer teria, ainda, um caráter necessariamente ativo, seja em termos físicos, seja em termos intelectuais. Na atualidade, o que se observa, contudo, é o predomínio do lazer passivo (por exemplo, assistir televisão). Ao que parece, as pessoas estariam por demais cansadas para usufruir de um lazer verdadeiro, isto é, para se engajar em atividades lúdicas, de livre escolha e intrinsecamente satisfatórias, que requerem habilidades, reflexão e aprendizado (CIULLA, 2000).

Retornando ao trabalho corporativo, outra característica da temporalidade atual seria a aceleração das expectativas. Uma consultora sintetiza o extremo desse fenômeno na postura “o que é que tem aí pra mim”. Essa é a atitude de quem busca uma rápida ascensão de carreira e procura identificar, prontamente, onde estão as melhores oportunidades. Para alguns profissionais ‘veteranos’, essa assertividade pode soar como individualismo excessivo ou como desmedido auto-interesse. Por outro lado, o mercado de trabalho apresenta, aos jovens profissionais, uma realidade de competição e de precariedade dos vínculos empregatícios. Estamos, nesses casos, frente a um choque de lógicas ocupacionais verificável em organizações brasileiras – principalmente naquelas em que coexistem a estabilidade no emprego e a competição entre empresas.

Essa impermanência e essa precariedade, já discutidas em capítulos anteriores, é caracterizada pelo filósofo Gilles Lipovetsky (2004b) como temporalidade da moda.

Estaríamos sob a égide do efêmero sistemático, com a lógica da moda predominando em todo o tecido social. Uma lógica que privilegia o novo, a novidade, a mudança. Não por acaso, Heráclito é tão citado na atualidade (‘nada é permanente exceto a mudança’), freqüentemente de maneira inadequada. Não raro, a mudança ontológica de Heráclito é justificativa para a mudança patológica nas organizações – como a já descrita ‘síndrome da mudança repetitiva’. E o gosto pelo novo termina por se caracterizar, individual e organizacionalmente, como um modo de ser inautêntico: uma simples reprodução de padrões impessoais e genéricos, absorvidos irrefletidamente. A inautenticidade não estaria apenas no fato de se implementar mudanças inadequadas. Estaria, principalmente, na atitude que possibilita a recorrência desse comportamento. Atitude baseada no pressuposto de que estabilidade é sempre estagnação e baseada na lógica neofílica que determina a superioridade do novo. Essa temporalidade da moda está, portanto, muito próxima ao império do impessoal, do inautêntico.

Esses indícios sugerem que a hegemonia do presente instaura uma paradoxal dificuldade de vivê-lo plenamente no cotidiano corporativo. A atuação multitarefa, as incertezas quanto ao futuro e a lógica neofílica estariam limitando a fruição plena do aqui- agora, por mais que o foco esteja no presente. Essa questão voltará a ser apreciada adiante, quando acrescentarmos à nossa análise a temática do consumo – elemento central nessa fruição que não alcança plenitude. Antes disso, no entanto, é necessário enfocar a percepção de sentido no trabalho por sua implicação no ‘esvaziamento do presente’.

Para Viktor Frankl (1991), a vontade de sentido é uma motivação primária na vida humana. Em sua perspectiva, sentidos são sempre singulares, individuais, mas devem ser encontrados no mundo, e não na psique. E a ausência de sentido na vida explicaria a angústia e o tédio experimentados na atualidade como sintomas de um vazio existencial. Sentidos, nesse ponto de vista psicológico, seriam sempre significados e propósitos percebidos individualmente. Isso implica que a percepção (ou não) de significados e propósitos no trabalho é algo que se refere ao indivíduo e não à organização. Mesmo porque o trabalho não precisa ter, necessariamente, um sentido intrínseco. A expectativa de um trabalho intrinsecamente significativo nas organizações tem sido, em grande parte, construída e ampliada pelo discurso administrativo das últimas décadas (CIULLA, 2000).

Uma entrevistada relata, de maneira bastante franca, sua relação com o trabalho: uma atividade nem sempre prazerosa, mas que lhe permite ter uma vida plena de atividades significativas fora do trabalho (lazer em sua acepção aristotélica mais própria). Nesse caso,

o trabalho é conscientemente percebido como instrumental em relação a objetivos pessoais. Isso não implica menor dedicação, menor satisfação, menor motivação ou menor competência. E na perspectiva frankliana, os sentidos da vida estariam presentes, ainda que não intrínsecos ao trabalho.

Um relato bem diverso, e igualmente ilustrativo, é fornecido por um entrevistado para quem o trabalho é significativo por si mesmo, independentemente de qual seja. Ao discorrer sobre sua história familiar, de pais imigrantes construindo um patrimônio e educando a família com trabalho duro, fica bem clara essa outra possibilidade de relacionamento com a dimensão ocupacional.

Existe, ainda, a possibilidade de que sentidos associados à missão de uma organização sejam apreendidos individualmente. Por exemplo, a de cumprir uma função social relevante, como em muitas estatais. Mas, ao que parece, a contínua erosão das estruturas coletivas de sentido atinge também as organizações produtivas. E estas, paradoxalmente, têm se tornado o âmbito privilegiado de constituição de sentidos e de construção subjetiva (LIPOVETSKY, 2004b; GIDDENS, 2002; CIULLA, 2000).

No universo organizacional, a erosão das estruturas coletivas de sentido (significado e propósito) não ocorre de maneira uniforme. Ela seria mais evidente em organizações privadas, submetidas a um ambiente de elevada competição. As organizações estatais ainda propiciariam um considerável compartilhamento de propósitos e significados derivados de sua missão pública. Como relata uma consultora entrevistada, os trabalhadores não se sentem empenhados apenas em seu sustento ou no enriquecimento de acionistas e empresários. Entendem que seu esforço visa a objetivos sociais e nacionais muito mais relevantes.

Uma psicóloga que atuava em hospitais e agora trabalha em uma empresa estatal ilustra essa dinâmica entre sentido percebido e sentido compartilhado. Algumas afirmações coletadas na entrevista:

• “O trabalho no hospital tinha mais sofrimento; um sofrimento ‘vindo de fora’ [a doença e a morte dos pacientes]. No trabalho corporativo, o sofrimento vem mais de dentro [preocupações, limitações pessoais em termos de conhecimentos e habilidades].”

• “Apesar de a experiência hospitalar ser mais sofrida que a corporativa, o trabalho é mais vibrante, mais emocionante, mais colorido. Qualquer conquista é sempre muito grande, intensa.”

• “As dificuldades humanas são equivalentes em ambas as instituições. As mesmas disputas de poder, batalhas de ego. Mas o objetivo final do trabalho hospitalar propicia uma maior satisfação, independentemente dessas questões interpessoais.” • “Considero a possibilidade de buscar, na empresa ou fora dela, novamente um

trabalho dessa natureza. Um trabalho mais significativo, em que a contribuição seja mais evidente.”

Se imaginarmos um continuum com empresas privadas em um extremo e instituições sem fins lucrativos no outro, as organizações estatais estariam numa posição intermediária quanto à possibilidade de compartilhamento de sentidos. Interessante notar que, para muitos profissionais da estatal em que essa psicóloga atua, os sentidos compartilhados são suficientemente vigorosos para serem apreendidos como próprios (individualmente apropriados). No entanto, um indivíduo (como ela) com experiência mais intensa nesse compartilhamento, pode achar insuficientes esses mesmos sentidos. E o relato ilustra ainda outro aspecto do fenômeno: um trabalho com propósito e significado pode ser cansativo e estressante. Contudo, seu impacto é positivo para a vida de quem o desempenha, revigorando e trazendo satisfação (CIULLA, 2000).

Deve ser ressaltado, entretanto, que as organizações não criam trabalhos significativos. Mesmo naquelas em que há um significado intrínseco disponível, é o indivíduo que vai, em última análise, apreciá-lo ou não. Ademais, as organizações não têm a obrigação moral de criar trabalhos significativos. O que se espera delas é ‘simplesmente’ um tratamento humano e adulto nas relações de trabalho, resultantes de valores morais compartilhados em todas as instâncias do trabalho (CIULLA, 2000).

Os relatos e as análises precedentes indicam que o trabalho pode ter um sentido em si, um sentido compartilhado, um sentido instrumental ou nenhum sentido. Mas, em qualquer caso, esse sentido (ou sua ausência) é sempre um significado ou um propósito individualmente apreendido e apreciado. Apesar de os sentidos tenderem a se tornar menos definíveis coletivamente, há indícios de que um sentido está sempre presente no trabalho corporativo: o sustento. Essa proposição será apresentada e exemplificada a seguir, no paradoxo ‘sustento insustentável’.